Uma Igreja pobre e para os pobres. Condições para que o desejo do Papa se torne real

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Por: Jonas | 17 Abril 2013

"A Igreja precisa continuar recuperando a humildade de seu único Senhor, Jesus Cristo. Uma Igreja que é Estado, dificilmente pode chegar a ser uma Igreja pobre. Porque é uma Igreja com ministérios e corpo diplomático entre outras instituições de grandeza. A famosa admoestação de São Bernardo ao seu irmão cisterciense, eleito papa Eugênio III – “Não esqueça que você é o sucessor de um pescador e não do imperador Constantino” –, não terá hoje uma atualidade inescapável?  Questiona o teólogo jesuíta Juan Hernández Pico, em artigo publicado no sítio Centro Ecúmenico Diego de Medellín, 08-04-2013. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Com eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!

Três dias após ser eleito bispo de Roma e sucessor de São Pedro, Francisco, de 76 anos de idade - ainda não chamou a si próprio de papa -, disse aos representantes dos meios internacionais de comunicação: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!”. Disse isto em termos de desejo, evidentemente porque sabe muito bem que no Vaticano, ao menos na Cúria Romana, em seu próprio bispado de Roma e na maioria dos bispados do mundo ocidental, não é essa a realidade, e sabe que para que essa realidade se transforme terá que lutar rigidamente, como se tudo dependesse de Deus, e esperar tudo de Deus, como se tudo dependesse de nós. É assim que dizem que Santo Inácio pensava, dialeticamente, sobre as nossas árduas tarefas.

Francisco disse aos comunicadores, também em termos desejo, porque relacionou isto com a razão da escolha, como bispo eleito de Roma, de um nome assim. Quando o número de votos com seu nome, na Capela Sistina, superou os dois terços necessários para elegê-lo – contou o novo papa -, seu vizinho, o cardeal Hummes, brasileiro, “abraçou-me, beijou-me e disse: ‘não se esqueça dos pobres’”. A menção dos pobres o fez lembrar, em seguida, de Francisco de Assis, cuja vida foi pobre e para os pobres. Por isso, escolheu o nome de Francisco. Naturalmente, evocar Francisco de Assis, a partir de sua eleição como papa, abarca todo um caráter de ardente desejo. Assim era o “Poverello”: um homem de desejos por restaurar a Igreja. Uma Igreja hoje fendida pelo escândalo da pedofilia e, sobretudo, por seu encobrimento e queda nas ambições de poder e divisões que suscitam.

Os pobres, efeito de servir a Deus e ao dinheiro

Este desejo de uma Igreja pobre e para os pobres foi proclamado pela III Conferência dos Bispos Católicos da América Latina como uma opção preferencial da Igreja: a opção pelos pobres. Alguns destes bispos, como dom Hélder Câmara, tinham participado do pacto das Catacumbas, no mês de novembro de 1965, poucas semanas antes do final do Concílio. Ali, haviam se comprometido a viver pobremente e a defender a causa dos pobres. Foi um compromisso motivado pelo fato do Concílio Vaticano II não ter conseguido colocar em prática, de forma radical em seus documentos, a proclamação de João XXIII de que a Igreja deveria ser, “sobretudo, a Igreja dos Pobres”. Em Puebla, foi dado fundamento bíblico-teológico para esta afirmação: “Por estar ensombrecida e ainda escarnecida a imagem de Deus e sua filiação nos pobres, Deus toma sua defesa e os ama” (Puebla, 1142).

É importante que este desejo se cumpra enquanto Francisco for o sucessor de São Pedro. É importante que este desejo não fique unicamente numa conversão à austeridade, no interior da Igreja, e numa sensibilidade profundamente humana e simbólica diante dos pobres e sofredores, como, por exemplo, demonstrou Francisco no dia de início de seu governo pastoral, quando na Praça de São Pedro, antes da Missa solene, abaixou-se de seu jipe e foi beijar uma pessoa deficiente. Não nos enganemos. Estas atitudes são cruciais. E é crucial também que este desejo se manifeste numa análise profética das causas da pobreza: “vender o inocente por dinheiro e o pobre por um par de sandálias; jogar o fraco no pó e não fazer justiça ao indefeso” (Am 2,6-7). Ou nas palavras de Jesus de Nazaré: “servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).

E é importante, para que este desejo se cumpra, que os mártires latino-americanos pela justiça, e especialmente os bispos mártires, sejam reconhecidos na Igreja universal. E quem sabe, especialmente, o mais venerado de todos, dom Oscar Arnulfo Romero, assassinado durante a eucaristia, provavelmente, enquanto olhava para quem iria disparar-lhe. Não se escondeu, não gritou, nem apontou para seu carrasco. Não desceu da cruz.

Também pensei nas guerras e que Francisco é o homem da paz

O próprio Francisco explicou, ainda mais, a razão profunda da escolha de seu nome e com ela o seu desejo de uma Igreja pobre e para os pobres: “Também pensei nas guerras e que Francisco é o homem da paz”. Os pobres são sempre as multidões vitimadas nas guerras. Sendo Francisco latino-americano, estando na tradição de Medellín e Puebla, de Santo Domingo e Aparecida, sabe muito bem que “Os rostos sofredores dos pobres são os rostos sofredores de Cristo” e que “a Igreja é chamada a ser advogada da justiça e defensora dos pobres” (Documento de Aparecida, 393. 395). É impossível caminhar para essa advocacia e defesa sem assumir o grito da América Latina, da África e da Ásia, o clamor dos pobres.

