A mística e os místicos. Artigo de Eliseu Wisniewski

Foto: Editora Vozes | Divulgação

29 Julho 2022

 

"Sobre a mística muitas vezes tem pesado um silêncio suspeito e um olhar estereotipado... A obra 'A mística e o os místicos', organizada por especialistas da área com uma diversidade de olhares e de perspectivas busca corrigir visões equivocadas e preconceituosas que não correspondem à realidade e à riqueza com a qual a mística tem agraciado a humanidade", escreve Eliseu Wisniewski, Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro A mística e o os místicos, de Eduardo Guerreiro Losso, Maria Clara Bingemer e Marcus Reis Pinheiro.

 

Eis o artigo.

 

Uma história enciclopédica da mística e ao mesmo tempo uma atualização da mística cristã contendo todas as suas etapas tradicionais, místicos contemporâneos (século XX), místicas de outras religiões (incluindo a ameríndia e a afro-brasileira, geralmente ausentes em antologias e histografias do passado) e, a mística secularizada da modernidade, incluindo a inter-religiosa e a latino-americana da libertação é a proposta da obra: A mística e o os místicos (Vozes, 2022, 632 p.), organizado por Eduardo Guerreiro Losso, Maria Clara Bingemer e Marcus Reis Pinheiro. Segundo os organizadores este substancioso livro foi gestado, discutido e realizado pela maior parte dos pesquisadores do Apophatiké – Grupo de pesquisa interdisciplinar sobre Mística, também foram convidados pesquisadores de diversas áreas com alto nível acadêmico.

 

Capa do livro A mística e o os místicos (Foto: Divulgação)

 

Mais especificamente, o grupo de pesquisa Apophatiké é composto por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação de vários pontos do Brasil, atuando principalmente em teologia, filosofia, literatura e ciências da religião. Estão presentes a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Universidade Federal Fluminense, a Universidade Federal de Juiz de Fora, a Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, a Universidade Estadual do Pará, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Estadual da Paraíba, a UNISYS de Niterói, a Universidade Federal de Sergipe, entre outras. Esses pesquisadores compõem o núcleo duro do grupo e são os responsáveis por boa parte da concepção e autoria do livro. Porém, o livro integra ainda outros componentes do Seminário de Mística comparada da UFJF, que todo ano ocorre em Juiz de Fora, reunindo pesquisadores de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, e a partir do qual têm sido publicados vários volumes sobre mística. Alguns dos pesquisadores desse grupo que não pertencem ao Apophatiké também são autores no volume que ora apresentamos.

 

A obra está estruturada em sete partes:

 

1) O primeiro capítulo traz uma apresentação do conceito de mística (p. 11-22), assim como suas origens (p. 23-36), seus usos e problemas contemporâneos (p. 37-49). Quanto as origens, Marcus Reis Pinheiro observa que “desde o século VI a.C., com os Mistérios gregos, até o século VI d.C., com a Teologia introdutória, à medida que organiza os temas Mística de Dionísio Areopagita, são mais de 1.000 anos. As transformações pelas quais passou o que se entende por mística nesse período são gigantescas e, com certeza, elas são fulcrais até os dias de hoje” (p. 13). Maria Clara Lucchetti Bingemer salienta que “talvez poucos conceitos em filosofia e teologia sejam tão difíceis para cercar de uma definição precisa e adequada como o de mística. Diversos autores e diversas correntes têm procurado defini-lo, mas sem chegar a um acordo definitivo sobre o tema” (p. 23).

 

Assim sendo, a experiência mística é a “consciência da presença divina, percebida de modo imediato, em atitude de passividade, e que se vive antes de toda análise e de toda formulação conceitual. Trata-se da vivência concreta do ser humano que se encontra, graças a algo que não controla ou manipula, frente a um mistério ou uma graça misteriosa e irresistível, que se revela como alteridade pessoal e age amorosamente, propondo e fazendo acontecer uma comunhão impossível segundo os critérios humanos e que só pode acontecer por graça” (p. 32). Contudo, Eduardo Guerreiro B. Losso pontua que ao “abordar as variadas abordagens teóricas e analíticas da mística, fica claro como o problema do valor sobressai como um ponto cego e as disputas de legitimidade teológica, filosófica e literária não se explicitam. Enquanto isso, embora a mística seja um dos objetos de estudo mais tratados em trabalhos acadêmicos, mobilizando uma grande variedade de áreas, correntes e teorias, ainda assim há um preconceito reinante na maioria de professores (todos pessoas que não a estudam) que não veem nela senão fanatismo, superstição, crendice e encantamento ingênuo. O sendo comum acadêmico da maioria, mesmo profundamente equivocado, é sempre numericamente superior ao conhecimento da maioria de especialistas, e essa triste verdade é especialmente dramática no espaço acadêmico do estudo da mística” (p. 46).

