A ocidentalização do mundo

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05 Outubro 2021

 

"O 'choque de civilizações' e a ocupação militar fortalecem o adversário e correm o risco de continuar a nos iludir que o mercado livre seja suficiente para distribuir riquezas, esquecendo a forte hierarquização da economia mundial, na qual os países não lutam com armas iguais. O enriquecimento ocidental e hoje chinês sempre se baseia na exploração desenfreada dos recursos humanos e naturais do planeta, abandonando os refugiados enquanto há uma apoderação das matéria-prima", escreve Giuseppe Gario, formado em economia em Turim, foi diretor do Instituto Regional de Pesquisa da Lombardia e professor em várias universidades, autor de numerosas pesquisas socioeconômicas, em artigo publicado por Non in qualche modo, 02-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

 

“Vinte anos atrás, os EUA decidiram reformular a ordem mundial após os ataques de 11 de setembro. Hoje é fácil concluir que sua política externa foi abandonada em uma pista do aeroporto de Cabul" ["America and the World. The real lessons from 9/11”, The Economist, 11-17/9/21, online].

 

Mas de acordo com uma pesquisa Yougov "conduzida entre 4 e 7 de setembro, 43% dos estadunidenses acreditam que a 'guerra ao terror', incluindo operações militares no exterior e mais segurança e vigilância no país, 'valeu a pena'" [“Daily chart. Twenty years after 9/11, Americans give Joe Biden poor marks on terrorism”, The Economist Today, 20/9/21, online].

 

“A política externa é guiada pelos eventos e pela estratégia: Bush governou com base em uma plataforma de conservadorismo compassivo, não de guerra contra o terrorismo. Biden tem que improvisar respostas para uma época turbulenta. Mas ele não deveria pensar que uma política externa subordinada àquela interna poderá dar novamente vida à pretensão dos EUA de liderar o mundo" [“America and the World. The real lessons from 9/11”, The Economist, cit.].

 

Trump confirmou as suspeitas de muitos de que os ideais declarados pelos EUA disfarçam o exercício do poder por interesses pessoais, dando uma imagem sombria da história dos EUA. ‘Há muitos assassinos. Você pensa que nosso país seja tão inocente?’ perguntou em 2017 defendendo Putin em uma entrevista na Fox News” [“Ashes from ashes. How America wasted its unipolar moment", ibid.].

 

Crime antigo que se repete na ocidentalização do mundo.

 

A ocidentalização do mundo, "um conjunto de valores cuja característica dominante é a universalidade" [Serge Lautoche, tr.it. Bollati Boringhieri 1992, p. 42, ed.or. la Découverte 1989]. “O Ocidente identificou-se quase totalmente com o paradigma desterritorializado a que deu origem. O importante, em nossa opinião, é a crença, inaudita na escala do cosmos e das culturas, num tempo cumulativo e linear e a atribuição ao homem da missão de dominar totalmente a natureza, por um lado; e a crença na razão calculista para organizar sua ação, pelo outro. Esse imaginário social que revela o programa da modernidade assim explicitado em Newton e Descartes tem claramente sua origem no fundo cultural judaico, no fundo cultural grego e em sua fusão. À parte os mitos que fundam a pretensão ao domínio da natureza e exceto o esquema contínuo, linear e cumulativo do tempo, as ideias de progresso e de desenvolvimento não têm a rigor nenhum sentido e as práticas técnicas e econômicas que delas derivam são totalmente impossíveis porque insensatas ou proibidas”.

 

“Irredutível ao território, o Ocidente não é apenas uma entidade religiosa, ética, racial ou mesmo econômica. O Ocidente, como unidade sintética dessas diferentes manifestações, é uma entidade ‘cultural’, um fenômeno de civilidade. No entanto, é necessário um entendimento sobre o sentido desses termos e identificar a especificidade dessa civilidade" [ibid., p. 48-9]. “Seja a ênfase nos mecanismos econômicos ou naqueles técnicos, na mimese ou na constrição burocrática, a hybris do sistema consiste justamente na ausência de controle do nosso controle da natureza, segundo a fórmula de Marshall Sahlins.