A denúncia do capitalismo como capitalismo sem entranhas é impostergável

A luta pela justiça a partir da luta pela fé, e, por conseguinte, a opção pelos pobres segundo o Evangelho (Mt 25, 31-45), é hoje a verdadeira “quaestio stantis aut cadentes Ecclesiae”, ou seja, a questão perante a qual a Igreja aposta tudo, mantém-se fiel ou sucumbe à tentação. Já não estamos nos tempos em que Lutero expôs essa questão em termos de justificação pela fé. Hoje, está claro que os pobres, os famintos, os sem teto, os migrantes, os presos, os doentes, possuem algo de absoluto em si mesmos. No julgamento das nações é o rei quem descobre os da direita e os da esquerda; contudo, eles são “abençoados” ou “amaldiçoados” não por terem reconhecido ou não o rei nos pobres, mas simplesmente por terem sido solidários com os pobres, os famintos, os sem teto, os migrantes, os presos e os doentes. O desejo de Francisco de uma Igreja pobre e para os pobres precisa se encarnar na opção preferencial pelos pobres hoje. Na justiça e a paz no mundo globalizado. Por isso, também pode se espraiar numa valente denúncia de que forças econômicas, políticas e culturais criam a pobreza neste mundo. Aparecida já falou com lucidez que “as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem a ponto de subordinar as economias locais, sobretudo, fragilizando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações, especialmente, quando se trata de investimentos de longo prazo e sem retorno imediato” (Documento de Aparecida, 66). A denúncia do capitalismo globalizante, como capitalismo sem entranhas, é impostergável.

No coração, os pobres, as vítimas das guerras e o destino da natureza

A palavra do cardeal Hummes, enquanto abraçava o novo papa recém-eleito – “não se esqueça dos pobres” –, reflete um desejo tão eclesial como aquela palavra que Paulo conta. Ao afirmar sua missão, disseram-lhe em Jerusalém, “Tiago, Pedro e João..., que nos lembrássemos dos pobres” (Gl 2, 9-10). Paulo organizou uma grande coleta solidária, na Macedônia e Corinto, para ajudar a empobrecida Igreja de Jerusalém. Francisco acrescentou também, ao explicar a razão de ter escolhido o seu nome, que em Francisco de Assis também viu o “guardião da natureza, da criação”. Da mesma forma, a Igreja há de recuperar o sentido profundo dos dois primeiros capítulos do Gênesis e, assim, juntar-se na luta por um cultivo razoável, cordial e social da terra e em seu cuidado profundamente respeitoso. Cada vez que aumentam os fenômenos naturais destruidores, em sua frequência e em sua capacidade destrutiva, o dever ecológico se impõe à teologia e àprática da Igreja e deve ser cumprido profeticamente contra os grandes interesses empresariais que desprestigiam os resultados científicos sobre a mudança climática.

Os pobres, as vítimas da guerra e o destino da natureza são três preocupações que podem tornar profundamente cristão e atual o governo pastoral de Francisco. No ano de 2014, completarão os cem anos do início da Grande Guerra ou Primeira Guerra Mundial. Se a interminável guerra (de 1960 até hoje) nos arredores dos Grandes Lagos (Congo, Ruanda, Burundi), onde as empresas transnacionais movem fios de sangue por seus interesses, primeiro nas minas de cobre e hoje nos diamantes e nas maiores reservas de coltan do mundo, a matéria estratégica para a telefonia celular ou móvel; se a guerra brutal na Síria; se a permanente ameaça de guerra entre israelenses e palestinos, tornarem-se preocupações habituais de Francisco; se a mudança climática, os degelos ártico e antártico, a crescente escassez de água, o desmatamento da terra, também se tornarem suas preocupações; e caso coloque o dedo na chaga da globalização, do capitalismo transnacional estruturalmente criador de mais e de novos pobres excluídos da mesa da humanidade, o seu desejo de que a Igreja seja pobre e para os pobres adquirirá dimensões de uma grande largura e profundidade. Pode ser que esta ampliação e aprofundamento estruturais do desejo de uma Igreja pobre e para os pobres provoque no mundo uma perseguição tão dura, como é múltipla a admiração e o assombro por seus contínuos gestos de austeridade pessoal e de ternura para com os pobres.

Dá-nos entranhas de misericórdia

Para que o desejo de Francisco se cumpra, o que na realidade é o desejo de uma grande maioria dentro da Igreja, que ela seja pobre e para os pobres, não será preciso que se oriente e seja guiado em suas opções pela oração que é rezada num dos cânones eucarísticos da Igreja?

“Danos entranhas de misericórdia diante de toda miséria humana, inspira-nos o gesto e a palavra oportuna frente ao irmão só e desamparado, ajuda-nos a sermos disponíveis diante daquele que se sente explorado e desanimado”.

No mais, o novo bispo de Roma insistiu uma vez e outra, nestes primeiros dias de seu novo ofício, na misericórdia e no fato de que o coração de Deus está sempre disposto ao perdão. De acordo com as bem-aventuranças de Jesus, apenas os que escolhem ser pobres, também escolhem ser famintos e sedentos de justiça, misericordiosos, pacientes, de coração limpo e construtores da paz.

Provavelmente, a solidariedade com os pobres, para ser realmente eficaz, deve ser ecumênica, ou seja, unida aos muitos esforços que muitas instituições, cristãs ou não, fazem em favor dos pobres. Com aquele mesmo Espírito de Jesus, que via em todo ato de humanidade uma coincidência com seu estilo. “Não os impeçam de fazer o bem... Quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9, 39-40).

