“A Renda Básica não é em si uma proposta antitrabalho”. Entrevista com Alberto Tena

Fonte: Flickr

24 Janeiro 2022

 

Alberto Tena é doutorando na Universidade Autônoma Metropolitana, Cidade do México, onde termina uma tese sobre a história intelectual da Renda Básica. É colaborador da revista Sin Permiso e do Instituto de Estudos Culturais e Mudança Social. Em 2021, publicou Los orígenes revolucionarios de la Renta Básica (Postmetropolis), uma coletânea de quatro textos de Thomas Paine e Thomas Spence escritos em fins do século XVIII, acompanhada de um detalhado estudo redigido por ele mesmo e de um epílogo de Daniel Raventós.

 

Tena apresentou o seu livro na Casa da Cultura de Mieres [Astúrias, Espanha]. Na oportunidade, explicou que atualmente “a Renda Básica está em disputa ideológica” e justificou a pertinência de um estudo histórico sobre a mesma, pois “a forma de relatar o passado configura horizontes e gera expectativas de futuro”.

 

A entrevista é de David Sánchez Piñero, publicada originalmente por Nortes e reproduzida por Rebelión, 24-01-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

O livro traz como título ‘Los orígenes revolucionarios de la renta básica’. Quais são essas origens e por que são revolucionárias?

 

Na verdade, é um livro muito historiográfico. É um estudo de uma série de textos, de fontes e está envolvido por esse debate ou espaço de pesquisa que é a história da Renda Básica. Em qualquer história que você conte, estabelecer quais são as origens tem uma importância crucial. De fato, há muitos ramos da historiografia, com Foucault à frente, que preferem falar em “genealogias”, em vez de “origens”, como formas alternativas de aproximação, então isso determina o resto da história.

 

Eu queria justamente falar das “origens” e não da “origem” para dizer que, na verdade, pode haver outras origens para a ideia da Renda Básica, mas que essas me interessavam de forma especial. Quando comecei a pesquisar esses textos de Paine e de Spence que aparecem na introdução de muitos livros sobre a Renda Básica, passei a perceber que estão escritos em um contexto muito particular.

 

Se existe algum contexto na história moderna que podemos chamar genericamente de revolucionário, certamente, está nesse último pedacinho do século XVIII, precisamente entre a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. Estes dois acontecimentos são fundamentais para entender o sentido de uma proposta que agora, ao contrário, nos parece por vezes surgir apenas nos anos 1980. Por isso, é acusada de ser neoliberal ou uma ideia própria do ciclo de queda dos grandes projetos social-democratas e do movimento operário.

 

Ao contrário, aqui, você pode ver como há um momento nesse contexto revolucionário, que não é pré-capitalista, mas um momento de transição, esta época “crucial”, segundo Koselleck, entre 1750 e 1850, onde todo esse mundo que posteriormente nós categorizamos como modernidade capitalista está começando a ganhar grande impulso, tanto a nível político como econômico, com as tensões do processo de construção do mercado mundial que o Império Britânico está realizando.

 

Embora Paine seja conhecido por ter vivido pessoalmente tanto a Independência dos Estados Unidos como a Revolução Francesa, nesse livro também resgato toda a sua experiência anterior, quando trabalha durante muito tempo na Inglaterra como coletor de impostos alfandegários. Isto é central para compreender as propostas de herança universal que ele desenvolve.

 

Paine tem um grande conhecimento de como está ocorrendo o processo de construção desse mercado mundial e o papel que o sistema tributário britânico e o uso desses recursos estavam desempenhando. Isto e as pistas que temos de que conhecia o funcionamento e os problemas da gestão das “Leis dos Pobres” são fundamentais para entender melhor o que estava pensando.

 

Quis dar ao livro esse título sem negar que possa haver outras origens e outras genealogias da ideia. É uma genealogia especialmente interessante, considero, para pensar a Renda Básica como projeto político.

 

Os dois autores dos textos que você reúne no livro eram protestantes: Paine provinha de uma família quaker e Spence de outra presbiteriana. Havia um componente teológico em suas propostas?

 

Penso que é a coisa mais inovadora desse livro. Justiça Agrária, que é um texto de 1797, já foi muito trabalhado. Aí entram todos os debates sobre os “direitos à existência”, o Iluminismo e todas essas coisas relacionadas à França e o seu contexto. Embora, sem dúvida, isso seja fundamental e busco o seu aprofundamento, também resgato uma série de textos anteriores, de 1775, escritos no contexto anglo-saxão, onde por outro lado é possível observar, de maneira muito mais nítida, como os dois autores vêm familiarmente de diferentes seitas protestantes e, portanto, ainda utilizam uma linguagem que poderíamos chamar de não secularizada na hora de construir politicamente a legitimidade de suas propostas.

