“A transição energética não custará apenas dinheiro, mas provocará muitos conflitos”. Entrevista com Joan Martínez Alier

Fonte: Pixabay

24 Fevereiro 2022

 

Joan Martínez Alier é um observador declarado dos conflitos ambientais, quer eclodam eles na América Latina ou na Índia. Para este economista, que está à frente do Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Autônoma de Barcelona (ICTA-UAB), a economia não pode ser estudada separada do funcionamento da natureza. Seus trabalhos sobre a relação entre meio ambiente e economia trouxeram à tona a distribuição desigual dos recursos naturais, bem como a urgência da justiça ambiental.

 

A entrevista é de Ariadna Trillas, publicada pela revista Alternativas Económicas e reproduzida por Rebelión, 22-02-2022. A tradução é do Cepat.

 

Em 2020, a Fundação Internacional Balzan concedeu a Martínez Alier o Prêmio Balzan pela “excepcional qualidade de suas contribuições para a fundação da economia ecológica”, como ponto de partida para outro modelo econômico.

 

Com um ano de atraso devido à pandemia, o economista recebeu o prêmio do presidente da República Italiana, Sergio Mattarella.

 

Joan Martínez Alier (Barcelona, 1939) é uma referência acadêmica e, ao mesmo tempo, um ativista que combinou ecologia e economia e delineou o conceito de ecologia política. Professor emérito e pesquisador do Instituto ICTA da UAB, trabalha em um Atlas da Justiça Ambiental e dirige a revista Ecología Política. Publicou, entre outros, De la economía ecológica al ecologismo popular, Economía ecológica y política ambiental (com Jordi Roca) e O ecologismo dos pobres (Editora Contexto). A última obra é Tierra, agua, aire y libertad: movimientos mundiales por la justicia ambiental.

 

Eis a entrevista.

 

Li em algum lugar que você gostaria de fechar as faculdades de Economia...

 

Vamos ver... O que eu disse é que uma pessoa que começa a estudar economia deveria saber que ela se move em um ambiente natural e em um ambiente social. Que no primeiro semestre deveria estudar como e de onde vêm os recursos, o ciclo do carbono, o ciclo da água, como surgiu a vida na terra, a energia solar... No segundo semestre, deveria estudar o funcionamento das economias humanas antes do mercado, com suas brigas e trocas, e o peso das religiões. E somente depois estudar o mercado. Hoje se começa pelo mercado já no primeiro dia. Impõe-se o individualismo metodológico.

 

Os economistas têm muito peso nas decisões mundiais?

 

Sim, claro. Os conceitos da economia têm muito poder, comparados aos pontos de vista de antropólogos, ecologistas, biólogos, sanitaristas, agroecologistas, urbanistas ecológicos... Chegará o dia em que os economistas se calarão para dar a voz aos biólogos. Não é possível usar apenas a linguagem economicista ou reduzir os custos ambientais ou humanos a unidades monetárias.

 

Se as seguradoras quantificam os custos das catástrofes ligadas aos fenômenos climáticos, elas tornam o problema visível.

 

Veja, se uma pessoa tem um seguro de vida, suponhamos no valor de 50 mil ou 100 mil euros, o que fazemos? A matamos e a seguradora paga? Não! É proibido matar as pessoas, por motivos morais, não econômicos. Da mesma forma, o calor do sol ou o papel das florestas não podem ser reduzidos a dinheiro. Se desaparecer um mangue que tinha a função de proteger a costa e absorver carbono e fornecer biodiversidade, o impacto não pode ser explicado em dinheiro. Alguns ecologistas também recorrem à linguagem economicista, para que o ministro de plantão a entenda. Precisa é mudar o ministro.

 

A pandemia parou a economia. Houve tempo para repensar o estilo de vida, os empregos essenciais, a necessidade de mudança... Como está de esperança?

 

A pandemia não tem sido usada para discutir uma economia de decrescimento, o que não significa que tudo decresceria, mas que alguns setores decresceriam, como a aviação, e que outros devem crescer, como a saúde e a tecnologia.

 

O que pensou que mudaria?

 

Achei que a pandemia colocaria em questão a contabilidade do PIB. Porque realmente não era tão importante que o PIB caísse alguns pontos, mas que o foco fosse sustentar a vida. Além disso, comeríamos mais em casa. Pensei que estávamos diante da oportunidade de desenvolver a agroecologia de proximidade. Pensei em como nos demos conta de que o trabalho dos bombeiros, de quem está atrás do caixa de um supermercado, da equipe de limpeza e enfermagem, e como são mal pagos, era muito mais importante. Também pensei no valor do silêncio na cidade. Mas vejo que estava errado. Hoje a imprensa só fala se o PIB volta a crescer ou não.