Uma Igreja-Estado dificilmente chegará a ser uma Igreja pobre

O desejo de Francisco, que a Igreja seja pobre e para os pobres, parece também passar pelas mesmas estruturas atuais do Vaticano. A Igreja precisa continuar recuperando a humildade de seu único Senhor, Jesus Cristo. Uma Igreja que é Estado, dificilmente pode chegar a ser uma Igreja pobre. Porque é uma Igreja com ministérios e corpo diplomático entre outras instituições de grandeza. A famosa admoestação de São Bernardo ao seu irmão cisterciense, eleito papa Eugenio III – “Não esqueça que você é o sucessor de um pescador e não do imperador Constantino” –, não terá hoje uma atualidade inescapável? Passaram os tempos em que Pio IX podia escrever para um sobrinho seu que “sem liberdade não se pode governar a Igreja”. “Liberdade” queria dizer soberania sobre Estados onde o papa continuasse como monarca absoluto. Por ter perdido essa “liberdade”, Pio IX se prendeu no Vaticano, após o rei Víctor Manuel se apoderar dos Estados Pontifícios e de sua própria capital, Roma, em 1870. A história caminha de maneira inexplicável, mas talvez não desculpável, por cair nesta tentação do poder que, com tanta força, de acordo com os Evangelhos, Jesus de Nazaré rejeitou. Para que o desejo de Francisco se cumpra, o de que a Igreja seja pobre, não será necessário que o serviço do sucessor de Pedro deixe de estar ligado à condição de chefe de Estado, e renuncie assim a todo símbolo de poder temporal e terreno, em último termo secular?

O próprio Francisco acaba de dizer, no dia da inauguração de seu governo pastoral, que nenhum poder pode ser outra coisa a não ser serviço: “o verdadeiro poder é o serviço”. Ao humilde beijo da terra, que João Paulo II inaugurou nas visitas aos povos deste planeta, não se deve acrescentar a renúncia da categoria de Estado para o Vaticano, ou seja, para a Igreja de Roma, exatamente ali onde estão sepultados o pescador Pedro e o artesão Paulo, construtor de tendas? A Igreja e o Estado, o Bispo de Roma e os Núncios-Embaixadores, são compatíveis, na recuperação do seguimento de Jesus Cristo, com uma Igreja pobre e para os pobres? Quando Francisco lembra aos diplomatas, que acreditam no Vaticano, que um dos títulos de seu ofício é “pontífice”, não o relaciona com o sacerdócio, mas com o sentido etimológico da palavra: “construtor de pontes”. Essa construção de pontes necessita de um ministério de relações exteriores, ou apenas da autoridade evangélica de quem está dedicado à construção da paz? Jesus disse: “Deixo-lhes a paz, dou-lhes a paz, mas não a dou como o mundo a oferece (Jo 14,27)”.

A Reforma da Cúria Romana, para que a Igreja seja pobre e para os pobres

Para que se cumpra o desejo do papa Francisco, de que a Igreja seja pobre e para os pobres, parece também indispensável uma profunda reforma estrutural da Cúria Romana. A necessária institucionalidade da Igreja terrestre não pode passar fundamentalmente pela burocracia da Cúria Vaticana, da forma como existe neste momento. A Cúria Vaticana faz sentido como uma ajuda conveniente para que o bispo de Roma, na caridade, presida sobre as Igrejas. Não faz sentido como uma burocracia vigilante, que impõe uma maneira de ver – uma análise única – e uma maneira de pensar – um pensamento único – para a comunhão fraterna das Igrejas estendidas pelo mundo. A Cúria Romana precisa ser porosa, acessível, fraterna e não impenetrável, inacessível e superior ou poderosa, por cima dos bispos do mundo e de outros cristãos. Provavelmente, para isso é preciso que os “dicastérios” ou escritórios da Cúria Romana, hoje tão parecidos com os ministérios de um governo civil ou militar, deixem de ser assim e se transformem em postos de escuta permanente do rumor do Espírito nas Igrejas, nas outras religiões e na humanidade. Assim será possível um diálogo fraterno e eficaz que torne cristãmente possível a presidência de Roma no amor. Já Paulo VI diferenciou claramente a dupla missão dos núncios: uma de representação ante os chefes de Estado e outra ante as Igrejas locais. Esta segunda missão poderia permanecer como presença respeitosa do bispo de Roma ao lado de seus irmãos, numa reforma que suprimisse a primeira.

Já o teólogo José Ignacio González Faus apontou que é importante que aqueles que estejam à frente das secretarias do Bispo de Roma, em sua Cúria, não sejam bispos. Mais importante ainda é que não sejam ocupados por bispos outros postos secundários de serviço. Se assim fosse, seriam cumpridos dois objetivos: a tentação de se impor com poder por cima das Conferências Episcopais, das dioceses ou arquidioceses diminuiria e seria acatada a antiga decisão canônica do Concílio de Calcedônia (450 d. C), que decretou que todo bispo deveria ter diocese e viver nela (cânon 6). Mas, sobretudo, a Cúria Romana não seria apenas um conjunto de secretarias a serviço do bispo de Roma, mas também de todo o Colégio Episcopal presidido fraternalmente por aquele. Esta mudança de ponto de apoio da alavanca poderia retirar da Cúria o peso das nomeações de bispos e recuperar a tradição da eleição dos bispos em suas próprias dioceses ou nas regiões metropolitanas: “nenhum bispo imposto”. Com isso, dar-se-ia um passo importante no caminho para a união das Igrejas, que não teriam que temer do bispo de Roma um excesso no exercício da presidência no amor. Mais ainda, caso também fosse mudado a maneira de escolher o bispo de Roma, tendo no colégio de eleitores a presença das Conferências Episcopais, de representantes seletos do clero, do laicato e das congregações religiosas.

