Worship - Jovens, música e coaching cristão. A presença evangélica no espaço público brasileiro. Entrevista especial com Taylor Pedroso de Aguiar

"Prolifera-se nos últimos anos um movimento de coaches – especialistas no processo de desenvolvimento pessoal conhecido como coaching – que incorporam referências bíblicas e religiosas em suas metodologias e se autointitulam cristãos", afirma o antropólogo

Foto: Brasa Church | Reprodução do Facebook

Por: Patricia Fachin | 12 Mai 2022

 

"Estamos vivendo um momento de importante mudança na paisagem religiosa brasileira, quando o Brasil deixa de ter uma maioria católica e ruma para uma maioria evangélica em alguns anos", diz o antropólogo Taylor Pedroso de Aguiar ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Nessa transformação em curso, observa, "religião, música e juventude poderão então ser temas de interesse nacional, embora já pudessem sê-lo, pois se trata de dinâmica social 'fervilhante'”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele explica como o "processo de pentecostalização" transformou a primeira igreja Batista brasileira em Porto Alegre, fundada em 1910, que vem passando por uma mudança desde a década de 1980. Nesta transformação, os jovens têm um papel predominante na vivência do worship, que, segundo Aguiar, "não consiste apenas em um estilo musical e em uma tendência de culto", mas, "um 'estilo de vida' que produz uma determinada postura cristã diante da 'cultura' e da vida no 'mundo'".

 

Ele explica:

 

"A incorporação desse estilo de vida, que compreende um sentimento de adoração em tempo integral a Deus, e não somente no âmbito do culto, é tomada como algo que deve influenciar toda e qualquer ação na vida privada e pública dos indivíduos. Isso obviamente possui consequências vastas, uma vez que 'cultura' tem sido historicamente entendida, no meio evangélico brasileiro, como um espelho do 'mundo', ou do espaço secular. Não obstante, tudo o que é considerado como parte da 'cultura' é posto em contraposição à 'igreja', ou seja, ao que se aparta do 'mundo' e por ele não se contamina".

 

Taylor Pedroso de Aguiar também comenta alguns pontos de sua pesquisa doutoral em andamento, que trata sobre o coaching cristão como uma forma de ocupação evangélica do espaço público no país. "Esse é realmente um tema muito intrigante e que, tenho absoluta certeza, continuará recebendo a atenção da sociedade nos próximos anos. (...) O objetivo mais direto [da pesquisa] é discutir como a especificidade de um coaching que se afirma como 'cristão, mas não-religioso' coloca desafios aos estudos sobre religião, laicidade e espaço público no Brasil. (...) Não tenho dúvidas de que o coaching cristão é um dos espaços emergentes em que experimentos capitaneados por evangélicos mais têm germinado na sociedade brasileira".

 

 


Taylor Pedroso de Aguiar (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Taylor Pedroso de Aguiar é graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, está realizando doutorado em Antropologia pela UFRGS, associado ao Groupe Sociétés, Religions, Laïcités (GSRL), na École Pratique des Hautes Études (EPHE), em Paris, França.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Qual é a orientação teológico-doutrinária da Brasa Church? Pode nos contar sobre a história da igreja?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - É importante destacar este aspecto histórico para fazer uma primeira diferenciação. As origens da Brasa Church remontam ao ano de 2013, quando um novo estilo de música, culto e adoração, conhecido como worship, passou a ser implementado nos cultos de jovens da Igreja Brasa matriz, em Porto Alegre. Note-se que “igreja” e “church” são termos que fazem referência a duas dimensões da mesma organização religiosa. Brasa Church é o nome atribuído ao culto e ao ministério de jovens erigidos sob a influência do worship na Igreja Brasa. Essa instituição conta com uma história mais longa e complexa. Surgida como Primeira Igreja Batista Brasileira de Porto Alegre, em 1910, a Brasa figurou como uma igreja batista histórica/tradicional por mais de sete décadas, até passar por um processo de pentecostalização ao longo dos anos 1980. Foi nesse momento, em resposta à experimentação de fenômenos associados ao Espírito Santo, como a glossolalia – ou a capacidade de falar em línguas espirituais, incompreensíveis à inteligibilidade humana –, que a instituição mudou seu nome para Ministério Brasa e se tornou uma igreja independente, dissociando-se da Convenção Batista Brasileira (CBB). Mas as raízes batistas se mantiveram presentes na orientação teológico-doutrinária da igreja até os dias atuais, mesclando-se com concepções e práticas pentecostais/renovadas.