 

Esse projeto é anticultural não só porque é puramente negativo e uniformizante (para que se possa falar de uma cultura deve existir pelo menos duas ...), mas sobretudo porque não fornece uma resposta ao problema da existência social dos 'perdedores'. Ao integrar o mundo inteiro no abstrato, elimina no concreto os 'fracos' e dá direito de vida e cidadania apenas aos mais eficientes: deste ponto de vista, é o contrário de uma cultura que implica uma dimensão holística; a cultura oferece uma solução para o desafio de ser para todos os seus membros" [ibid., 58].

 

“A ocidentalização é um processo econômico e cultural de duplo efeito; universal por sua expansão e sua história; reproduzível devido ao caráter do modelo do Ocidente e sua natureza de 'máquina'. Em ambos os casos, o ponto de chegada ideal é o acesso igual para todos e cada um aos benefícios da 'máquina'; tanto porque cada grupo humano poderia reproduzir tal "máquina" para seu próprio benefício, quanto porque, sozinha, a "máquina" estenderia os seus benefícios a todos. Colocando-se como modelo, a máquina ocidental se apresenta como acessível a todos. Cada um pode construir tal maravilha por conta própria" [ibid., p. 63].

 

“O problema dessa lenda cor de rosa é que a dupla universalidade é traída precisamente por tal dualidade. Os dois processos miméticos se neutralizam e se contradizem. A reprodutibilidade não é universal porque implica a expansão. Quanto mais atinge o núcleo duro do sistema, mais difícil, conflitante e limitado ela se torna. Por sua vez, a expansão diz respeito apenas à propagação da uniformidade cultural em detrimento da criatividade local. O mimetismo do desenvolvimento nada mais é do que uma trágica caricatura da universalidade, à sombra da qual se perpetua uma dominação de fato dos 'senhores anônimos da máquina'" [ibid., p. 64].

 

Não mais anônimo: “’o mesmo script se repete todas as vezes: a plataforma do Facebook é usada para fins maliciosos, talvez para influenciar eleições políticas, organizar o assalto ao Congresso, atacar minorias étnicas. Os técnicos de segurança que controlam a rede percebem isso e dão o alarme, mas nada de significativo acontece. Assim, as redes sociais produzem grandes danos aos sistemas políticos e sociais. Nesse ponto, a empresa é obrigada a correr aos reparos e seus chefes, chamados para prestar contas dos problemas provocados, pedem desculpas, prometendo que nunca mais se enganarão. Mas nada muda. Contamos isso em nosso livro e também tentamos explicar o porquê: para mudar realmente, Mark Zuckerberg teria que desistir de seu modelo de negócios baseado em um aumento impetuoso de tráfego e das conexões em suas redes sociais, sem muitos vínculos e controles que retardariam o crescimento do faturamento e dos lucros".

 

Sheera Frenkel e Cecilia Kang contam à La Lettura como anos de trabalho no Facebook para o New York Times permitiram que eles não apenas revelassem os sucessos e erros do gigante mundial das redes sociais - investigando eventos graves como o escândalo Cambridge Analytica e a interferência russas nas eleições estadunidenses de 2016 e o uso de suas plataformas para organizar o assalto ao Congresso de 6 de janeiro passado" [Massimo Gaggi, “Rassegnatevi: Facebook non cambierà”, la Lettura, 12/9/2021, p. 14]. A Cambridge Analytica, que faliu em 2018 e agora é Emerdata, manipulou a favor de Trump os medos e a raiva na rede dos eleitores, como também fez Luca Morisi a favor de Salvini.