A igualdade de filhos e filhas de Deus na dignidade e liberdade

Para que se cumpra o desejo de Francisco, de que a Igreja seja pobre e para os pobres, a própria Igreja deve recuperar a igualdade fundamental em seu próprio seio: a igualdade que exige a dignidade e a liberdade das filhas e filhos de Deus, cuja manifestação plena é objeto da esperança (Rm 8, 21). E, especialmente, recuperar que em Jesus Cristo não há oriental, africano ou ocidental, originários ou emigrantes, do Sul ou do Norte, privilegiados ou desprezados, heterossexuais ou homossexuais, varões ou mulheres, porque todos nós somos um em Jesus Cristo (Gl 3, 28). E deve-se também respeitar a tanta gente que não sabe se Deus existe ou não, ou que negam que ele existe, mas que com um coração nobre e inquieto tentam construir fraternidade entre os povos e as pessoas. E assim poder atrair também aqueles que vivem com um norte errado, honrando, sobretudo, o deus dinheiro. Inclusive, o Direito Canônico afirma, em seu cânon 208, que “por sua regeneração em Cristo, acontece entre todos os fiéis uma verdadeira igualdade, enquanto dignidade e ação”. Esse mesmo cânon introduz, em seguida, a diferença “segundo sua própria condição e ofício”. Contudo, para que a Igreja seja pobre, para que a antiga tradição de sua estrutura hierárquica não acabe dissolvendo a igualdade e dignidade comum de todos, inclusive, fazendo dela puro palavreado, é preciso que a hierarquia atravesse um forte processo de humilde conversão à irmandade. Somos irmãos e irmãs muito antes que o episcopado, presbiterado, diaconato e laicato. Somos povo de Deus, antes que a hierarquia e laicato. Precisamente, foi essa visão do Concílio Vaticano II ao organizar o documento sobre a Igreja, colocando em primeiro lugar a Igreja como povo de Deus e somente depois a sua maneira de ser hierárquica.

A pobreza da Igreja, para ser autêntica, tem que passar pela renúncia a um modo de autoridade exercida com autoritarismo, sobretudo, na Congregação da Fé, mas não menos em outras congregações romanas. A autoridade de Jesus de Nazaré provinha de uma inédita coerência entre sua palavra e sua vida: “é um ensinamento novo, com autoridade: dá ordens até para os espíritos imundos e eles obedecem” (Mc 1,27). Jesus obedecia à fé daqueles sofredores e necessitados com quem se encontrava: “A sua fé te curou”. Enquanto não levarmos a sério que não devemos chamar de pai, nem de mestre, nem de chefe a ninguém sobre a terra, pois temos apenas um pai, um mestre e um chefe, Deus e Jesus Cristo (Mt 23, 8-10), não avançaremos na pobreza da Igreja, porque estaremos atolados nos privilégios do poder. Atualmente, temos nos dado muitos pais, mestres e chefes. É notável que nestes quinze dias, desde que foi eleito Francisco, não vimos, nem ouvimos nos meios de comunicação, que tenham se dirigido a ele como “Santo Padre”, nem que ele mesmo tenha se chamado por outro nome a não ser “bispo de Roma” ou “sucessor de São Pedro”. Para ser Igreja pobre e para os pobres é preciso descer das cátedras e sedes do poder e recuperar o caminho pelas avenidas da igual dignidade de toda a humanidade.

Para ser pobre e para os pobres é preciso haver uma Igreja não patriarcal

Dito de outra maneira, para que se cumpra o desejo de Francisco, de que a Igreja seja pobre e para os pobres, a Igreja deve deixar de ser patriarcal, fazer uma opção preferencial pelas mulheres e, assim, reparar o que, cobrindo na prática com a veneração da Mãe de Deus, Maria de Nazaré, ofendeu as mulheres deste mundo. Na Igreja, de forma muito diferente e muito contrária a de Jesus, parecemos ter dobrado o joelho, ao longo dos séculos, frente ao machismo das culturas. Jesus de Nazaré não apenas foi acompanhado dos Doze e outros discípulos, mas também de Maria Madalena, Joana, Susana, etc., que lhe serviam com seus bens. O verbo servir é um dos três elementos que o Novo Testamento destaca numa pessoa discípula de Jesus: seguir, servir e subir a Jerusalém com Jesus, a caminho de sua morte. Não podemos desconhecer que os melhores exegetas afirmam que é provável que, na última ceia, as mulheres, discípulas de Jesus, estiveram presentes. Assim escreve, por exemplo, Joachim Gnilka, em seu livro “Jesus de Nazaré, mensagem e história”: “A última tarde de sua vida, Jesus passou em Jerusalém, como o grupo de seus discípulos. E disso não se exclui que também estiveram presentes as discípulas, que tinham subido com ele para Jerusalém”. Entre a última ceia e a crucificação de Jesus, há uma relação profunda de símbolo e realidade simbolizada. Ao pé da cruz “algumas mulheres estavam, ali, olhando à distância, entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de José, e Salomé, aquelas que, quando Ele estava na Galileia, haviam lhe seguido e servido; e outras muitas que tinham subido com ele para Jerusalém” (Mc 15, 40-41). Se elas estavam ao pé da cruz, que é a autêntica realidade, como não teriam participado da ceia, o símbolo dessa realidade? Por certo, Marcos, o evangelista mais antigo, não conta que houvesse varões discípulos ao pé da cruz. Finalmente, estas mulheres discípulas são as primeiras a quem foi anunciada a Ressurreição de Jesus e encomendada o seu anúncio e proclamação (Mc 16, 6-7).

