Quem são os jovens “sem religião”?

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13 Mai 2022


Eles já são maioria em SP e Rio. Não seguem doutrinas específicas, mas cultivam elementos de religiosidade. Porém, suas pautas culturais e de gênero e a luta antirracista muitas vezes entram em choque com a agenda moral das igrejas

 

A reportagem é de Thais Carrança, publicada por BBC News Brasil e reproduzida por Outras Palavras, 11-05-2022. 

 

“Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar… Acredito em energias, no universo…”

 

Assim Mariana Oliveira Viana, de 21 anos e moradora do Rio de Janeiro, definiu em uma rede social suas crenças. Manicure autônoma e moradora do bairro de Irajá, na Zona Norte do Rio, Mariana tem parte da família evangélica, uma mãe que frequenta a umbanda e um irmão de 24 anos que, como ela, não segue uma religião, mas acredita em Deus.

 

“Minha família sempre deixou que o outro tenha total liberdade, ninguém fica questionando nada a ninguém”, conta Mariana à BBC News Brasil. Não batizada em nenhuma religião, a jovem frequentou terreiros e igrejas, e diz ter se sentido bem em todos esses lugares. Assim, decidiu não escolher uma religião e acreditar em tudo. “Fui abrindo a mente com isso com o tempo, fui amadurecendo, no sentido de ter respeito por todas as religiões e ter a mente aberta com isso.”

 

Os “sem religião” no Censo e no Datafolha

 

Mariana é uma de milhares de jovens brasileiros que se auto definem como “sem religião”, grupo que já supera católicos e evangélicos entre a população de 16 a 24 anos no Rio e em São Paulo, segundo as primeiras pesquisas Datafolha do ciclo eleitoral de 2022. No Censo de 2010, os sem religião eram 8% da população brasileira, ou mais de 15 milhões de pessoas. Esse percentual vem crescendo década após década: os sem religião eram 0,5% da população brasileira em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991 e 7,3% em 2000.

 

Com o adiamento do Censo populacional de 2020 para este ano, devido à pandemia, ainda não é possível saber de forma definitiva o que aconteceu com a religiosidade brasileira na última década. Mas as pesquisas eleitorais, cujas amostras são construídas com objetivo de refletir a realidade da população brasileira, dão pistas importantes neste sentido. As primeiras pesquisas Datafolha de 2022, por exemplo, mostram que, em nível nacional, 49% dos entrevistados se dizem católicos, 26% evangélicos e 14% sem religião — já acima dos 8% sem religião identificados no último Censo. Entre os jovens de 16 a 24, o percentual dos sem religião chega a 25% em âmbito nacional.

 

Nas pesquisas Datafolha para Rio de Janeiro e São Paulo, o crescimento dos brasileiros que se dizem “sem religião” é ainda mais marcante, particularmente entre os jovens. Em São Paulo, os jovens de 16 a 24 anos que se dizem sem religião chegam a 30% dos entrevistados, superando evangélicos (27%), católicos (24%) e outras religiões (19%). No Rio, os sem religião nessa faixa etária chegam a 34%, também acima de evangélicos (32%), católicos (17%) e demais religiões (17%).

 

Mas o que significa ser “sem religião” no Brasil? Por que esse grupo cresce, e como isso se relaciona com a diminuição da população católica e ascensão das religiões evangélicas no país? Por que esse fenômeno é maior entre os jovens e nas grandes cidades? E que relação tudo isso tem com o comportamento eleitoral da juventude brasileira?

 

A BBC News Brasil ouviu três cientistas sociais especialistas em religião para explicar o fenômeno.

 

Quem são os brasileiros “sem religião”

 

Em primeiro lugar, é preciso ter clareza que apenas uma minoria dos “sem religião” no Brasil são ateus ou agnósticos. Os ateus são pessoas que não acreditam na existência de Deus, já os agnósticos avaliam que não é possível afirmar com certeza se Deus existe ou não.