 

Pentecostalização no meio batista brasileiro

 

Esse movimento de pentecostalização, aliás, tem sido comum no meio batista brasileiro desde pelo menos os anos 1960, quando houve a criação da Convenção Batista Nacional (CBN). Pode-se dizer que, em tese, a Brasa Church segue alinhada teologicamente com o restante da Igreja Brasa, pois faz parte dela como seu “braço” juvenil. No entanto, tensões entre a juventude e outros segmentos da igreja, marcados por um perfil generacional discrepante, têm sido historicamente cruciais para transformações eclesiais que desembocam em consequências teológicas, como demonstro no terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado. Uma delas é propriamente a passagem efetuada de uma igreja batista histórica para uma igreja batista renovada. A juventude da Igreja Brasa, existente desde os primórdios da instituição, desempenhou papel fundamental nesse processo. Nos anos 2010, ela assume outra característica com a incorporação do modelo worship, tornando-se Brasa Church.

 

 

IHU - Qual é o perfil dos jovens que participam dos cultos da igreja?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - Há pelo menos dois perfis que se fazem bastante visíveis. O primeiro é o dos jovens que participam efetivamente da igreja, ou seja, os que são membros dela e compõem o staff da Brasa Church, estando integrados às equipes de voluntários que desempenham funções variadas dentro dos cultos. Existem “times” treinados e dedicados especialmente à música, à recepção, à produção audiovisual, ao acolhimento de novos convertidos etc. A presença desse perfil de jovens nos cultos segue uma regularidade condizente com o seu grau de pertencimento à instituição religiosa. Grupo diferente é o dos frequentadores, cuja heterogeneidade requer algumas observações.

 

Em minha pesquisa, pude verificar a circulação de jovens de diversas denominações evangélicas como frequentadores assíduos dos cultos da Brasa Church. As motivações que os levam a assumir tal condição revelam, de um lado, uma forte inclinação ao que entendem ser uma experiência “mais livre” com Deus, desenvolvida em um ambiente de culto mais afinado com as suas sensibilidades em relação ao sagrado do que os ambientes “tradicionais” que encontram em suas próprias comunidades de fé; e, de outro, um desejo pragmático de contato e conhecimento da tendência worship para posterior replicação em suas igrejas de origem.

 

Ambos os perfis têm similaridades, principalmente no que diz respeito a marcadores socioeconômicos – roupas de grife e nível de escolaridade superior são uma constante, indicando uma preponderância de participantes de classe média ou de aspirantes a tal condição. Mas não há nos frequentadores, em contraposição aos membros, uma postura de aderência à vida comunitária da igreja, o que lhes guardaria acesso a posições de liderança e influência na dinâmica ritual dos cultos. Sua participação está mais atrelada à circulação e ao contato com o worship do que a uma “conversão” à instituição religiosa.

 

 

IHU - O que é o worship?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - Em tradução livre do inglês, worship quer dizer simplesmente “adoração”. Como o vocábulo em língua portuguesa assume uma conotação bastante geral, pouco fiel ao que é entendido por ele no contexto juvenil dos worshippeiros – apelido pelo qual os entusiastas do worship têm se tornado conhecidos no meio evangélico –, o anglicismo sempre é mantido para fazer referência à tendência/estilo de adoração homônima. Com base em meu trabalho etnográfico na Brasa Church, procuro definir o worship a partir de um tripé que abrange três de suas principais características: estilo musical, tendência de culto e cultura de adoração.

 

Enquanto estilo musical, o worship se notabiliza pelas suas marchas-baladas de longa duração, com passagens lentas entre refrães repetitivos. Há oscilações severas entre tons mais “fortes” e mais “fracos”, estes últimos incutindo uma sensação generalizada de calmaria que se segue à agitação comum do público nos refrães.