Não resta dúvida de que na Igreja fomos deixando de lado a tradição evangélica e cedendo, na ordenação de suas estruturas e serviços, à preeminência dos varões nas diversas culturas nas quais nos aclimatamos: a judaica, a grega, a latina, a germânica, etc. Não há aqui uma dívida a saldar? Poderá a Igreja, regida exclusivamente por varões, chegar a ser pobre e para os pobres sem pagar às mulheres a dívida contraída? Com as mulheres, Jesus foi profundamente contracultural. Poderá a Igreja chegar a ser contracultural e, assim, fazer-se pobre com a pobreza imposta secularmente às mulheres, nas culturas? Dar-se-á conta que somente desta forma poderá compreender, com o coração, o grito de tantas mulheres? Certamente, aqui, como em outras correntes humanas, a Igreja não subiu ainda no carro do autêntico progresso, o carro das autênticas reivindicações das mulheres.

Os gestos da bondade e ternura e a parábola da coerência cristã

“Não devemos ter medo nem da bondade, nem da ternura”, disse na homilia do dia 19, início de seu governo pastoral. Desde que foi eleito, Francisco apresentou para a Igreja e a humanidade uma série de gestos, inéditos e admiráveis, de bondade e de ternura. Antes de abençoar a multidão, pediu que rezassem por ele, para que Deus o abençoasse. Rezou o Pai-nosso todo com a multidão. Abandonou as vestimentas mais ostentosas com as quais os papas costumam se vestir. No dia do início de seu governo pastoral, usou as vestimentas litúrgicas mais simples, enquanto cardeais, bispos e outros concelebrantes vestiam as mais luxuosas. Andou a pé pelas ruas do Vaticano e no mesmo ônibus que transportava os demais cardeais. Deixou o automóvel Mercedes para viajar para Santa Maria, a Maior, e, ao chegar nesta basílica, colocou um ramo de flores diante de Maria. Pagou pessoalmente a conta de sua hospedagem. Deixou de lado o papamóvel blindado e se moveu pela Praça de São Pedro num jipe aberto, do qual desceu, várias vezes, para beijar bebês, saudar mulheres conhecidas e consolar e beijar um aleijado. Manteve sua cruz de ferro e pediu que o anel de pescador não fosse de ouro. Usou seus próprios sapatos pretos usados. Num gesto absolutamente inédito, saudou a presidente da Argentina, Cristina Fernández, com um aperto de mão e um beijo no rosto. Acariciou o cão-guia de um jornalista cego. Ligou pessoalmente à Cúria da Companhia de Jesus e quando se identificou como papa, esteve a ponto de receber como resposta, do recepcionista, um “e eu sou Napoleão”. E em Santa Maria, a Maior, deixou claro que não queria ter, ali, o cardeal Law, que como arcebispo de Boston teve que renunciar por ter encoberto uma multidão de casos de sacerdotes pedófilos. Queria que cumprisse o desejo de Bento XVI, que se retirasse num mosteiro. Ficou na casa de hóspedes de Santa Marta e não ocupou os ricos e elegantes aposentos papais. Os gestos tem sido tantos, em tão poucos dias, que é impossível não vê-los como uma mensagem de simplicidade e humanidade.

No entanto, apenas por tais gestos, provavelmente, não passará para a história. Ao contrário, seu desejo - “como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres!” - pode chegar a ser um programa e se tornar uma série de caminhos que daí, sim, farão com que entre na história. Certamente, o papa bom, João XXIII, fez muitos gestos de bondade, mas passou para a história por fazê-los e por convocar e orientar o Concílio Vaticano II e escrever “Pacem in terris”. Para a autoridade de seus gestos, correspondeu a autoridade dos fatos. E, desta forma, converteu-se numa parábola da coerência cristã.

Abertura conciliar às religiões não cristãs

Voltando à chave principal deste artigo, para ser pobre e para os pobres, a Igreja deve recuperar o espírito da abertura conciliar às religiões não cristãs, e plasmá-lo continuamente em atos simbólicos, como o que iniciou, em 1986, em Assis, João Paulo II, ao orar com tantos líderes religiosos pela paz no mundo, sem que nenhum deles ostentasse precedência. A renúncia à exclusividade da verdade e da salvação é um caminho para a pobreza. Apenas reconhecendo a presença da salvação entre todas as pessoas da terra, como já realizou o Vaticano II (GS 22), e a presença de Deus em “salvadores”, que não são competidores de Jesus de Nazaré, mas veneráveis imagens humanas da multiforme graça e benevolência de Deus, de verdade, respeitaremos a fé que professamos, em virtude da qual “as sementes e germens do Verbo”, presentes na humanidade religiosa, tem seu próprio dinamismo. Isto, até que todos nós confluamos pelo Espírito Santo nos braços daquele a quem chamamos Pai, mas que é misteriosamente maior que qualquer pai ou mãe humanos.

A fé orienta a mente para soluções plenamente humanas

Por sua vez, a identidade cristã é seguimento de Jesus e busca de soluções plenamente humanas para os problemas do mundo e da humanidade, oferecendo para isso a luz fraterna da fé (GS 11). Para ser uma Igreja pobre e para os pobres, a Igreja deve ser realmente peregrina, caminhando despretensiosamente com a humanidade para alcançar ou, ao menos, ir se aproximando de uma maior justiça, uma paz menos ameaçada e um cuidado da natureza verdadeiramente responsável. A Igreja deve, sobretudo, lutar incansavelmente contra a fome e golpear a consciência da humanidade, mas, sobretudo, da própria Igreja, para que a fome sobre o planeta, ou seja, as mulheres e homens, os jovens, as meninas e meninos, os anciãos e anciãs desnutridos e famintos sejam uma preocupação incessante da Igreja universal, tão grande como o reconhecimento crente e amoroso de Deus. Na frase do bispo Pedro Casaldáliga, “existem apenas dois absolutos: Deus e a fome”.