 

No segundo capítulo (p. 53-178) coordenado por Edson Fernando de Almeida apresentam-se as fontes da mística: a) a fonte judaica – escrito por Alexandre Leone (p. 53-79); b) a fonte jesuânica elaborado por Paulo Augusto de Souza Nogueira e Márcio Cappelli (p. 80-91); c) as fontes gregas e suas recepções (p. 92-178). Marcus Reis Pinheiro destaca que “a mística cristã não foi simplesmente influenciada por conceitos e temas da filosofia e religião gregas, ela se constitui com eles (...). Assim, os autores estudados neste capítulo são uma ase fundamental para se compreender a mística cristã, seja ela de que período for” (p. 92). Assim são estudados neste capítulo: 1) Elêusis, dionisismo e orfismo por André Decotelli e Marcus Reis Pinheiro (p. 94-104), 2) Platão por André Decotelli e Marcus Reis Pinheiro (p. 105-117), 3) Fílon de Alexandria por Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo (p. 118-130), 4) Plotino por Bernardo Lins Brandão (p. 131-139), 5) Jâmblico e Damáscio por Edrisi Fernandes (p. 140-1710, 6) Proclo por Cícero Cunha Bezerra (p. 172-178).

 

No terceiro capítulo intitulado “Os primeiros séculos: os padres gregos e latinos” (p. 179-288) coordenado por Marcus Reis Pinheiro e Bruno Gripp apresentam alguns teólogos dos primeiros séculos do movimento cristão especialmente no que diz respeito ao que se pode chamar de mística na obra desses autores: a) Inácio de Antioquia por Bruno Gripp (p. 186-198), b) Ambrósio e Cirilo por Bruno Gripp (p. 199-211), c) Antão e as origens do monasticismo por Bruno Gripp (p. 212-224), d) Orígenes de Alexandria por Bruno Gripp (p. 225-240), e) Gregório de Nissa por Bruno Gripp (p. 241-255), f) Evágrio Pôntico (p. 256-267), g) Agostinho de Hipona por Alexandre Marques Cabral (p. 268-276), h) Dionísio Pseudo-Areopagita por Cícero Cunha Bezerra (p. 277-288). Os coordenadores deste capítulo registram que “falar de mística no período patrístico é enfrentar não apenas uma relevante diferença de visão de mundo, como também uma grande extensão temporal e espacial, incluindo contextos históricos bastante diversos, que resultaram em vis e caminhos ariados e singulares. Desse modo, não é possível falar de uma mística patrística, mas sim de muitas místicas patrísticas, uma vez que o período viveu diferentes formas de relacionamento com a divindade” (p. 181).

 

No quarto capítulo – “Místicos medievais cristãos” (p. 289-365) coordenado por Maria Simone Marinho Nogueira aborda-se a mística medieval: a) Bento de Núrsia por Marcos José de Araújo Caldas (p. 294-298), b) Bernardo de Claraval por Bernardo Lins Brandão (p. 299-305), c) Hildegarda de Bingen por Maria José Calderia do Amaral (p. 306-320), d) Francisco de Assis por Marcelo Thimoteo da Costa (p. 321-322), e) Beguinas: Marguerite Porete por Ceci M. C. Baptista Mariani (p. 333-344), f) Mestre Eckhart por Oscar Federico Bauchwitz (p. 345-354), g) Nicolau de Cusa por Oscar Federico Bauchwitz (p. 355-365). Os textos deste capítulo “embora represente uma pequena parcela do que está sendo chamada a mística medieval, não deixa de expor uma parte bastante significativa da riqueza de um pensamento feito por homens e mulheres que ou experimentaram Deus ou procuraram fazer uma reflexão sobre este experienciar que ultrapassa toda a palavra, mas que, paradoxalmente, não pode ser dita sem o horizonte da linguagem” (p. 293).

 

No quinto capítulo (p. 367-436) coordenado por Maria Clara Lucchetti Bingemer apresentam-se alguns místicos modernos: a) Teresa de Ávila por Lúcia Pedrosa-Pádua (p. 369-376), b) João da Cruz por Cleide de Oliveira (p. 377-389), c) Inácio de Loyola por Bruno Pinto de Albuquerque e Maria Clara Lucchetti Bingemer (p. 390-402), d) Pascal por Jimmy Sudário Cabral (p. 403-413), e) Jean-Joseph Surin por Geraldo Luiz De Mori (p. 414-427), f) Teresinha de Lisieux por Douglas Alves Fontes (p. 428-436). A coordenadora deste capítulo ressalta que “encontramos sinais de transposição de época vivida pelos místicos que aqui apresentamos em sua preocupação didática e pedagógica, transmitindo o caminho de sua experiência a outros. Tal traço estará presente em Teresa e João da Cruz, mas sobretudo em Inácio de Loyola, autor do mais famoso manual de espiritualidade do Ocidente, os Exercícios Espirituais (...). Jean Joseph Surin e Teresa de Lisieux vão apresentar um modelo de mística em que a afetividade e o mergulho nas profundezas do eu serão um traço predominante. Não é a toa que seus escritos têm fascinado psicanalistas como Michel de Certeau, que fez da mística de Surin um de seus objetivos preferidos de estudo e inspiração. Já Teresinha, (...) tem fascinado não apenas pensadores oriundos da psicologia, mulheres livres e extraordinárias como Dorothy Day” (p. 368).