 

Mas também não vamos voltar ao velho normal. Supõe-se que sairemos desta pandemia verdes e digitalizados.

 

Ah, o New Deal Verde. Combinado com o decrescimento econômico e com uma distribuição mais igualitária, seria outra coisa. Parece que diante do neoliberalismo ganha peso outra forma de capitalismo, o keynesianismo, que significa investimento público para retornar à normalidade econômica, como o New Deal na década de 1930, embora a verdadeira recuperação econômica tenha ocorrido com a Segunda Guerra Mundial. O keynesianismo baseou-se no petróleo barato, até 1973. E o que é necessário é outra economia.

 

Outra economia baseada na transição energética? Não acha que ela existe?

 

Realmente, uma transição energética deve ocorrer. Não é desejável que o dióxido de carbono na atmosfera continue a aumentar. De acordo com a curva de Keeling [que mede a concentração de CO2 na atmosfera], em 1992, quando aconteceu a Conferência do Rio, havia 360 partes por milhão (ppm) de CO2 na atmosfera. Agora vamos chegar a 420ppm. Em 2050 chegaremos a 450. E 500 até o final do século. Traduzido em graus, são mais três ou quatro. É por isso que se diz que devemos fazer uma transição e deixar de queimar petróleo, gás e carvão, não tanto quanto agora. Mas, na realidade, embora o petróleo não vá mais muito longe, o uso do gás e do carvão vai aumentar.

 

O uso do carvão vai aumentar?

 

Claro! O carvão não pode ser abordado a partir da visão eurocêntrica. A Índia está em transição energética... Para o carvão. Sim, ao mesmo tempo que aumentam as energias renováveis. A China está em 4 bilhões de toneladas por ano, ou três toneladas por habitante. Igual à Inglaterra em 1914. A Índia, em 1 bilhão de toneladas. Eles seguem o caminho que o Ocidente seguiu no uso de combustíveis fósseis. Depois de Fukushima, o Japão também optou em parte pelo carvão e pelo gás, além do petróleo. A produção de carvão aumentou sete vezes no século passado. Nos últimos 120 anos, os insumos anuais processados na economia global, como os combustíveis fósseis, os materiais de construção e metais, multiplicaram-se por 13. A economia industrial não é circular, é entrópica. Em vez disso, a população cresceu cinco vezes nesse período.

 

Acredito que a demografia também desempenha um papel crucial.

 

Sim, e a demografia me deixa um tanto otimista. O crescimento populacional vai parar e atingir o pico cerca de três a quatro décadas antes do projetado pelas Nações Unidas [que prevê um crescimento para 11 bilhões de pessoas até 2100]. Há pesquisas que estimam que o pico ocorrerá em 2060, não além de 9 bilhões.

Quando a população parar de aumentar, vão nos dizer que será ruim para a economia. Na Europa estaremos preocupados em ver cidades que não crescem, o que já está acontecendo. Já estamos preocupados com a Espanha vazia. O sistema se depara com investimentos que não são mais rentáveis.

 

Meio século atrás, os ambientalistas eram vistos como radicais. Hoje, caricaturas à parte, é uma questão de rico que pode ter um carro elétrico, comprar comida local mais cara e morar em uma casa com certificado A.

 

Devemos prestar atenção não no que é dito, mas no que é feito. E o que é feito na prática é muito claro. Se contabilizados por unidades familiares, quanto maior a renda, maior a produção de CO2.

 

O que diria para os coletes amarelos?

 

Muitas pesquisas foram feitas sobre o assunto. Todos eles eram contra o governo de Paris pelo aumento do combustível. São pessoas, muitas vezes do campo, maltratadas. Mas enquanto uma parte do movimento era antiambiental, outra parte era muito ecológica. O que eles dizem é que é injusto que sejam os mais pobres que paguem pela transição energética. Os coletes amarelos não demonstram que os pobres são antiecologistas.

 

De qualquer forma, se, como você lembra, a maioria dos materiais não for reciclado, os conflitos ambientais aumentarão.