 

O fundamento normativo das propostas políticas de todos os textos está no fato de que Deus conferiu a terra como herança comum para toda a humanidade. O que hoje lemos como uma renda básica é a concretização política desse pressuposto. E este é um fundamento normativo que tem pressupostos socialistas ou que podemos entender como socialistas. Marx faz uma lista de todos os primeiros socialistas britânicos e entre eles coloca Spence e termina dizendo que Spence ficaria muito surpreso se não fosse reconhecido que é um comunista.

 

Esse é um dos elementos, aliás, que também ajudam a entender não só a Renda Básica, mas um mundo onde, por exemplo, a distinção entre Estado e Mercado ainda não faz sentido ou onde o próprio conceito de “economia” não existe como conceito do modo como o entendemos. A única maneira de justificar que algo é positivo é pelo bem-estar das pessoas e em relação a Deus. É um mundo onde o horizonte conceitual que move os espaços políticos, em parte, ainda é prévio a todas as grandes categorias da modernidade, que apenas estão começando a entrar em jogo.

 

Aqui, em parte, a Renda Básica é esboçada como uma espécie de sinal de resistência de todo esse mundo. Spence propõe a Renda Básica como uma ideia de partilha da propriedade da terra como partilha dos meios para poder sobreviver, portanto, do que mais tarde chamarão de meios de produção.

 

É uma maneira de esboçar resistência aos processos de cercamento que começam a ocorrer, naquele momento, em Newscastle, de onde procede Spence, e talvez possa ser pensada como o que E. P. Thompson chamaria de “economia moral”: espaços dentro dos movimentos populares que representam um tipo de economia centrada em valores distintos, próprios de suas tradições e formas de vida.

 

Spence talvez seja menos conhecido, mas Paine é um autor cujas ideias são reivindicadas explicitamente por alguns pensadores contemporâneos, como Piketty.

 

A proposta de reforma tributária e de capital base ou herança universal apresentada por Piketty, nos últimos capítulos de Capital e Ideologia, é explicitamente uma cópia do que Paine diz em Justiça Agrária. O relato de Piketty é justamente que os limites políticos descobertos pela Revolução Francesa, que são também os limites descobertos por Paine no momento de fazer essa proposta, são os que de alguma forma deveríamos retomar.

 

De fato, é muito interessante comparar os dois porque o espírito é exatamente o mesmo: um imposto às heranças para financiar uma herança universal para todos e uma pensão vitalícia para os idosos. A proposta é claramente essa em Paine e em Piketty.

 

Existem semelhanças entre o projeto de Piketty e as propostas contemporâneas de Renda Básica mais conhecidas e consolidadas, como as de Van Parijs e Raventós?

 

David Casassas publicou, recentemente, um artigo muito bom que considero que acerta muito ao falar em “dividendo social”. O que há em comum na Renda Básica, que seria mais próxima à proposta feita por Spence, e a de Paine, que, por outro lado, deveríamos chamar de “capital básico”, por não ser uma renda mensal, mas uma cota única que te dão aos 21 anos, está no fato de que as duas são distribuições de dividendos sociais.

 

Van Parijs distingue entre as duas propostas e argumenta que prefere uma renda em vez de um capital básico, porque quando se herda o capital básico, quem já tem um conhecimento acumulado familiarmente sobre como administrar grandes capitais de um só bloco leva uma vantagem e muitas pessoas podem perder o capital assim que o receber, ao passo que a renda tem o benefício de também dividir a capacidade de correr riscos.

 

Por fim, apesar de ser muito importante a rigorosa definição de Renda Básica como um benefício monetário universal, incondicional e individual, para mim o debate aberto pela proposta de Paine é a ideia de renda como direito de cidadania ou direito à existência, assim como aceitamos que temos o direito à saúde, direito à educação...

 

Dentro disso, considero que entram ambos: dinheiro como direito de cidadania, não por ser pobre ou por se desempregado ou por outras razões normalmente vinculadas ao mercado de trabalho, mas a partir de outro lugar que nos torne “derechohabientes”, como dizem no México.

