A hipocrisia europeia na exploração do gás africano

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20 Julho 2022

 

 

No ano passado uma gigantesca central produziu uma quantidade de gás natural liquefeito suficiente para aquecer metade do Reino Unido durante o inverno. Aconteceu na Nigéria, na ponta da Ilha Bonny, uma migalha de terra em forma de flecha onde o Oceano Atlântico encontra o Delta do Níger. A maior parte do gás foi enviada para fora do país para Espanha, França e Portugal.

 

A reportagem é de Neil Munshi, Paul Burkhardt e William Clowes, publicada por Bloomberg e reproduzida por Internazionale, 15-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

A pouco mais de 20 quilômetros de distância, na cidade de Bodo, os moradores ainda usam querosene e diesel, comprados no mercado negro, para acender os fogões e alimentar os geradores de eletricidade.

 

O combustível é produzido com o petróleo bruto roubado dos gigantes estrangeiros da energia - Shell, Eni e TotalEnergies - que, juntamente com o governo nigeriano, detêm a propriedade da estrutura da ilha. “O gás produzido aqui vai para a Bonny e depois para a Europa, para abastecer residências e indústrias, mas nós não ganhamos nada”, afirma Pius Dimkpa, presidente do comitê de desenvolvimento da comunidade local de Bodo: “nada vem para nós”.

 

A Nigéria possui 3% das reservas de gás conhecidas do planeta, mas não as utiliza para si: como em muitos países africanos, o que é extraído é em grande parte enviado para a Europa. Além disso, para compensar a perda de suprimentos provocadas pela invasão russa da Ucrânia, os países europeus pretendem aumentar as importações da África. Em abril, a Itália assinou novos acordos para comprar gás da Angola e da República Democrática do Congo, enquanto a Alemanha está tentando garantir seu abastecimento com o Senegal. Isso enquanto no resto do mundo busca-se conter o consumo de gás e combustíveis fósseis para atingir as metas climáticas, como também solicitado pelos líderes europeus durante a conferência COP26 das Nações Unidas, que aconteceu em novembro em Glasgow.

 

Marcha a ré

 

Por um lado, os líderes africanos aspiram aos milhões que virão graças aos acordos sobre o gás, mas por outro lado denunciam um duplo padrão: o súbito interesse dos países estrangeiros em seus recursos está destinado a perpetuar a exploração da região pelo Ocidente. Por que a África tem que desistir dos combustíveis fósseis poluentes - limitando o acesso à eletricidade para centenas de milhões de cidadãos - enquanto seu gás acende as luzes da Europa? Os países ricos foram relutantes à ideia de financiar gasodutos e centrais elétricas que facilitariam a exploração de gás na África devido às suas emissões, mas não cumpriram as promessas de apoio financeiro às fontes de energia alternativa.

 

A bizarra posição da Europa ficou clara no G7 em junho. As economias mais avançadas do mundo deram marcha a ré em seu empenho de interromper os financiamentos para a extração de combustíveis fósseis no exterior. As exceções, muito provavelmente, dirão respeito apenas a projetos que permitam aumentar a quantidade de gás natural liquefeito importado para os seus países.

 

Outro repensamento veio com a votação do Parlamento Europeu que incluiu as usinas de gás e energia nuclear no bloco dos “investimentos sustentáveis”, desbloqueando bilhões de euros em financiamento. Essa abordagem irritou os líderes africanos que precisam de combustível, sob qualquer forma, para tirar milhões de pessoas da pobreza. "Precisamos de parcerias de longo prazo, não de inconsistências e contradições nas políticas energéticas de parte do Reino Unido e da União Europeia", declarou o presidente nigeriano, Muhammadu Buhari, em um comentário por escrito.