 

No sexto capítulo (p. 438-524) coordenado por Maria Clara Lucchetti Bingemer apresentam-se grandes figuras místicas da contemporaneidade: a) Simone Weil por Andréia Cristina Serrato (p. 439-452), b) Etty Hillesum por Maria Clara Lucchetti Bingemer (p. 453-463), c) Thomas Merton por Sibélius Cefas Pereira (p. 464-476), d) Edith Stein por Clélia Peretti (p. 477-486), e) Dietrich Bonhoefer por Irenio Silveira Chaves (p. 487-494), f) Teilhard de Chardin por Irenio Silveira Chaves (p. 495-503), g) Christian de Chergé por Maria Clara Lucchetti Bingemer (p. 504-514), h) Charles de Foucauld por Faustino Teixeira (p. 515-524). Bingemer observa que “Simone Weil, Etty Hillesum, Edith Stein e Dietrich Bonhoeffer vivem durante a segunda guerra mundial e se sentem chamados a se solidarizar em profundidade com as vítimas daquele grande genocídio. Thomas Merton, de dentro da trapa, torna-se um renomado escritor e denuncia o armamento nuclear e a guerra do Vietnã. Charles de Focauld vive como eremita em pleno deserto, e em pleno Islã. Teilhard de Chardin une sua ciência com sua experiência mística, inventando uma linguagem que une esses dois mundos, até então divorciados. E Chistian de Chergé leva seu diálogo inter-religioso com os muçulmanos até a entrega da vida, juntamente com toda a sua comunidade” (p. 438).

 

No sétimo capítulo (p. 525-630) coordenado por Eduardo Guerreiro B. Losso são apresentadas de modo introdutório outras manifestações místicas para além do cristianismo: a) mística zen-budista por Faustino Teixeira (p. 529-540), b) mística islâmica por Carolina Duarte (p. 541-546), c) mítica indiana por José Abílio Perez Junior (p. 547-555), d) mística judaica por Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo (p. 556-565), e) mística secularizada por Eduardo Guerreiro B. Losso (p. 566-579), f) mística ameríndia por Roberto Tomichá Charupá (p. 580-593), g) mística afro-brasileira por Gilbraz Aragão (p. 594-600) e por José Jorge de Carvalho (p. 600-614), h) mística latino-americana da libertação por Paulo Fernando Carneiro de Andrade (p. 615-620), i) mística inter-religiosa por Faustino Teixeira (p. 621-630), “em todos esses itens, os autores buscaram mostrar a variedade e a riqueza desse campo de diferenças produtivas entre tradição e Modernidade, religião e laicidade, interioridade e exterioridade, psicologia e sociedade, ascese e política” (p. 528).

 

Sobre a mística muitas vezes tem pesado um silêncio suspeito e um olhar estereotipado... Esta obra coletiva organizada por especialistas da área com uma diversidade de olhares e de perspectivas busca corrigir visões equivocadas e preconceituosas que não correspondem à realidade e à riqueza com a qual a mística tem agraciado a humanidade.

 

Assim sendo, A mística e os místicos é um guia de leitura da mística e oferece um panorama desta temática, ressaltando diversos aspectos relevantes do estudo da mística, bem como colocando-nos diante de muitas figuras de místicos e místicas: nestes e nestas encontramos a melhor forma de compreender a mística, uma vez que eles e elas são os primeiros teóricos da sua experiência.

 

A leitura deste livro será de grande ajuda, tendo-se em conta que busca revelar os múltiplos percursos da experiência mística nas muitas tradições, como frisam seus organizadores “igualmente a transversalidade de outras religiões e espiritualidades dialogando com a predominância do cristianismo, impedindo seja sua hipertrofia seja seu isolacionismo, dá ao livro um sabor sinfônico que reforça a identidade do que seja a mística: sobretudo, antes de tudo uma experiência de liberdade”.

 

Vale a pena, também citar o que diz Leonardo Boff sobre esta coletânea: “o valor deste livro A mística e os místicos consiste em revelar os múltiplos percursos da experiência mística nas muitas tradições. Todas elas se encontram na busca da comunhão com o Uno”.

 

Referências

 

LOSSO, Eduardo Guerreiro; BINGEMER, Maria Clara; PINHEIRO, Marcus Reis. A mística e os místicos. Petrópolis: Vozes, 2022, 632 p. ISBN 9786557132845

 

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