Kirill se contradiz?

Patriarca Kirill (Foto: www.kermlin.ru | Wikimedia Commons)

10 Março 2022

 

"Ninguém pode prever se e quando a agressão contra a Ucrânia vai parar. Vladimir Putin certamente jogou seu poder e seu futuro nisso. Da mesma forma o fizeram Kirill e Hilarion", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 09-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

A justificativa teológica da guerra russa na Ucrânia pelos líderes da Igreja Ortodoxa russa, Patriarca Kirill e Metropolita Hilarion, é cortesã, anestésica e arbitrária (A. Grillo, aqui).

 

Mas parece estar em contradição com a doutrina que eles mesmos desenvolveram na frente social há uma dúzia de anos e com a orientação das outras Igrejas Ortodoxas. Em Os Fundamentos do Pensamento Social da Igreja Ortodoxa Russa (n.8) são enumeradas as áreas de colaboração e dissenso do Estado. No topo da lista de atividades de colaboração, se faz referência à “manutenção da paz em nível internacional, interétnico e civil, promovendo o entendimento mútuo e a cooperação entre as pessoas, os povos e os Estados”.

 

Seguem-se cerca de quinze outras atividades (de formação, caridade, valorização do patrimônio artístico etc.). Os temas em que as estruturas eclesiais devem ser alheias e não colaborativas com o Estado são:

 

a) as lutas políticas, as campanhas eleitorais, o apoio a específicos partidos políticos, dirigentes públicos e políticos;

b) a condução de uma guerra civil ou o início de uma guerra de agressão contra Estados estrangeiros”. Finalmente

c): participação nos serviços secretos.

 

No mesmo texto, no capítulo oito (n. 2), afirma-se que a guerra é sempre um mal, mas que a Igreja não proíbe “os seus filhos de participar nas hostilidades quando se trata de proteger o próximo e restaurar a justiça violada. Entã,o a guerra, ainda que censurável, torna-se um dever”. Não é tudo.

Também no capítulo oito (n. 5) a respeito da manutenção da paz nacional e internacional, a Igreja "dirige a sua palavra aos detentores do poder e a outros setores influentes da sociedade e empenha-se também a organizar negociações entre as partes em guerra para ajudar aqueles que sofrem. A Igreja também se opõe à propaganda bélica e violenta, bem como às diversas manifestações de ódio que possam provocar confrontos fratricidas”.

 

Até a "sinfonia" tem seus limites

 

É difícil encontrar traços de tudo isso nos gestos e palavras dos líderes ortodoxos na Rússia nesta conjuntura, mesmo levando em conta a concepção diferente da relação entre a Igreja e o Estado, que é chamada "sinfonia".

 

É assim definido no terceiro capítulo (n. 4): "Sua substância é a cooperação mútua, o apoio mútuo e a responsabilidade mútua, sem intrusão de uma parte na esfera de competência exclusiva da outra... O estado, nas relações sinfônicas com a Igreja, busca dela o apoio espiritual, pede para si orações e bênçãos para as atividades destinadas a atingir objetivos que sirvam ao bem-estar dos cidadãos, e a Igreja recebe assistência do Estado na criação de condições propícias à pregação e à nutrição espiritual de seus filhos, que também são cidadãos do Estado”.

 

Uma sinfonia que tem dois limites precisos: quando o Estado fosse pedir a apostasia e impor a idolatria ou quando a Igreja fosse obrigada a renunciar à verdade moral. "Se as autoridades obrigam os crentes ortodoxos a apostatar de Cristo e de sua Igreja, bem como a constrição a atos pecaminosos que danificam a alma, a Igreja deve recusar a obediência ao Estado" (capítulo terceiro, n. 5). A Igreja está ligada à verdade de Cristo: “não pode calar nem deixar de pregar a verdade, para além de qualquer ensinamento prescrito ou difundido pelas autoridades estatais”.

 

Os outros ortodoxos não concordam

 

Ênfases muito diferentes se registram no documento Rumo a um ethos social da Igreja Ortodoxa, resultado da discussão no Concílio de Creta em 2016 (cf. SettimanaNews, aqui).

 

No documento, não só se defende a democracia liberal como o instrumento até agora mais adequado à liberdade dos indivíduos, ao respeito pelos direitos humanos e à liberdade de fé, mas também se afirma sobre a "sinfonia": "Ainda hoje o princípio da sinfonia pode continuar a guiar a Igreja em seus esforços de colaboração com os governos, para o bem comum e a luta contra a injustiça. No entanto, não pode ser invocada como justificação para impor a ortodoxia religiosa à sociedade em geral ou para promover a Igreja como força política” (capítulo segundo, n. 14).

 

Quanto à justificação moral da guerra, nota-se que na tradição ortodoxa nunca foi elaborada uma teoria da guerra justa. "Ela (a Igreja) simplesmente reconheceu a inelutável realidade trágica, que o pecado às vezes exige uma escolha terrível entre permitir que a violência continue ou empregar a força para acabar com tal violência, mesmo que ela nunca pare de orar pela paz, e inclusive sabendo que uso da força coercitiva é sempre uma resposta moralmente imperfeita em qualquer situação” (capítulo quinto, n. 46).

 

Orientação sexual e imagem de Deus

 

Kirill, depois de ter definido "forças do mal" aquelas que se opõem à invasão russa da Ucrânia (homilia de 27 de fevereiro), decidiu indicar o fracasso da civilização na legitimação das convivências homossexuais (homilia de 6 de março) que o Ocidente queria impor ao Donbass e à Ucrânia.

 

Isso "indica que entramos em uma luta que não tem um sentido físico, mas metafísico", porque se propõe como bem o que é mal.

 

Eis como o documento emitido pelo Concílio de Creta fala sobre isso: "Muitos debates políticos e sociais no mundo moderno abordam as distintas exigências e necessidades das identidades heterossexual, homossexual, bissexual ou de outro gênero. É verdade, como mero fato fisiológico e psicológico, que a natureza do desejo sexual individual não é simplesmente uma consequência da escolha privada em relação a tais questões: muitas das inclinações e desejos da carne e do coração vêm em grande parte ao mundo conosco e são nutridos e contrastados - aceitos ou impedidos - em nós, desde a mais tenra idade".

 

"Também é necessário ressaltar o direito fundamental de qualquer pessoa - que nenhum Estado ou autoridade civil pode se permitir de violar - de estar livre de perseguição ou desvantagem ligadas à orientação sexual. A Igreja entende que a identidade humana não reside principalmente na própria sexualidade ou em qualquer outra qualidade privada, mas sim na imagem e semelhança de Deus presente em todos nós. Todos os cristãos são chamados a buscar sempre a imagem e semelhança de Deus uns nos outros e a resistir a todas as formas de discriminação contra o próximo, independentemente da orientação sexual” (capítulo terceiro, n. 19).

 

Ninguém pode prever se e quando a agressão contra a Ucrânia vai parar. Vladimir Putin certamente jogou seu poder e seu futuro nisso. Da mesma forma o fizeram Kirill e Hilarion.

 

 

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