 

Na realidade, até mesmo os governos da África Subsaariana têm suas culpas por terem subutilizado suas reservas de gás. Poucos países africanos investiram seriamente ou reformaram seus setores de energia e petróleo, particularmente a Nigéria, onde a estrutura da Ilha de Bonny opera abaixo de 20% de sua capacidade desde 2021, devido a roubos e atos de vandalismo no oleoduto. Muitos líderes africanos são a favor das exportações de gás para sustentar seus governos sedentos por dinheiro, mas também querem ter acesso a financiamento para explorar ao máximo o potencial do combustível e criar um mercado interno do gás natural. "Eles não podem vir aqui e dizer 'precisamos do seu gás, nós o compramos e o levamos para a Europa'", declarou o ministro da Energia da Guiné Equatorial, Gabriel Obiang Lima, durante uma entrevista coletiva em maio. “Eles têm que nos dar algo em troca”, acrescentou.

 

Algo em troca

 

Aquela do gás há muito é uma questão controversa do ponto de vista da luta contra as mudanças climáticas: queima de forma mais limpa do que outros combustíveis fósseis, mas ainda assim é poluente. O gás libera dióxido de carbono e tende a dispersar metano, uma das principais causas do aquecimento global. A própria posição da Europa em relação aos combustíveis mudou desde o início da guerra na Ucrânia. Agora, a prioridade passou a ser comprar o máximo possível de gás natural liquefeito e países como Alemanha, Áustria e Países Baixos planejam voltar ao carvão para aumentar os estoques.

 

Segundo os políticos europeus, os combustíveis fósseis são um remendo necessário para permitir que a UE supere a crise atual, de modo a evitar escassez e apagões. O plano atual é impulsionar as energias renováveis para reduzir as emissões muito mais rapidamente do que as metas fixadas anteriormente. Mas a União Europeia hesitou em implementar medidas para reduzir o consumo de energia no futuro imediato, por medo das consequências políticas. Autoridades da EU defendem que no final as contas sobre o clima se acertarão, mas não é fácil comunicar essa mensagem ao exterior.

 

O plano dos líderes europeus de converter a África às fontes de energia limpa não é viável sem os financiamentos de países ricos, dos investidores privados e dos bancos de investimento.

 

Na África subsaariana, que consome menos energia do que Espanha, há muito sol e vento, mas poucas infraestruturas capazes de os utilizar. Os países em desenvolvimento enfrentam custos muito mais altos para financiar os projetos ecológicos porque são considerados investimentos de risco. À frustração da África se soma o fato de os países ricos não terem disponibilizado os US$ 100 bilhões por ano em financiamentos para o clima, um objetivo que deveria ter sido alcançado em 2020.

 

“Todo o Ocidente se desenvolveu graças aos combustíveis fósseis. Agora, enquanto falamos, alguns países ocidentais estão pensando em voltar ao carvão por causa da guerra. Então, se o mundo quer cortar as emissões fósseis, quem tem que começar a fazer alguma coisa?”, questiona-se Matthew Opoku Prempeh, ministro da Energia de Gana, país onde novos campos de petróleo e gás foram descobertos nos últimos anos. "O Ocidente acredita que a África deve permanecer subdesenvolvida?"

 

A questão dos financiamentos climáticos dominará as conversações da COP27 que se reúne este ano no Egito. A conferência irá muito provavelmente centrar-se sobre soluções para África e o futuro do gás, tendo em conta quem hospedará a conferência e o fato de, aos olhos de muitos países em desenvolvimento, esse recurso poder permitir o abandono do carvão.

 

No ano passado, a Agência Internacional de Energia (AIE) pediu a interrupção de novos projetos de extração de combustíveis fósseis. Enquanto em um recente relatório a AIE defende que a África deveria ter a oportunidade de explorar seu gás. Mesmo que a África usasse cada molécula de suas reservas de gás, a parcela continental das emissões globais aumentaria para apenas 3,5% em relação aos 3% atuais.

 

Colonialismo verde

 

O acesso universal à energia na África poderia ser alcançado até 2030 com investimentos anuais de 25 bilhões de euros, o equivalente a 1% do valor do setor energético global.