 

 

És Bem-Vindo (Ao Vivo) | Brasa Church Music | Giselle Knevitz, Amauri Knevitz Jr.

 

 

As canções provêm de traduções de um repertório internacional ligado a bandas de igrejas como a australiana Hillsong Church e a estadunidense Bethel Church, ambas referências para o público jovem evangélico na contemporaneidade e agentes centrais na popularização do modelo worship pelo mundo.

 

A Moment In Worship | April 17th 2022 | Hillsong Church Online

 

 

Jenn Johnson & Bethel Church - Worship Medley - What a Beautiful Name – Alleluia

 

 

Em termos de tendência de culto, a ambientação do templo/local ritual é determinante: paredes ou cortinas pretas, som alto, luzes de festa, fumaça artificial, aparato de captura de vídeo e som para transmissão ao vivo ou produção de clipes, telões e outros elementos tecnológicos de mesma ordem aproximam o culto de uma forma espetacular. A estética dos cultos worship é propícia ao que considero uma cultura de adoração peculiar, marcada pelo apelo à expressão de determinadas emoções que se concretizam em choros, orações e outras manifestações espirituais, dentro de um ambiente em que a escuridão é tomada como estratégia eclesial planejada para que as pessoas se sintam mais livres para sentir a “presença do Espírito”.

 

Essa formatação estratégica do culto em uma estética worship é indissociável do estilo musical que lhe acompanha. Em minha pesquisa, pude acompanhar uma fase do desenvolvimento desse modelo estético-musical na Brasa Church, quando os cultos da juventude se realizavam no templo da Igreja Brasa matriz. Atualmente, eles acontecem no amplo espaço do Teatro Bourbon Country, na zona norte de Porto Alegre, depois de terem ocorrido por um período no auditório do Hotel Plaza São Rafael, no Centro. A ambientação “espetacular” desses dois lugares é a mesma que se procurava criar na igreja.

 

 

IHU - Qual é o conteúdo das letras cristãs cantadas na Brasa Church?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - Em linhas gerais, pode-se dizer que as letras enfatizam fortemente temas sentimentais, como o amor de Deus e a relação próxima estabelecida entre a divindade e o humano. O conteúdo é bastante distinto do repertório mais disseminado no mercado musical evangélico, associado ao pentecostalismo e ao gênero popularmente conhecido como “louvor e adoração”. Neste se sobressai uma narrativa triunfalista, de constante luta e vitória, em que Deus atua como o fiel ajudador de seu povo nas batalhas duras da vida cotidiana. Essa observação já seria suficiente, por si só, para demonstrar como musicalidades diversas podem coexistir com diferentes públicos dentro de um mesmo universo religioso.

 

 

Worship X música pentecostal de classes populares

 

Mas eu gostaria de insistir em um ponto específico desse contraste – o socioeconômico – para continuarmos falando de conteúdo musical. Um fato relevante é que a música apreciada pelos jovens que frequentam os cultos worship se distancia da que é reproduzida nos pentecostalismos de classes populares, e isso, em minha opinião, se dá tanto pelo que expressa o conteúdo de suas letras quanto pelas condições de possibilidade de sua reprodução como uma estética da adoração. Se, por um lado, podemos supor que o “sentimentalismo romântico” na relação de fé desenvolvida com Deus e as narrativas de superação das agruras da vida pelo auxílio divino revelam preocupações delineadas por situações socioeconômicas específicas nas letras musicais, por outro, a realização mesma dos cultos worship, com toda a estética que os envolve, tem limites que se colocam nesses termos e que acentuam o contraste entre públicos diferenciados.