 

“O hater coletivo sente-se protegido pelo anonimato, pelo abuso dos perfis falsos, pela peculiaridade expressiva do meio, por uma espécie de imunidade virtual”. "Parece que a regra não escrita da web seja esta: não importa quem odiar, o importante é odiar alguém" [Aldo Grasso, "Ieri, Goggi e domani: l’odio senza tempo”, Corriere della Sera,, 19 / 9/21, p.1]. Ódio mútuo entre os haters que se manifestam sem se proteger na pandemia silenciosa e mortal; ódio a serviço dos senhores da web no Ocidente e dos déspotas na China e em outros lugares, faces do mesmo totalitarismo global. "Para Julien Nocetti, professor-pesquisador da Academia de Saint Cyr, está ocorrendo uma forma de hibridização: ‘as plataformas assumem funções soberanas enquanto os estados se transformam em redes’" [Marc-Olivier Bherer, "Les habits neufs de l'hégémonie américaine”, Le Monde, 2/10/21, online]. Uma imagem sombria de medo e ódio.

 

Mas “se o Ocidente nos pareceu como aquela máquina infernal que esmaga os homens e as culturas para fins sem sentido que ninguém conhece e cujo ponto de chegada corre o risco de ser a morte, não é só isso. No projeto helênico-judaico-cristão há a aspiração a uma humanidade fraterna” [Latouche, cit., P. 142]. “Não havendo esperança de fundar nada que perdure na fraude de uma pseudo-universalidade imposta pela violência e perpetuada pela negação do Outro, vale a pena apostar que exista um espaço comum de coexistência fraterna a ser descoberto e se construído" [ibid., p. 149].

 

Depois do 11 de setembro e o fracasso do Afeganistão, EUA-Reino Unido-Austrália apostam nos submarinos atômicos, enquanto "para sair realmente do 11 de setembro, é necessária uma nova leitura do mundo: abandonar o conceito de 'choque de civilizações' e substituí-lo com aqueles de desenvolvimento compartilhado e de justiça global. São necessários objetivos explícitos e verificáveis de prosperidade compartilhada e a definição de um novo modelo de desenvolvimento, duradouro e equitativo, no qual cada região do planeta possa encontrar o seu lugar" [Thomas Piketty, "Sortir du 11-Septembre", Le Monde, 13/12/21/21, online].

 

O 'choque de civilizações' e a ocupação militar fortalecem o adversário e correm o risco de continuar a nos iludir que o mercado livre seja suficiente para distribuir riquezas, esquecendo a forte hierarquização da economia mundial, na qual os países não lutam com armas iguais. O enriquecimento ocidental e hoje chinês sempre se baseia na exploração desenfreada dos recursos humanos e naturais do planeta, abandonando os refugiados enquanto há uma apoderação das matéria-prima.

 

“Se aceitarmos o princípio da repartição das vantagens entre todos os países, evidentemente devem ser discutidos os critérios de atribuição e as regras a respeitar para ter direito a isso. Será uma oportunidade para definir regras precisas e exigentes em matéria de direitos da pessoa humana e em particular de mulheres e menores, válidas para os talibãs e para todos os países que pretendam beneficiar-se do maná", traçando as riquezas ilícitas e aplicando as mesmas regras em todos os lugares. “O tempo da livre troca incondicional acabou: a continuidade das trocas deve depender de indicadores sociais e ambientais objetivos”. “Claro que se pode entender que Biden deseje virar a página do choque de civilizações o mais rápido possível. Para os Estados Unidos a ameaça não é mais islâmica: é chinesa e sobretudo interna, com suas fraturas sociais e raciais que ameaçam o país e suas instituições em uma quase guerra civil. Mas, de fato, tanto o desafio chinês quanto o desafio social interno só encontrarão solução na transformação do modelo econômico”. “Sair do 11 de setembro não significa um novo isolacionismo, mas uma nova lufada de internacionalismo e de soberanismo universal” [ibid.].