 

São cerca de 400 milhões de indígenas vivendo nas fronteiras do extrativismo. E mais 2 bilhões de pessoas que vivem no campo ou que são sem-terra. Isso não significa que sejam contra a transição ecológica. Elas protestam contra a maneira como isso afeta suas vidas. Existem milhões de pessoas no mundo que protestam sem saber que são ambientalistas. De fato, Chico Mendes defendeu a floresta amazônica, e em seus últimos meses de vida chamaram-no de sindicalista e também lhe disseram: "Você também é ambientalista". Na Índia, há vários protestos contra a mineração de carvão. Essas pessoas estão cientes das mudanças climáticas? Hoje, com certeza, não. Em dois anos, certamente estarão. Elas têm líderes ativistas como o jovem Disha Ravi, do Fridays for Future, que foi preso por exibir uma faixa pedindo que os agricultores fossem financiados, e não o carvão. Os protestos se espalharam pelo mundo. Podem ser pessoas que não vão à escola e não estudaram as mudanças climáticas, mas que sabem mais sobre a terra e a agricultura do que qualquer um de nós. Elas sabem disso, mas não sabem que sabem. E parte da transição energética envolve minas de cobalto, bauxita e lítio; na própria Extremadura. No Equador, há protestos contra os chineses porque estão extraindo o cobre e outros metais, além de uma árvore muito leve, a balsa, cuja madeira é usada para moinhos de vento.

 

Os protestos então mudam: daqueles contra a extração de combustíveis fósseis para aqueles contra novos materiais para a transição ecológica...

 

Não! Não é uma substituição. Não mudam de um para o outro. Motivos para protesto são adicionados. Os protestos contra a extração destinada à energia eólica e solar se somam aos protestos pela exploração de petróleo, carvão ou gás.

 

Sabe quantos ativistas ambientais perderam a vida em sua luta?

 

Há oito anos, a Global Witness vem fazendo um monitorando: para o ano de 2020, eles relataram 227 mortes, principalmente na Colômbia, México e Filipinas. São números que condizem com os dados que temos em nosso Atlas da Justiça Ambiental, um mapa virtual dos conflitos socioambientais do planeta onde, entre outras coisas, também contamos as pessoas que morrem, com seus nomes, o lugar onde são assassinadas, seus executores e em que circunstâncias. 15% das fichas que temos no mapa aparecem com mortos. Com o atlas, lutamos para tornar esses casos visíveis. Mas certamente há muito mais casos. E os protestos, quando novos motivos forem acrescentados, vão aumentar. A única solução é o decrescimento nos países ricos e a justiça ambiental em todos os lugares, especialmente nos países pobres.

 

Você acha que hoje o conceito de decrescimento desperta menos rejeição?

 

Você acredita? Diga-me. Mas você menciona o decrescimento e eles imediatamente lhe dizem: "E como vamos pagar a dívida?". E também que teremos 20% de desemprego.

 

Mas o desemprego aumentaria, ou não?

 

É verdade que se há decrescimento, há mais desemprego. A cada ano a produção por pessoa aumenta devido à tecnologia. E vão sobrando pessoas. Quanto a economia deve crescer para evitar o desemprego? 8% ao ano? É impossível sem carvão, petróleo e gás. A economia não deve crescer; as pessoas devem viver. E a transição energética não custará apenas muito dinheiro, mas provocará também muitos conflitos. E se essa mudança tiver que ser feita com uma população em crescimento, será ainda mais difícil. Por esta razão, uma renda básica universal deve ser introduzida. Seria uma mudança considerável no capitalismo. Isso removeria muita angústia. Acho que as pessoas não vão parar de trabalhar. Trabalhariam menos dias, talvez. Teriam mais poder de barganha. Aliás, hoje já existe uma maioria da população que não vive de salário: pessoas que trabalham em casa sem remuneração, pensionistas, estudantes ou rentistas.

 

E o que acontece com a dívida?

 

A dívida é uma invenção quase teológica para disciplinar as pessoas. Um Estado não costuma falir por dívidas. Vimos muitos casos ao longo da história em que as dívidas não foram pagas. De Felipe II, que prosseguiu com suas guerras e pagou os banqueiros com a prata da América, a Hitler, em 1953. Claro que não é fácil dizer que a dívida não será paga. Às vezes, as poupanças e/ou fundos de pensão dos idosos dependem disso. Não afeta apenas os maus bancos. Não se pode dizer, como regra geral, que as dívidas não serão pagas. Cada caso deve ser estudado e um arranjo buscado. Os economistas sabem que se todas as dívidas estivessem vigentes a 2% ou 3%, seria necessário o ouro de vários planetas para pagá-las. O próprio Franco não pagou a dívida republicana. Em todo caso, o mundo está cheio de dívidas locais e ambientais. E as dívidas ambientais... Essas sim realmente nunca são pagas.

 

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