A vida espiritual dos místicos: um caminho para não sucumbir à ansiedade, ao medo e à acídia

Foto: Angel | Cathopic

27 Abril 2022

 

"Em um momento histórico em que psicólogos e psicossociólogos constatam entre nós a presença de uma 'ansiedade multiforme', 'é preciso apelar a novas energias morais e espirituais que possam aliviá-la' e têm como propósito 'formar a unidade da pessoa', sugere o jesuíta francês Charles André Bernard, especialista em teologia espiritual".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

Além das inúmeras mazelas sociais evidenciadas e agravadas ao longo da pandemia de Covid-19, outro problema comum nos ambientes de trabalho, de estudo e nas relações familiares veio à tona: a ansiedade.

 

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em agosto do ano passado, em cinco macrorregiões brasileiras, registra o quadro de um fenômeno que tem sido cada vez mais recorrente: quatro entre dez brasileiros tiveram problemas com ansiedade, 44% relataram ter tido algum tipo de problema psicológico e 57% afirmaram ter vivenciado medo e angústia nos últimos meses. O resultado da pesquisa que entrevistou 2.055 pessoas é o seguinte: os mais afetados foram as pessoas com alta escolaridade (57%), jovens entre 16 e 24 anos (56%), mulheres (53%), pessoas sem filhos (51%) e pessoas economicamente ativas (48%).

 

Ao refletir sobre esta que é uma das doenças da nossa era, entre tantas outras, o teólogo jesuíta Adroaldo Palaoro fez o seguinte diagnóstico: "O mundo no qual vivemos, feito de códigos e números, de tecnologia e de anonimato, de frios cálculos e de robôs telecomandados..., conduz a uma vida em contínua aceleração; isso faz com que todos adoeçam de ativismo, de competição, de eficientismo; o excesso de informações tira o sabor das coisas, instaura uma cultura que não flexibiliza a vida interior e o recolhimento, não cultiva afetos, emoções e sentimentos".

 

Duas das características do "ser humano pós-moderno", acrescenta, é que anda "inquieto e perturbado" e "está perdendo o contato com o cosmos, com o chão, com os animais, com a natureza", em outras palavras, com Deus, a criação e o próximo. A consequência, observa, é que "isto provoca-lhe todo tipo de mal-estar, de doenças, de insegurança e de ansiedade". A própria ansiedade, sublinha, tem tirado de nós a "riqueza espiritual", o "cultivo de uma vida interior" e a "criatividade". Dominados por ela, "sentimos uma necessidade imperiosa de resolver rapidamente todos os problemas, como se todas as coisas fossem urgentes ou indispensáveis".

 

 

Em seu desenvolvimento contínuo, as diversas ciências têm contribuído para auxiliar os seres humanos no enfrentamento de problemas dessa ordem. A própria ciência farmacêutica, na elaboração de diversos medicamentos específicos, aliada a outras ciências e atividades da área da saúde, tem proposto caminhos para contornar ou resolver casos de ansiedade via medicalização. Entretanto, muito antes do aprimoramento e desenvolvimento de vários medicamentos, a humanidade convivia - e sempre conviveu - com sentimentos de ansiedade, medo e angústia porque eles fazem parte da própria condição humana. A questão é como conviver com eles sem sermos dominados por crises ininterruptas a ponto de termos nossas próprias vidas paralisadas e até mesmo destruídas.

 

Neste quesito, a arte em geral, a literatura em particular, a filosofia e a própria teologia, sempre foram fontes riquíssimas através das quais o ser humano aprendeu a fazer o exercício proposto por tantos filósofos, teólogos e escritores: entrar em contato consigo mesmo para, de um lado, lidar com os medos, a angústia e a ansiedade e, de outro lado, ao conhecer a si mesmo, cultivar uma vida interior que terá reflexos nas ações da vida exterior. A literatura clássica, que trata fundamentalmente sobre a condição humana, continua sendo um espelho para conhecermos a nós mesmos. Igualmente, a mística cristã, a exemplo da desenvolvida pelos mestres do século do ouro espanhol, como Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa d'Ávila e São João da Cruz, nos ensina a aprofundar a relação entre a vida espiritual, a mística e a psicológica.

 

Como explica o jesuíta francês Charles André Bernard, especialista em teologia espiritual, esses mestres nos ensinam que a "experiência espiritual não se limita a um conhecimento parcial, mas, de maneira mais profunda, é adesão pessoal à totalidade do Mistério". O caminho para acessá-la e vivenciá-la, como o próprio Papa Francisco repete cotidianamente, é a oração. É através dela que o ser humano entra em contato com Deus e, por graça, é transformado interiormente. A oração, elemento central da vida cristã, definida como "elevação da mente a Deus", implica, como observa Bernard, por parte do homem espiritual, o exercício habitual da elevação do coração e da mente a Deus. Em outras palavras, resume, citando Bergson, "a vida mística constitui um chamamento à superação de si mesmo".

 

 

Em um momento histórico em que psicólogos e psicossociólogos constatam entre nós a presença de uma "ansiedade multiforme", sugere o jesuíta, "é preciso apelar a novas energias morais e espirituais que possam aliviá-la" e têm como propósito "formar a unidade da pessoa".

 

 

Para nós, que vivemos em um tempo "tenso e estéril", o desafio, diz Palaoro, "é buscar maneiras de encontrar a serenidade em meio às nossas frenéticas vidas, de abrir em profundidade nossa cotidianidade para poder nos submergir no ritmo tranquilo de Deus; encontrar-nos com Ele para que seja o centro de nossa vida e caminhar a seu lado. Oxalá sejamos capazes de captar os detalhes da paisagem de nossa vida para descobrir em tudo as pegadas do Senhor! E, embora vivamos neste mundo onde tudo se move tão rápido, podemos fechar os olhos e sentir que Ele nos conduz pela sua mão".

 

A fonte inesgotável da vida espiritual de todos os místicos cristãos, como se sabe, sempre foi a leitura e a vivência do Evangelho e o encontro pessoal com Cristo na oração. É assim que eles foram transformados interiormente, por graça e misericórdia, e do ódio, do medo, da acídia, da angústia, da tristeza, passaram ao amor, à esperança, à alegria, à coragem, à fortaleza.

 

 

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