 

É a agenda mencionada por Latouche, legado milenar de uma necessária convivência fraterna que hoje tem espaço político na UE. Durante a viagem a Budapeste e à Eslováquia de 12 a 15 de setembro, “decididamente contracorrente em relação aos temores europeus, o chefe da Igreja Católica esforçou-se principalmente a minimizar a diversidade cultural e social. Ao visitar o que ele definiu como o 'gueto' dos Rom em Kosice, na Eslováquia, quis mostrar que esse pluralismo é constitutivo da Europa, embora nunca tenha sido simples vivê-lo e implique esforços contínuos de integração. Ele falou a favor de uma diversidade cultural conscientemente aceita”.

 

“Em quatro dias, o papa não pronunciou muitas vezes a palavra 'migrantes', mas todos a ouviam como um baixo contínuo. Não sem malícia, Francisco especificou no final da viagem que os dirigentes húngaros, com o primeiro-ministro Viktor Orban, líder do movimento anti-imigração, não tinham abordado a questão”. “Hoje diversidade religiosa e secularização não devem ser consideradas ameaças, mas sim ‘mensagens de abertura e de paz’. Reivindicar as próprias raízes só faz sentido se soubermos "olhar para o futuro", disse ele aos bispos húngaros. Não basta se gabar do símbolo da cruz, como fazem alguns políticos como Matteo Salvini, líder da extrema direita na Itália, para ser fiéis à mensagem daquele que foi crucificado dois mil anos atrás”. “Por fim, o Papa Francisco mais uma vez deu uma lição à União Europeia. A pandemia, “a prova” do nosso tempo, nos lembra que a tentação do cada um por si está sempre presente. "A Europa não deve se contentar em ser um 'comitê de gestão'", disse ele em seu retorno de avião. “Deve renovar os sonhos dos Pais Fundadores”. É uma verdadeira mensagem de audácia e criatividade que o Papa frisou na sua visita, dirigida aos europeus chamados a não “se entrincheirar num catolicismo defensivo’” [“Éditorial. Le pape à contre-courant des peurs européens”», Le Mondre, 17/9/21, online].

 

Tendo vivido no moedor de carne argentino, precursor do neoliberalismo e da luta das culturas, no milenar ministério papal Francisco mostra a virada da modernidade, também milenar como escreve Luciano Canfora: “Alexandre, figura inquietante, demoníaca, excessiva em toda sua manifestação, mesmo na forma dramática em que morreu - seu fim foi desproporcional sob todos os pontos de vista - transformou o mundo iraniano e o mundo egípcio em uma parte da grecidade. Ele criou o que os historiadores modernos, a partir do século XIX, chamam de helenismo, ou seja, a mistura de uma civilização originária, a grega, com duas civilizações altíssimas e antiquíssimas, aquela persa aquemênida e aquela egípcia faraônica. Poder-se-ia dizer que com o helenismo Alexandre criou o mundo moderno. Roma emerge para a civilização tornando-se ela própria cidade helenística”. “1918 é outra data marcante desta história, pois marca o fim de quatro impérios. O Império Otomano, o Império Austro-Húngaro, o Império Alemão e o Império Russo entram em colapso quase simultaneamente. Por isso, este ano pode ser considerado o início da história em que nos ainda vivemos" [Mediterraneo, una storia di conflitti, Castelvecchi 2016, p. 27 e p. 39].

 

Nessa história europeia agora global em que ainda vivemos, “ao contrário do que pensavam (ou esperavam) os soberanistas, a União Europeia (UE) mostrou que está viva e inteira, e não como um ‘morto que caminha” (denunciado por Marine Le Pen e seus amigos italianos). No entanto, o copo resultou meio vazio nas políticas cuja decisão é controlada (ou condicionada) pelos estados membros" [Sergio Fabbrini, "Von der Leyen a successi e aspettative deluse", Il Sole 24 Ore, 19/9/21, p. 1]. Num horizonte global cada vez mais sombrio, é hora de uma Europa da defesa. Da UE plenamente democrática, que ainda não é, que defende a si mesma e à humanidade com a única verdadeira arma, aquela dos direitos humanos.

 

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