 

O aparato tecnológico indispensável à produção de cultos sob a tendência worship requer investimentos financeiros consideráveis a qualquer igreja ou grupo de jovens que queira praticá-la. Instrumentos musicais de ponta, aparelhagem de som e vídeo, tecnologia para formatar um ambiente “espetacular”... Tudo isso torna o worship economicamente caro, excluindo determinados públicos de sua fruição ritual – ao menos na replicação desse estilo em igrejas de origem que não disponham de condições materiais suficientes para tal, pois, como já observamos anteriormente, o contato com o worship pode se dar na frequência a comunidades já estabelecidas, a exemplo da Brasa Church. Com isso, quero apontar para o fato de que busquei interpretar as letras e o conteúdo musical do worship em complementaridade com o que se chamaria de “forma”, ou seja, as condições materiais de realização de uma “estética da adoração worship” mais ampla.

 

 

IHU - Quais são as influências musicais presentes na música gospel?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - Durante a segunda metade do século XX, a música evangélica se diversificou enormemente no Brasil e no mundo, em um processo com desdobramentos que ainda presenciamos. Embora existam antecedentes históricos dessa profunda diversificação, sobretudo no protestantismo de igrejas negras dos Estados Unidos, o que remonta até mesmo ao século XIX, foi nas décadas de 1980 e 1990 que o nosso país – para não fugirmos do escopo que nos é familiar – experimentou um boom de influências diversas na composição do que passou a ser compreendido como música gospel.

 

Até então, a hinologia protestante tradicional era comumente reproduzida nos cultos de igrejas históricas e pentecostais, sem maiores e mais “barulhentas” inovações. Esse cenário se alterou radicalmente quando começaram a surgir cantores, bandas e grupos de louvor com inserção em um crescente mercado fonográfico evangélico e nas mídias de massa e, mais recentemente, em selos reservados à produção musical religiosa por gravadoras seculares. Gêneros como o sertanejo, o rock, o pop, o funk, o axé, o forró, dentre os mais variados possíveis, passaram a fazer parte de um inédito universo multifacetado de expressões musicais evangélicas.

 

Aonde Está Deus? "ao vivo" | Mauro Henrique

 

FUNK GOSPEL 2017 - Felipe Brito e Dj Robinho de Jesus Só Quem é Cristão Web Lyric

 

 

FUNK GOSPEL 2017 - FELIPE BRITO - ENTÃO VEM -【FUNK RESGATE 】

 

 

Com a categoria “gospel”, sufixou-se a identidade propriamente evangélica dessa música – sertanejo gospel, rock gospel etc. – e de um amplo mercado de produtos e serviços direcionado para as demandas de consumo desse público religioso. Constituíram-se, assim, não somente uma música gospel, mas também livrarias gospel, lojas de roupas gospel, canais de televisão gospel, sex shops gospel, e assim por diante. Magali do Nascimento Cunha, uma das maiores pesquisadoras das dinâmicas que envolvem o universo evangélico no Brasil, cunhou o conceito de “cultura gospel” para se referir a esse fenômeno social. Proponho a leitura de seu clássico livro “A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil” (2007), que traz um panorama extenso de como o gospel brasileiro veio a se constituir. No artigo Promovendo a ‘cultura do Reino’” e no segundo capítulo de minha dissertação – “A ‘cultura’ para o Reino: materialidades e sentidos da adoração em uma juventude evangélica em Porto Alegre” –, dialogo com a noção de “cultura gospel” e proponho uma releitura em torno de seus limites a partir da pesquisa sobre o worship na Brasa Church. Meu argumento central é o de que a categoria se tornou um tanto genérica para pensar em transformações mais recentes e contemporâneas, como é o caso do próprio worship.

 

Trio Salvador A Rocha / Sobrenatural ( Axé Gospel )

 

 

Sertanejo Gospel LANÇAMENTO 2020/2021/2022

 

 

IHU - Que conexões se estabelecem entre religião, música e juventude? Em algum sentido esses três elementos têm gerado transformações em contextos evangélicos contemporâneos?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - Particularmente no caso evangélico, que é o que posso comentar com mais propriedade, há transformações que estão associadas muito fortemente à música e à juventude. De alguma maneira, isso não é nada novo. O protestantismo tem reservado à música um lugar de destaque desde a Reforma, tanto no âmbito ritualístico como fora dele. As diferentes tradições protestantes têm criado formas de louvor que vão de hinários a telões, passando por um misto de ritmos e instrumentos musicais que são ora rejeitados por seu acentuado “mundanismo”, ora são incorporados como indutores de sensações de elevação da alma ou de presença do Espírito Santo. Da música sacra ao worship, nunca houve inovação musical que tenha escapado do escrutínio dos glorificadores do passado ou dos saudadores do futuro – aqueles mesmos que se tornam, invariavelmente, os nostálgicos de amanhã.