 

No Censo de 2010, por exemplo, dos 15,3 milhões de brasileiros que se diziam sem religião, apenas 615 mil (4% dos sem religião) se consideravam ateus e 124 mil se afirmavam agnósticos (0,8%). “A maior parcela dos sem religião tem a ver com uma desinstitucionalização, o que quer dizer que o sujeito está afastado das instituições religiosas, mas ele pode ter uma visão de mundo e até mesmo práticas pessoais informadas por crenças religiosas”, explica Silvia Fernandes, cientista social e professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

 

Entre outros livros, ela é autora de Jovens religiosos e o catolicismo — escolhas, desafios e subjetividades (Quartet/FAPERJ, 2010), Novas Formas de Crer — católicos, evangélicos e sem-religião nas cidades (Promocat, 2009) e organizadora de Mudança de religião no Brasil — desvendando sentidos e motivações (Palavra e Prece, 2006).

 

“Então esse sujeito é sem religião porque não está vinculado a uma igreja, porque não frequenta, mas pode ter crenças relacionadas a alguma religião que já teve ou ter uma dimensão mais pluralista da religiosidade”, diz a especialista. “Ele incorpora elementos de uma espiritualidade mais fluida, pode fazer um sincretismo [misturar elementos de diferentes religiões], pode ter crenças muito associadas ao universo do cristianismo — acreditar em Deus, em Jesus, em Maria — mas seguir se declarando sem religião.”

 

Mariana, a carioca de Irajá que acredita em Deus, em Jesus, nas entidades da umbanda e em energias, é um exemplo típico desses brasileiros sem religião, mas de forma alguma sem fé.

  

Por que cada vez mais brasileiros se dizem “sem religião”

 

Regina Novaes, pesquisadora do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), observa que a fase dos 16 aos 24 anos, onde os “sem religião” são mais presentes, é uma fase de experimentação. “Há uma trajetória de busca e experimentação que foi colocada para as novas gerações que não era colocada para as antigas”, diz a pesquisadora.

 

Ela observa que, atualmente, muitos jovens crescem em famílias plurirreligiosas, por exemplo, com avó mãe de santo, pai católico não praticante e mãe evangélica. Esses jovens não sentem a obrigação de seguir uma religião de família e tendem a buscar uma religiosidade própria. Essa fase de experimentação pode seguir dois caminhos: uma busca que resulta mais tarde na escolha de uma religião; ou a construção de uma síntese pessoal, em que a pessoa se diz “sem religião” por não pertencer a nenhuma igreja, mas combina diversos elementos de fé.

 

“Isso é interessante, porque havia uma ideia de que, com o passar do tempo e o avanço da secularização [processo através do qual a religião perde influência sobre as variadas esferas da vida], haveria um aumento das pessoas que se desvinculariam da fé, do sobrenatural. Mas isso não está acontecendo. O que está acontecendo são outros modos de ter fé”, diz Novaes.

 

A pesquisadora observa que esse é um fenômeno que vem desde a década de 1990, mas há outros dois processos mais recentes que têm contribuído para o avanço dos “sem religião”.

 

 

Luta antirracista e “desigrejados”

 

O primeiro deles é a emergência das religiões afro-brasileiras como uma opção cultural, diante do fortalecimento da luta antirracista no país. “Junto à questão racial, vem a questão da ancestralidade. Então há muitos jovens que deixam de ser católicos, protestantes, evangélicos e se ligam a um terreiro, a uma mãe de santo ou pai de santo”, diz Novaes. “Mas há também uma parcela que não vai se ligar institucionalmente, mas vai se sentir parte de uma cultura. Então eles podem se dizer sem religião, mas participar de festas, cultuar orixás, usar signos como turbantes e colares, como parte de um processo identitário.”