 

Uma série de novos campos permitiu que gigantes de combustíveis fósseis – entre os quais Exxon mobil, BP e Shell - gastassem dezenas de bilhões em Moçambique, Tanzânia, Senegal e Mauritânia para extrair gás destinado unicamente à exportação. Mas as centrais elétricas a gás na África não podem começar: governos e empresas africanas têm projetos no valor de cem bilhões de dólares, incluindo 35 gigawatts de eletricidade alimentada a gás. Na maioria dos casos, no entanto, não conseguem encontrar o dinheiro para financiá-los.

 

Alguns países africanos firmaram acordos com empresas extrativistas estrangeiras, a fim de poder utilizar o gás internamente mediante o pagamento de um imposto. No entanto, muitas vezes faltam fundos suficientes para renovar as redes elétricas e construir grandes infraestruturas. Os financiamentos do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Europeu para a construção de usinas a gás desapareceram em nome da transição energética. Os investidores privados temem que, enquanto forem feitos esforços para atingir a meta de emissões zero nas próximas décadas, esses capitais serão congelados e inutilizáveis.

 

A ministra para África do Reino Unido, Vicky Ford, sugeriu manter níveis elevados para qualquer financiamento destinado ao setor do gás. "O maior desafio que o mundo enfrenta continua sendo a mudança climática", disse ela em entrevista em 17 de maio. “A estratégia de longo prazo deve ser trabalhar também a favor das energias renováveis”. No Reino Unido, o governo está pressionando por encontrar novos campos de petróleo e gás no Mar do Norte. Segundo Carlo Lopes, ex-chefe da Comissão Econômica para a África das Nações Unidas, voltar-se para a África para compensar os abastecimentos de gás é "paternalista" e "hipócrita". É "totalmente vergonhoso dizer aos africanos que eles basicamente não deveriam tomar em consideração as opões à sua disposição enquanto cresce a demanda por gás na Europa por causa da guerra entre a Rússia e a Ucrânia".

 

Vijaya Ramachandran, diretora de energia e desenvolvimento do centro de estudos da Califórnia do Instituto Breakthrough, foi mais direta. Isso é "colonialismo verde", disse ela. Os países ricos exploram os recursos dos mais pobres, mas ao mesmo tempo negam-lhes o acesso a esses mesmos recursos em nome do combate à crise climática.

 

É difícil para os africanos ignorar a urgência da crise climática. O aquecimento global já causou estragos em todo o continente. O Chifre da África está passando pela pior seca dos últimos 40 anos. A desertificação ameaça o árido Sahel à medida que a erosão devora cidades costeiras como Lagos e Accra. Nas próximas décadas, enquanto a população aumentará e a Terra se tronará mais quente, a situação só vai piorar. De acordo com as projeções de um relatório do Banco Mundial publicado em outubro, o continente africano será o mais afetado pelas mudanças climáticas e os impactos que dela decorrerão: migrações internas em massa, “aumento da pobreza, da fragilidade, dos conflitos e da violência”.

 

A região precisa de desenvolvimento econômico, em parte impulsionado pelos combustíveis fósseis, para se adaptar aos desastres climáticos que ocorrerão. Se as emissões diminuirão a tempo de evitar os resultados mais catastróficos do aquecimento global é outra questão. Milhões de pessoas acabam queimando os combustíveis mais poluentes, como carvão, respirando gases letais e gerando mais emissões. Isso por causa dos obstáculos que os países africanos têm que superar na transição para o gás e para as energias limpas.

 

De acordo com as estimativas da AIE, o número de pessoas na África Subsaariana sem acesso a combustíveis renováaveis para cozinhar aumentará 6% ao ano entre 2020 e 2030. Em Bodo, perto de Bonny Island, os cabos de energia abandonados pairam sobre as cabeças de mulheres que cozinham em fogões a lenha. “Os efeitos colaterais são muitos, a fumaça incomoda os olhos”, fala Monica Gboro, que vende feijão e fubá em uma barraca improvisada. “Se as crianças se aproximam enquanto estou cozinhando, eu as afasto por causa da fumaça. Não deveria ser assim”.

 

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