Os dois conflitos internos que é preciso continuar combatendo

A Igreja deverá deixar absolutamente claro que, no primeiro deles, a preocupação maior são as vítimas da pedofilia e que não encobrirá nenhum de seus membros que seja culpado desse crime. E deverá deixar não menos claro que as finanças do Instituto para as Obras de Religião (IOR), mais conhecido como o Banco do Vaticano, nunca irão contra a sua própria doutrina social, mas, inclusive, para além dela. O reconhecimento destes pecados concretos, em seu interior, tornará a Igreja pobre e para os pobres.

Apostar na esperança e ação por outro mundo possível

Enquanto dura esse mundo, não pode haver amor na Igreja que não seja projetado, tanto na vida pessoal, lúcida e integradora, e de superação do fracasso, como na esperança utópica, tanto terrena como ultraterrena, ambas iluminadas por apostas humanas no absoluto, em projetos humanos relativos ou na fé que se atreve a sustentar essa aposta. A Igreja deve dar explicações sobre a esperança escatológica que nos anima para qualquer pessoa que nos pergunte (1Pd 3, 17) e, ao mesmo tempo, sustentar firmemente, com esperança, que outro mundo é possível, mais humano, ou seja, mais amigável.

Da forma como Francisco abordar estes desafios, dependerá o fato de seu governo pastoral passar pela história como cheio de carisma e de serena e atenta escuta do rumor do Espírito Santo, nas Igrejas e na humanidade, ou de se perder nas brumas da história, sem deixar o rasto que se espera dele.

Uma grande simpatia frente à sombra do passado

Atualmente, na Igreja há um grande teor de simpatia para com Francisco. E também na humanidade. Certamente, não é a única coisa que existe. Julgando pelo que ocorreu nestes primeiros dias de seu governo pastoral, duas situações são possíveis de se converterem para ele numa dor de cabeça: sua gestão como Superior dentro da Companhia de Jesus e sua conduta frente à ditadura militar, entre 1976 e 1983. Em relação ao primeiro ponto, para os jesuítas não nos fica mais do que a verdade, a oração por ele e por nós, e a disponibilidade para as tarefas, caso Francisco nos dê algumas. Os encontros entre Francisco e o Padre Geral dos Jesuítas podem estar prenunciando o futuro.

No que diz respeito a sua conduta durante os anos da ditadura, já se sabe como foi o pronunciamento do Prêmio Nobel da Paz, de 1980. Adolfo Pérez Esquivel, numa entrevista com a BBC, disse: “É indiscutível que houve cumplicidades de boa parte da hierarquia eclesial no genocídio perpetrado contra o povo argentino... Não considero que Jorge Bergoglio tenha sido cúmplice da ditadura...” Como são as coisas neste mundo, não é improvável que este assunto o persiga. A melhor maneira de solvê-lo será a sua própria atuação em seu novo posto. Leonardo Boff a expressou quase diretamente: “O que importa não é Bergoglio e o passado, mas Francisco e o futuro”.

O desafio e os desejos não são apenas para Francisco, mas para toda a Igreja

No entanto, a Igreja não é apenas o bispo de Roma, o sucessor de São Pedro. É, sobretudo, o povo de Deus, todo ele carismático e sacerdotal, todo ele seguro e fiel depositário da fé da Igreja. Este momento, de início de 2013, pode chegar a ser uma hora da verdade para toda a Igreja. Um chamado à conversão e ao testemunho da hierarquia, mas especialmente de todo o povo de Deus, um testemunho que nos faça simples e próximos deste mundo. A partir dessa proximidade, a fé poderá recuperar o diálogo com o mundo, como parece que os gestos de Francisco fizeram... Trata-se de que na Igreja todas as pessoas estejam à escuta dos rumores do Espírito e que nos preparemos para um novo Pentecostes. A renúncia de Bento continua sendo o gesto mais importante que iniciou este momento. De alguma maneira, ela e a evocação de Francisco de Assis, restaurador da Igreja, são as que podem nos conduzir, como sinais dos tempos, para um amanhecer após as tormentas. Essa é a esperança com a qual muitas pessoas e, em especial, parece que muitos jovens, mantém nesta hora. Poderíamos, ao menos, ouvir esse rumor que nos diz: chegou a hora de nos despojarmos da glória e afirmar que Jesus de Nazaré crucificado e ressuscitado pelo Reino não nos escandaliza. O Reino para os pobres.

A renúncia de Bento XVI: reconhecimento de sua fragilidade humana

Evidentemente, Francisco não estaria hoje entre nós, se não houvesse a renúncia, aos 85 anos, de seu predecessor, o papa Ratzinger, Bento XVI (2005-2013). Num dos conclaves mais breves da história dos papas, Joseph Ratzinger foi eleito “bispo de Roma e sucessor de São Pedro”, no dia 19 de abril de 2005. Quase oito anos depois de sua eleição, anunciou que se sentia “Muito frágil corporal e espiritualmente para exercer o ministério petrino... num mundo sujeito a rápidas transformações e sacudido por questões de grande relevo”. Era a primeira renúncia de um papa depois que um monge ermitão, que assumiu o nome de Celestino V, renunciou há mais de setecentos anos. Não se pode negar, portanto, que Bento XVI fez história. Poderíamos ter previsto, pois, assim, tinha respondido uma pergunta de seu entrevistador e biógrafo Peter Seewald: “Se o papa chega a reconhecer com clareza que física, psíquica e mentalmente já não pode com a responsabilidade de seu ofício, tem o direito e, em certas circunstâncias, também o dever de renunciar”. Isto significa uma desmistificação importante do cargo, para deixar claro que antes de qualquer coisa é um humilde serviço e não uma ambiciosa apoteose.