 

As juventudes evangélicas têm vivido entre velhos dilemas e novos desafios, assim como suas gerações predecessoras. Os tempos passam e mudam drasticamente a “cara” das músicas e das juventudes. Não é por outra razão que insisto que é hora de não falarmos mais apenas em música gospel, como se por “gospel” pudéssemos entender tudo o que é evangélico e contemporâneo na cena musical e na produção cultural. É verdade que a categoria mantém sua importância na referência a toda uma era da musicalidade evangélica entre a segunda metade do século XX e os anos iniciais do século XXI. Mas o cenário musical evangélico está se modificando profunda e rapidamente nos últimos anos, no Brasil e no mundo todo.

 

 

Aposto minhas fichas na ideia de que as juventudes nos ajudam a renovar o vigor para acompanhá-la, contribuindo para o debate científico e social sobre as religiões. O worship que a Brasa Church e outras milhares de comunidades de jovens evangélicos apresentam hoje se coloca como um desafio ao nosso entendimento sobre o que seja música cristã contemporânea. Atentar para isso, sublinho, também é embarcar na aventura de entender um panorama social que ainda se descortina em nosso país. Estamos vivendo um momento de importante mudança na paisagem religiosa brasileira, quando o Brasil deixa de ter uma maioria católica e ruma para uma maioria evangélica em alguns anos. Religião, música e juventude poderão então ser temas de interesse nacional, embora já pudessem sê-lo, pois se trata de dinâmica social “fervilhante”.

 

IHU - De que formas a vida religiosa dos jovens influencia em demais aspectos da vida deles?

 

Taylor Pedroso de Aguiar - Uma concepção amplamente disseminada entre os jovens da Brasa Church é a de que o worship não consiste apenas em um estilo musical e em uma tendência de culto: ele é, com efeito, um “estilo de vida” que produz uma determinada postura cristã diante da “cultura” e da vida no “mundo”. A incorporação desse estilo de vida, que compreende um sentimento de adoração em tempo integral a Deus, e não somente no âmbito do culto, é tomada como algo que deve influenciar toda e qualquer ação na vida privada e pública dos indivíduos. Isso obviamente possui consequências vastas, uma vez que “cultura” tem sido historicamente entendida, no meio evangélico brasileiro, como um espelho do “mundo”, ou do espaço secular. Não obstante, tudo o que é considerado como parte da “cultura” é posto em contraposição à “igreja”, ou seja, ao que se aparta do “mundo” e por ele não se contamina.

 

 

Transformação da cultura



Alguns analistas têm apontado para essa depreciação evangélica dacultura” – e para o consequente afastamento dela – como um possível fator que explicaria, por exemplo, a pequena incidência de investimentos evangélicos em políticas culturais promovidas pelo Estado, em comparação com católicos e afrorreligiosos. O que eu gostaria de sugerir, em direção divergente, é que essa ética ascética em relação ao “mundo” secular, originariamente dominante nas formas de protestantismo que mais êxito tiveram no Brasil, pode estar se reconfigurando em meio a experimentos sociais contemporâneos que envolvem os evangélicos e o espaço público, e que esses experimentos podem ser localizados em lugares “inusitados”, tais como a música e a adoração.