 

Um segundo fenômeno são as novas gerações de evangélicos, criados na igreja, mas que passam a ter problemas com seus pastores, por questões morais, comportamentais, por críticas políticas ou com relação à maneira de conduzir a igreja. Muitos desses jovens vão para outras igrejas, como as alternativas ou inclusivas. Mas há um outro grupo que passa a se definir através de uma palavra nova: são os “desigrejados”, jovens que seguem partilhando do mundo evangélico, mas que ficam sem igreja.

 

“Ao ficar sem igreja, muitos desses jovens podem passar a se definir como sem religião. Porque, diferentemente do catolicismo, em que o batizado católico é, no mundo evangélico, a frequência à igreja é fundamental para a pessoa se definir”, observa a especialista.

 

Um fenômeno jovem e urbano

 

Para Ricardo Mariano, professor da USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Loyola, 1999), a perda de força da Igreja Católica é um dos motivos que explicam o avanço dos “sem religião”. Em 1950, quase 94% da população brasileira se dizia católica, percentual que caiu a 65% no Censo demográfico de 2010. Como indicativo, a cifra está em 49% entre os entrevistados do Datafolha de 2022.

 

“O forte declínio dos católicos em idade de reprodução contribui para a redução no número de crianças educadas em famílias católicas e consequentemente, dos jovens com formação católica”, observa o sociólogo.

 

“Além disso, a Igreja Católica tradicionalmente tem um enorme contingente de católicos ditos ‘nominais’, ou seja, que não frequentam os cultos, não estão expostos às autoridades eclesiásticas e nem às suas orientações doutrinais, morais e comportamentais”, acrescenta. “Isso também reduz a socialização religiosa intrafamiliar, aquela que ocorre dentro da família, o que torna menos provável que os filhos de pais católicos permaneçam na religião ou sejam por ela influenciados.”

 

Para o pesquisador, outro fator que explica a maior parcela de jovens sem religião é o fato de que esse grupo tem redes de sociabilidade mais diversas — diferentemente, por exemplo, dos idosos, cuja sociabilidade muitas vezes é restrita à família e à igreja — e está exposto a múltiplas fontes de informação, como colégios, universidades, redes sociais e veículos midiáticos. “Os jovens ocupam seu tempo engajados em atividades de lazer e entretenimento — o funk, o hip hop, blocos e escolas de carnaval, e por aí vai — que muitas vezes entram em conflito com orientações comportamentais e morais das igrejas cristãs mais conservadoras”, observa.

 

Para Silvia Fernandes, da UFRRJ, isso ajuda a explicar também por que os “sem religião” são em maior número nos grandes centros urbanos, como Rio e São Paulo.

 

“É preciso considerar que mais de 80% da população brasileira hoje é urbana. E, nas grandes cidades, há uma celeridade da vida e acesso a uma multiplicidade de informações que colocam a religião como uma das esferas possíveis da existência, mas ela não é mais tão determinante para a sociabilidade e o encontro como no mundo rural”, diz Fernandes.

 

Escolhas eleitorais

 

Há relação entre o aumento do número de jovens “sem religião” e o fato dessa parcela do eleitorado ser uma das que mais indica intenção de voto em Lula (PT) nas eleições de outubro, já que Jair Bolsonaro (PL) construiu sua imagem como um candidato da comunidade evangélica?

 

Aqui, os especialistas têm visões diversas.


Para Ricardo Mariano, da USP, isso é sim um fator que contribui para a melhor performance da candidatura petista junto a esse segmento da população. “O governo Bolsonaro abraçou pautas morais ultraconservadoras, as armas, homofobia, autoritarismo, políticas antiecológicas e anticientíficas, sobretudo na pandemia. Tudo isso afastou muito os jovens”, observa o professor. “Eles [os jovens] têm acesso a muita informação e tendem a ser menos conservadores em uma série de pautas. Por isso a rejeição maior ao governo Bolsonaro”, avalia.