Conflitos no mundo e na Igreja, que desafiaram o poder serviçal de Bento XVI

Como todo serviço pessoal, a sucessão de Pedro carrega certo poder e, às vezes, muito, inclusive um enorme poder. O poder é uma relação humana criada e pode ser exercido de forma exercer serviçal ou com dominação. No primeiro caso, brilha com autoridade. No segundo, não. Referindo-se ao serviço de seus discípulos, Jesus havia dito contundentemente: “Entre vocês, não seja assim”, da forma como é entre os poderes deste mundo.

Ao renunciar, Bento falou de sua fragilidade. Acredito que se referia a uma fragilidade para enfrentar dois tipos de problemas: um no mundo, o tipo de cultura da secularidade, do progresso, e daquilo que é mais rejeitável, o relativismo da verdade; e outro dentro da Igreja: o escândalo dos padres pedófilos e, acima de tudo, do encobrimento de seus crimes, e as lutas de poder e de ambição por dinheiro ao redor da Cúria Romana e do Banco do Vaticano, que nos famosos “Vatileaks” foram filtrados.

O choque com a pós-modernidade na revolução de 1968

Falando do primeiro destes problemas, não é possível esquecer o choque duradouro que produziu para o teólogo Ratzinger, professor em Tübingen, a repercussão em sua própria cátedra da revolução cultural de 1968: os estudantes desconhecendo a autoridade dos professores na universidade alemã! A pós-modernidade estava requerendo dos teólogos progressistas, peritos do Vaticano II, como Ratzinger, uma flexibilidade mental que os levaram para além da amistosa recepção da modernidade, no Vaticano II. Ratzinger confessa para o seu entrevistador, Seewald, sua decepção: “Certamente estou também decepcionado... sobretudo, pelo fato de que no mundo ocidental exista esse desgosto com a Igreja, de que a secularidade continue tornando-se autônoma, do fato de se desenvolverem formas em que os homens são cada vez mais afastados da fé, de que a tendência geral de nosso tempo continue sendo oposta à Igreja”. Alguns anos antes de sua renúncia, Bento XVI ainda acreditava poder continuar lutando: “Acredito que essa é justamente também a situação cristã, essa luta entre dois tipos de amor. Sempre foi assim e, nessa luta, será mais forte um lado, e em outras, o outro”.

Distanciamento da simpatia do Vaticano II em relação ao progresso

E diante do progresso, continua Bento XVI, em sua entrevista: “Atualmente, deveria ser iniciado um grave exame de consciência. O que é realmente progresso? É progresso se posso destruir? É progresso se posso fazer, selecionar e eliminar seres humanos por mim mesmo? Como posso conquistar um domínio ético do progresso?” De alguma maneira, na seleção de suas perguntas, parece ter se distanciado daquela audaz afirmação do Vaticano II, quando audazmente diz que “o progresso temporal..., na medida em que pode contribuir para ordenar melhor a sociedade humana, em grande medida interessa para o Reino de Deus” (GS 39).

A intransigência frente ao relativismo da verdade

Por último, Bento XVI enfrenta o problema da verdade e do relativismo: “Está à vista que o conceito de verdade está sob suspeita. É claro, é certo que se abusou muito dele. Em nome da verdade chegou-se à intolerância e crueldade. Em tal sentido, tem-se o temor quando alguém diz que tal coisa é a verdade ou até afirma possuir a verdade. Nunca a possuímos; no melhor dos casos, é ela que nos possui. Ninguém discutirá que é preciso ser cuidadoso e cauteloso ao reivindicar a verdade. Porém, descartá-la sem mais, como inalcançável, exerce diretamente uma ação destrutiva”.

São estes os problemas que a partir do mundo que a Igreja é chamada a evangelizar, ou seja, a anunciar uma boa notícia, assediavam Bento XVI, e que, por fim, parecem ter sido muito para as suas forças. Por outro lado, Bento não possui a contextura intelectual para se abrir a outra forma de ver as coisas, por exemplo, o relativismo, como faz José Comblin em seu livro póstumo “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus”:

“Até pouco tempo, para as massas analfabetas ou um pouco menos, Deus era a explicação de tudo: da paz e da guerra, da chuva e da seca, das inundações e dos terremotos, da saúde e da enfermidade, dos acidentes e da salvação dos acidentes. Para tudo era preciso invocar a Deus ou agradecê-lo ou fazer penitência. Hoje há explicações científicas para os problemas do clima, os problemas sociais, os de saúde ou os problemas psicológicos. Existem remédios inclusive, embora não se possam resolver ainda todos os problemas. Há muitas coisas que dependem dos seres humanos... O alcance da religião deve ser diferente, de acordo com as condições de vida do mundo atual. O abandono da religião é o abandono de um tipo de religião, de uma religião adaptada ao ser humano do neolítico, pré-científico, pré-técnico. Típico é que os homens e as mulheres abandonam a religião por volta dos 14 e 15 anos, quando neles despertam a personalidade e o sentido da liberdade e, ao mesmo tempo, descobrem os rudimentos de uma visão científica do mundo... Na atualidade, mais do que nunca, vale o adágio atribuído a Chesterton: o cristianismo não fracassou, pois nunca foi aplicado... Uma multidão de cristãos deixou a Igreja porque o cristianismo nunca foi transmitido para ela”.

De dentro da Igreja, os problemas com os quais o papa Ratzinger precisou lidar foram a pedofilia e, sobretudo, seu encobrimento, e a dificuldade de governar uma Cúria Romana impenetrável às reformas tentadas pelo papa Paulo VI e deixadas ao seu livre-arbítrio por um papa como João Paulo II, carismático peregrino pelo mundo e não muito interessado no cotidiano do governo da Igreja.