 

O paradigma ou estilo de vida que o worship visibiliza denota que a “cultura” tem sido agora tratada enquanto um alvo de intervenção direta para a transformação – uma transformação do “mundo” para a “igreja”, ou da “cultura” para o “Reino”. Isso envolve um entendimento da “cultura” como um espaço que pode ser legitimamente ocupado pelos cristãos, desde que estes mantenham uma postura transformacionista. Explorei detalhadamente este aspecto em meu artigo “Promovendo a ‘cultura do Reino’: notas sobre música, religião e cultura a partir de uma juventude evangélica no Sul do Brasil”, onde intento demonstrar, com base na etnografia realizada na Brasa Church, que o engajamento dos jovens com o worship revela aspectos desse modo de relação com a “cultura” e o espaço público, para além de transformações relativas à vida pessoal, em convergência com concepções como a Teologia do Domínio, ou Teologia do Reino.

 

 

IHU - Neste artigo sobre a cultura do Reino, você menciona que "os lemas da Brasa Church refletem a visão de igreja defendida pelos jovens que nela congregam" e que "em todos os cultos, seja através da Palavra ou da música, eles são chamados a viver 'firmados na Palavra' e 'livres no Espírito', sendo estimulados a fazer a diferença no 'mundo'". Na dissertação de mestrado, você também pontua que eles "são estimulados a transformar a 'cultura'". Pode explicar como isso se manifesta nas ações práticas realizadas pelos jovens?



Taylor Pedroso de Aguiar - Todos os anos, a Brasa Church costuma lançar um lema que retrata sua “visão” de igreja para aquele determinado período. Trata-se de uma frase que reflete de forma abrangente a identidade geral do grupo e que serve de estímulo a uma aplicação cotidiana dessa visão na vida de fé, como uma espécie de mote que desafia para a ação. No mundo empresarial, costuma-se falar de visão, missão e valores em sentido parecido. “Firmados na Palavra, livres no Espírito” foi o lema adotado em 2016, quando tive meu primeiro contato com a comunidade. A frase exemplifica bem a perspectiva que o worship engendra: a de preservação da “Palavra”, ou seja, da doutrina e dos ensinamentos da Bíblia Sagrada, em concomitância com a garantia à “liberdade do Espírito [Santo]”. Isso se traduz em duas dimensões constituintes: a “visão de Reino” e a “visão de culto”.

 

 

A primeira é relativa ao que é tido como imutável e deve ser conservado (valores, princípios, doutrinas, fé), e a segunda se refere ao que constitui a “cultura da igreja” e pode, portanto, ser alvo de modificações (estilo musical, vestuário utilizado, tecnologias, tradições). Busca-se mudar a “visão de culto” sem interferir na “visão de Reino”, em um processo que pode ser lido como uma ruptura da forma e uma continuidade do conteúdo da experiência religiosa. O que procuro fazer, de maneira talvez mais bem-sucedida na dissertação do que no artigo, é complexificar esse argumento e questioná-lo através de um recurso às concepções correntes sobre “cultura” entre os jovens da Brasa Church. E o faço levando em conta a ideia de que o worship fornece sentidos para uma intervenção sobre a “cultura”, tomada enquanto espaço vinculado ao “mundo” secular e, portanto, deslocado do que seria o âmbito da “igreja”. O estímulo à transformação da “cultura” passa justamente pela consolidação da perspectiva de que é preciso modificar as condições externas da “cultura” preservando os valores internos do “Reino”. Acompanhando a remodelação dos limites entre “mundo” e “igreja”, as fronteiras entre a vida particular e a vida pública dos cristãos são borradas, gerando consequências que incidem sobre os modos de presença do religioso no espaço público. Minha sugestão é a de que essa dinâmica pode ser mais bem compreendida se atentarmos para a importância atribuída à noção de “cultura do Reino”.

 

 

IHU - O que eles entendem por "cultura do Reino"?



Taylor Pedroso de Aguiar - Para os jovens da Brasa Church, promover uma “cultura do Reino” significa pôr em prática, em âmbitos variados da vida, essa dinâmica de preservação de princípios internos e modificação de condições externas que informa a visão global do worship. Na dimensão propriamente ritual, importa desenvolver uma forma de adoração que incorpore tecnologias, tradições e costumes em uma nova “roupagem”, sem que se perca os princípios absolutos e imutáveis da “visão de Reino” a que a doutrina religiosa está atrelada. Observamos aí uma “cultura do Reino” que se aplica à adoração, ou seja, uma perspectiva eclesiológica que remodela os parâmetros do que seja música e culto evangélicos. Mas, para além disso, existe ainda um outro ponto, com consequências vastas e que é indicativo da relevância das formulações em torno dessa dinâmica transformativa.