 

Regina Novaes, do ISER, destaca que é preciso ter clareza que, assim como os sem religião são uma categoria fluida, os evangélicos não são um grupo estático. “Sim, é possível pensar que mais jovens longe das igrejas, fazendo suas escolhas, também possam fazer escolhas mais questionadoras e por isso se aproximar do Lula. Mas qual é o perigo dessa pergunta?”, questiona a pesquisadora. “É achar que os jovens evangélicos são estáticos, e que eles são [eleitores de] Bolsonaro, enquanto os sem religião são [eleitores de] Lula. Isso não é verdade. Os evangélicos não são essa massa de manobra que o Bolsonaro pensa que são, eles têm cor, têm classe social, têm local de moradia. Esse é um ponto bem importante e acredito que vamos conhecer melhor o mundo evangélico nessas eleições”, avalia.

 

Programação do Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas

 

Brasil pode nunca vir a ser país de maioria evangélica?

 

O crescimento dos sem religião coloca uma dúvida para o futuro do Brasil: pode ser que o país nunca venha a ter uma maioria evangélica, como chegaram a prever alguns analistas? Olhando para os dados, vemos que, do Censo de 2000 para o de 2010, o percentual de evangélicos no Brasil saltou de 15% para 22%, e os católicos diminuíram de 74% para 65%. Já na pesquisa Datafolha desse início de ano para o Brasil como um todo, os católicos são 49% dos entrevistados, evangélicos 26% e os sem religião, 14%.

 

Embora as pesquisas não sejam diretamente comparáveis, pela diferença de abrangência e metodologia, os números do Datafolha trazem algumas pistas do que esperar para o próximo Censo. “O declínio histórico do catolicismo continua, com a Igreja Católica perdendo fiéis a cada década. Mas, ao mesmo tempo, você não tem os evangélicos crescendo na mesma proporção e parte disso é explicado por esse fenômeno dos sem religião”, diz Fernandes, da UFRRJ.

 

Para a professora, alguns fatores explicam a perda de ímpeto da expansão evangélica: em primeiro lugar, as igrejas pentecostais e neopentecostais deixaram de ser uma novidade. Um segundo fator é a diversificação na oferta dessas igrejas, que faz com que elas disputem entre si pelos fiéis, contribuindo para esse processo de experimentação característico da experiência religiosa mais fluida da contemporaneidade. Por fim, com as igrejas evangélicas já em atividade há décadas no país, há uma parcela dos fiéis que se decepcionaram com promessas não cumpridas de cura, milagres e prosperidade, ou que não conseguem se integrar às rígidas normas morais e comportamentais, engrossando as fileiras dos “sem religião”.

 

Para Mariano, da USP, ainda assim é de se esperar que os evangélicos sejam um dia maioria. “É inevitável até por razões demográficas, o perfil dos católicos no Brasil é mais rural, mais velho do que os evangélicos. Os pentecostais têm um contingente enorme de pessoas em idade reprodutiva, mais do que os católicos, além disso, essas igrejas têm uma grande capacidade de recrutamento e manutenção de adeptos. Então é uma questão de tempo”, afirma.

 

Regina Novaes, do ISER, tem outra visão. “É difícil fazer ‘profecia’ sociológica, mas acredito que o Brasil não será um país evangélico. Por dois motivos: o catolicismo não é mais ‘a religião dos brasileiros’, mas ainda é da maioria dos brasileiros. Ateus e agnósticos vão continuar sendo minoria, mas a categoria dos sem religião passa a fazer parte das alternativas presentes do campo religioso”, observa.

 

“Agora, a ideia é não olhar para os sem religião como uma coisa estática, porque as ofertas [religiosas] continuam existindo. E o lugar que a religião tem na vida — de dar sentido a ela, de tornar o sofrimento ‘sofrível’ — continua existindo. Então as religiões continuam a ser recursos culturais para os sem religião”, acrescenta. “O Brasil continuará um país de maioria católica, os evangélicos crescerão ainda, mas os sem religião passam a ser uma possibilidade que tem de ser observada.”

 

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