 

Nos últimos tempos, a Renda Básica recebeu alguns apoios inesperados do Papa, do Financial Times e do vice-presidente do Banco Central Europeu. Ao mesmo tempo, é uma proposta que continua gerando tensões dentro da esquerda, algo que você atribui à sobrevivência de certa “épica do trabalho”.

 

Cada vez sou menos a favor de se colocar a proposta de trabalho garantido e a renda básica como dois espelhos para debater, pois considero que há um ponto em que as duas propostas acabam sendo um pouco distorcidas. Também sou favorável a não se colocar a renda básica como se fosse em si uma proposta antitrabalho.

 

Para mim, o modo mais forte de romper essa dicotomia tem sido o feminismo. A forma como temos que debater os cuidados continua no centro de uma renda básica. Seria simplesmente uma justificativa diferente de como podemos sustentar outros tipos de trabalho. Seria muito mais deixar de fora a centralismo do emprego, mas não o trabalho. Penso que isso ajuda um pouco a desfazer alguns desses debates.

 

Na prática, o que as experiências de renda básica demonstram é que as pessoas, de alguma forma, continuam trabalhando. Isto é coerente com o que se vê há muito tempo: quando há informações sobre pessoas que ganham grandes quantidades de dinheiro na loteria ou o que quer que seja, seguem trabalhando de alguma maneira e mais se ampliamos o foco do que é “contribuir” com a sociedade.

 

Já começa a surgir certa quantidade de evidências empíricas que sustentam que quando a renda é incondicional, ou seja, você não perde nada e verdadeiramente a assume como o acesso à saúde ou educação, é incorporada de outra forma. É uma espécie de solo que você tem atrás de si.

 

Todas as perguntas que tínhamos antes sobre como nos vincular socialmente aparecem de todas as formas com a renda básica. Nesse sentido, não é nenhuma resposta definitiva. É só um grãozinho a mais que permite a você um maior grau de liberdade dentro de um mundo que continha sendo capitalista e submetido às suas tensões.

 

Considera que o feminismo e o ecologismo “são dois grandes movimentos que poderiam incorporar formas de renda básica em suas propostas”. De fato, explica que a origem contemporânea da Renda Básica se dá nos anos 1980, no ambiente dos novos partidos verdes belgas e holandeses.

 

Claro, Philippe Van Parijs, de fato, veio do ambiente do Partido Verde na Bélgica. Há toda uma história aí, que é parte do que eu estou trabalhando agora na tese. Mas não só isso, muitas das propostas de Renda Básica que houve no século XX na Inglaterra também estão relacionadas ao movimento feminista. Todos os debates que havia, sobretudo durante a Primeira Guerra Mundial ou no período entreguerras, que foi quando se começou a dar dinheiro às mulheres dos soldados que estavam na guerra, ativaram uma série de demandas dentro dos movimentos de mulheres para exigir acesso à renda fora do mercado de trabalho onde estavam os homens.

 

Eram mulheres que a solicitavam. Rhys-Williams é uma das primeiras defensoras da proposta. Depois, foi associada a Milton Friedman, em 1963, mas foi ela que em 1945 a solicitou. Era membro do Partido Liberal britânico, mas a lógica que havia por trás era fazer com que as mulheres tivessem acesso à renda de forma independente. Essas mulheres haviam tido o exemplo de que isso era possível, durante as duas Guerras Mundiais.

 

O mesmo acontece com o ecologismo. Sobretudo, considero que tem maior potencial quando estamos falando em custos da transição ecológica e de que, evidentemente, gerará ganhadores e perdedores (o exemplo que sempre é apresentado são os coletes amarelos na França).

 

A Renda Básica – e penso que em Paine e em Spence há muitos argumentos interessantes nesse sentido – é uma forma equitativa de dividir os custos da transição ecológica. Ou seja, você está dividindo os custos de uma coisa que é patrimônio de todos, que é sustentar o mundo onde vivemos. O financiamento com impostos ao carbono, distribuídos na forma de Renda Básica, é uma maneira razoável de fazer a transição de modo mais justo. Pagam os que mais poluem, recebem todos.

 

Essa é uma das coisas da Renda Básica que também me fascina, que se encaixa com muita gente diferente, em muitos debates diferentes. Cabe no feminismo, no ecologismo, em parte do sindicalismo... Esse é o potencial político que tem. Também cabe aos “maus”, ao Vale do Silício e a Murray, que é um ultraliberal que a propõe como uma forma de destruir o Estado de bem-estar. E em todos os lados você encontra detratores e proponentes.

 

 

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