 

Aderir ao worship como um estilo de vida implica, fundamentalmente, em estender essa lógica de preservação do “Reino” e de modificação da “cultura” para todo e qualquer domínio da vida cotidiana, e não somente para configurações aplicadas em torno do culto. Em sintonia com o que pregam algumas correntes teológicas, como a Teologia do Domínio, ou Teologia do Reino, a adoção dessa perspectiva estimula o exercício da influência cristã no espaço secular da “cultura”, fazendo com que esta seja transformada, regenerada e retomada para Cristo segundo princípios que concernem ao “Reino”. Não encontramos aqui, portanto, uma postura de simples rejeição ao que seria atinente ao cultural.

 

 

Ainda que a “cultura” permaneça sendo localizada no interior de um “mundo” hostil, ela passa a ser agora um terreno de disputa espiritual, passível de conquista para o “Reino”. E este é propriamente o segundo sentido da “cultura do Reino”: uma perspectiva que informa modos de ação e influência religiosa sobre a cultura, o secular e o espaço público – e sobre aquilo mais que se entenda como exterior à “igreja”. Penso que essas transformações estejam intimamente associadas à reconfiguração nas relações entre evangélicos e espaço público no Brasil de maneira geral, considerando a crescente influência que atores desse segmento religioso vêm tendo em diversas frentes.

 

Uma suposição viável é a de que os evangélicos já não se entendam mais como minoria, mas reivindiquem um novo lugar que lança desafios à compreensão de fenômenos ligados à sua presença na sociedade brasileira. No contexto das juventudes evangélicas, essa reivindicação pode assumir formas como a expressa pelo ideal da “cultura do Reino”. Uma última palavra sobre transformações da adoração: vimos, pelo exemplo mais recente de inovações empreendidas pela Brasa Church, que os cultos worship já prescindem de templos e estruturas tradicionalmente religiosas e chegam ao espaço de auditórios de hotel e teatro, onde se realizam semanalmente. Pode-se imaginar – sempre se pode! – que a ocupação de novos espaços cultuais pelo worship seja uma espécie de metáfora para ilustrar outros modos de “ocupação” evangélica do espaço público no Brasil em gestação.

 

 

IHU - No doutorado, você está pesquisando sobre o "movimento em torno do coaching cristão no Brasil, enfatizando sua presença em igrejas evangélicas, sua relação com agentes e ações estatais e suas formas de incidência sobre o espaço público". Em que consiste esse movimento e quais são as hipóteses de trabalho?



Taylor Pedroso de Aguiar - Na última questão, vínhamos falando sobre reconfigurações nas formas de “ocupação” evangélica do espaço público no Brasil. Esse é realmente um tema muito intrigante e que, tenho absoluta certeza, continuará recebendo a atenção da sociedade nos próximos anos. Particularmente, estou bastante interessado em acompanhar a emergência de práticas, concepções e inovações eclesiais cuja presença tem sido crescente e promissora no meio religioso, a despeito de serem estudadas por pouquíssimas pessoas. Esse pano de fundo inaudito, que dá lastro à originalidade e à criatividade, é algo que me cativa.

 

Já tive a oportunidade de pesquisar a tendência worship na Brasa Church, no mestrado, e as relações históricas entre catolicismo e homeopatia, assim como o acionamento evangélico de políticas culturais em torno do gospel, na graduação. Agora estou envolvido com uma pesquisa de doutorado que busca compreender aspectos da prática de coaching cristão no Brasil, algo que tem sido relevante para além do âmbito das próprias igrejas evangélicas. Prolifera-se nos últimos anos um movimento de coaches – especialistas no processo de desenvolvimento pessoal conhecido como coaching – que incorporam referências bíblicas e religiosas em suas metodologias e se autointitulam cristãos. Ao mesmo tempo, há uma negação de que suas concepções de coaching tenham um caráter “religioso”, em que pese a sua forte presença em cursos, eventos e workshops realizados em igrejas. Tais coaches, em sua maioria, são evangélicos e participam de comunidades de fé, circulando em redes que se estabelecem, em grande medida, a partir da religião. Alguns deles são pastores, como Tiago Brunet, e outros são leigos, como Paulo Vieira.