A pedofilia e seu encobrimento, problemas angustiantes

Bento XVI enfrentou o problema da pedofilia de forma muito rápida em seu governo, desautorizando radicalmente o sacerdote Marcial Maciel e intervindo nos Legionários de Cristo, fundação dele. Continuou enfrentando-lhe nos Estados Unidos, na Irlanda, em Malta, na Alemanha e em outros países e com outros episcopados. Deixou claro que à sua maneira, primeiro, iria permitir que o problema fosse totalmente público e, segundo, que iria decretar uma política de tolerância zero. É também correto que, a partir de sua sensibilidade, para ele o problema era de “sujeira”, uma grande “mancha” que os culpados expandiam sobre o rosto da Igreja, e que essa mesma sensibilidade acentuava menos um problema de violação de direitos humanos. O certo é que o permanente desvelamento deste gravíssimo problema, em muitas partes da Igreja, como um terremoto cujos tremores nunca fossem acabar e, sobretudo, o encobrimento que sobre ele alguns funcionários eclesiásticos teceram, desgastaram fortemente sua resistência. Daí, sua apelação para a velhice e fragilidade do vigor físico e espiritual.

A pedra de escândalo na Cúria Romana

Nos dois anos últimos de seu governo pastoral, o acesso à realidade de ambições financeiras e de lutas pelo poder, no interior da Cúria Romana e nos arredores do Banco do Vaticano, levaram o papa Ratzinger a um conhecimento da corrupção que ameaçava a partir de dentro da Igreja. Outra verdadeira pedra de escândalo. O fato das intrigas chegarem até seu próprio escritório e do seu próprio mordomo subtrair seus papéis confidenciais e entregá-los para que fossem objeto de publicações sensacionalistas, provavelmente, estourou sua capacidade. Nomeou um trio de investigadores, três cardeais octogenários – por conseguinte, o mais distante possível da ambição e das intrigas movidas pela eventual sucessão do próprio Bento –, e reservou para o novo papa os achados desta comissão.

Nomeou funcionários, mas não pôde reformar a estrutura

Bento XVI realizou mudanças importantes de pessoas nos escritórios da Cúria Romana. O secretário de Estado, seu antigo substituto na Congregação da Fé, o salesiano italiano Bertone; o presidente da Congregação de Bispos, o canadense Ouellet; o da Congregação dos Religiosos, o brasileiro Braz; os da Congregação da Fé, primeiro o estadunidense Levada e, finalmente, o alemão Müller; o diretor do Secretariado de Justiça e Paz, o ganês Turkson; o do Secretariado da Família, Paglia (um membro da Comunidade de Santo Egídio, postulador vaticano da causa de dom Romero); o do Conselho da Cultura, o também italiano Ravasi, e muitos outros, foram nomeações suas. Aparentemente, no entanto, não conseguiu conquistar a estrutura própria da Cúria e as correntes que a movem e a dividem. O teólogo González Faus disse que Bento tinha a intenção de realizar uma reforma magna, que na Cúria não houvesse bispos como empregados, mas que ele não pôde superar a oposição da própria Cúria.

A permanência de sua oposição à Teologia da Libertação

Bento XVI nunca conseguiu se abrir à autêntica natureza da Teologia da Libertação, ou seja, para a visão de Deus, de Jesus Cristo, do Espírito Santo, da Igreja, da humanidade, do pecado, da graça, da escatologia, e de todos os demais temas da teologia a partir do ponto de vista do amor (intellectus amoris) e da compaixão (intellectus misericordiae). Sim, abriu-se para a opção pelos pobres. Apesar disso, no fundo de sua gestão esteve, sobretudo, a preocupação com a Europa e sua descristianização. E essa preocupação deixou em segundo plano o mundo dos pobres e a denúncia das causas da pobreza. Inclusive, viu o amor do ponto de vista da verdade e não, ao contrário, a verdade do ponto de vista do amor, como demonstra em sua terceira encíclica, “A caridade na verdade”, que relê de maneira transformadora o texto da carta aos Efésios (4,15), que diz assim: “caminhando na verdade e no amor, cresçamos até alcançar totalmente o que é a cabeça, Cristo”.

A tradição doutrinal e a tradição do seguimento

Como disse José Comblin, em seu livro póstumo “O Espírito Santo e a Tradição de Jesus”, existem dois modos de entender a tradição: um é a tradição religiosa, que inclui a doutrinal, e outro é a tradição do seguimento de Jesus na vida, ou seja, a tradição das pessoas santas, proféticas e renovadoras, como um Francisco de Assis, para não citar a não ser o mais venerado de todos, ou uma Joana de D’arc. Inclusive, Bento não pode cristãmente sonhar outra coisa, quando escreve que: “... a tradução intelectual pressupõe a tradução existencial. Em tal sentido, são os santos os que vivem o ser cristão no presente e no futuro, e a partir de sua existência o Cristo que vem”, a partir de sua ressurreição, “pode também se traduzir no modo de se fazer presente no horizonte de compreensão do mundo secular”.

A eleição de seu sucessor, Francisco, inspirado em Francisco de Assis, talvez leve a Igreja mais pelo caminho da tradição de Jesus, dos seguidores de Jesus, dos santos e santas, do que pelo caminho da tradição da doutrina. No entanto, na Igreja não é possível caminhar sem uma síntese das duas tradições, sem viver dos santos e com uma teologia da santidade, sem viver para os pobres e com uma teologia da pobreza que a denuncie e que busque sua superação, enquanto se constrói a nova civilização da pobreza e do trabalho.

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Uma Igreja pobre e para os pobres. Condições para que o desejo do Papa se torne real - Instituto Humanitas Unisinos - IHU