 

 

Tenha coragem para se arrepender | Café com destino #92

 



O campo empírico mais delimitado da pesquisa envolve o Método CIS (Coaching Integral Sistêmico), metodologia criada por Paulo Vieira e disseminada por coaches formados e credenciados pela instituição por ele fundada, a Febracis (Federação Brasileira de Coaching Integral Sistêmico). Interessa-me perceber, por um lado, como se dá a formação de profetas-empreendedores, ou dos sujeitos do processo de coaching cristão, em dinâmicas intraeclesiais que se valem do método de Paulo Vieira. Nesse ínterim, também exploro controvérsias teológicas em torno da presença do coaching no universo evangélico e trabalho com a noção de teologia econômica, em Giorgio Agamben, para reunir reflexões sobre religião, economia e teologia em um mesmo arcabouço interpretativo.

 

Revelei o segredo do meu sucesso | Nunca imaginei que falaria isso | Paulo Vieira

 

 

Em outro plano, procuro perceber a incidência do Método CIS [O Método C.I.S é um programa de Inteligência Emocional promovido pela Federação Brasileira de Coaching Integral Sistêmico e aplicado pelo Coach Paulo Vieira, conforme exposto no vídeo acima] sobre a formação de profetas-empreendedores em espaços e instituições estatais, sobretudo por meio da oferta de cursos de capacitação e ressocialização de detentos vinculados aos sistemas prisionais de dois estados brasileiros: o Rio Grande do Sul e o Ceará. O objetivo mais direto é discutir como a especificidade de um coaching que se afirma como “cristão, mas não-religioso” coloca desafios aos estudos sobre religião, laicidade e espaço público no Brasil.

 

Até o final de 2022, encontro-me em período de doutorado-sanduíche junto ao Groupe Sociétés, Religions, Laïcités (GSRL), vinculado à École Pratique des Hautes Études (EPHE), na França. Nesse laboratório, tenho procurado me aprofundar na literatura e nas discussões sobre laicidade. Os resultados de pesquisa têm avançado e apontado na direção de um modelo de colaboração entre coaching cristão e instituições estatais que esboça um conjunto de desafios para a tese futura. Enquanto ela ainda não é escrita, notícias chegam a mim e dão conta de que a associação entre coaching e religião ganha novos capítulos e assume renovado fôlego na cena pública brasileira. No feriado de 1º de maio, um dos mais notáveis coaches cristãos do país, Pablo Marçal, promoveu um evento com mais de 15 mil pessoas na Arena Barueri, em Barueri/SP, com a presença de cantores e bandas de louvor do mainstream evangélico nacional, e se lançou como pré-candidato à Presidência da República pelo PROS.

 

EVENTO O DESTRAVAR DA NAÇÃO - (01/05) - 14H | @pablomarcal1

 

 

A agenda política que Marçal tem proposto, designada por ele como “governalismo”, é marcada por uma forte defesa de ideias-chave do coaching, do empreendedorismo e da economia liberal, por um conservadorismo moral acentuado e por um repertório simbólico eivado de referências evangélicas, as quais alimentam, inclusive, o ideário transformacionista da “cultura do Reino”. Referência em marketing digital, Pablo Marçal tem como uma de suas principais estratégias de popularização, para além do uso intensivo das redes sociais, a formação de QGRs (Quartéis-Generais do Reino) em casas, igrejas e empresas, onde congrega pessoas e dissemina suas ideias. A despeito da concretização de sua candidatura, que segue sob ceticismo generalizado, não tenho dúvidas de que o coaching cristão é um dos espaços emergentes em que experimentos capitaneados por evangélicos mais têm germinado na sociedade brasileira.

 

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