28 Junho 2021
O “armário” eclesiástico fomenta o sigilo, a vergonha e a autoaversão que as lideranças canalizam em campanhas contra os direitos civis LGBTQ.
A opinião é de Jason Steidl, ativista LGBTQ católico e professor visitante de Estudos Religiosos no St. Joseph’s College, em Nova York. Atualmente, ele está escrevendo um livro sobre a história da pastoral católica LGBTQ nos Estados Unidos.
O artigo foi publicado em New Ways Ministry, 26-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No fim de “O Mágico de Oz”, Dorothy e seus companheiros ficam cara a cara com o homônimo do filme. Durante grande parte do enredo, eles suportaram seus xingamentos e exigências arbitrárias em uma tentativa desesperada de ganhar o seu favor. Depois que Totó puxa a cortina sobre ele, no entanto, eles descobrem que aquele que se autodenomina como “o Grande e Poderoso Oz” é um velho diminuto. O “mago” que projetava a sua imagem divina com fogo, fumaça e trovões é, nas palavras do Espantalho, um “farsante” desesperado por atenção.
Nós, amigos católicos de Dorothy, podemos compartilhar a sua experiência. Por trás da cortina do ensino homo/transfóbico da Igreja estão homens que parecem não ter nenhum conhecimento de conceitos saudáveis de gênero e sexualidade.
Na quinta-feira, o Le Parisien informou que a Arquidiocese de Paris realizará um julgamento canônico do Mons. Tony Anatrella, um dos mais proeminentes e (anteriormente) mais poderosos opositores católicos dos direitos civis LGBTQ.
O psicoterapeuta, apelidado de “psiquiatra da Igreja”, é acusado de ter abusado sexualmente de vários pacientes, incluindo seminaristas e pelo menos um menor, durante sessões terapêuticas nos anos 1970 até o início de 2010.
Embora um processo civil contra Anatrella tenha se tornado público em 2006, as lideranças da Igreja o rejeitaram como parte de uma campanha de difamação. Quando as acusações persistiram, eles abriram a sua própria investigação, e mais acusadores apresentaram denúncias de que o padre usava nudez e masturbação mútua como parte de seu “plano de tratamento”.
No auge do seu poder eclesiástico, Anatrella era ouvido por altas autoridades da Igreja. Seu trabalho apareceu no L’Osservatore Romano, ele falou em congressos promovidos pelo Vaticano e no Sínodo sobre a Família de 2014, e foi nomeado consultor do Pontifício Conselho para a Família.
Por muitos anos, ele protestou contra os perigos da “teoria de gênero”, um termo difundido, embora nebuloso, e popular nas diatribes vaticanas contra a modernidade. Ele descrevia a homossexualidade como uma “parte incompleta e imatura da sexualidade humana” – uma ideia que ajudou a justificar a proibição de seminaristas homossexuais por parte da Congregação para o Clero em 2005.
Na França, Anatrella condenou a campanha pela igualdade no casamento como “um lobby que reduz a família ao que ela não é” e difamou os pais do mesmo sexo por “quererem brincar de papai e mamãe sem terem as características apropriadas”.
Por causa de seu poder e influência, o preconceito de Anatrella provavelmente desempenhou um papel em algumas das piores teologias, declarações e políticas anti-LGBTQ do Vaticano. Embora as autoridades eclesiásticas agora o responsabilizem por abuso sexual, seu legado perverso continua fazendo parte da tradição magisterial. Por que as lideranças da Igreja não questionam isso?
Infelizmente, o escândalo em torno de Anatrella reflete um problema muito mais sério e sistemático na hierarquia católica do que o abuso sexual clerical. As lideranças acreditaram e confiaram em Anatrella porque precisavam que ele justificasse a sua própria homo/transfobia. Eles procuraram avidamente o conselho de um abusador sexual porque ele lhes disse o que eles queriam ouvir.
Grande parte do ensino da hierarquia sobre questões LGBTQ desenvolvidas na segunda metade do século XX, um momento em que as lideranças religiosas foram pegas de surpresa pelos movimentos de liberação queer e feminina. A antropologia tomista centenária oferecia poucos recursos para a compreensão das mudanças que ocorriam na sociedade.
Durante décadas, o Magistério saltou de uma crise para outra com pouca reflexão sustentada ou diálogo com o mundo exterior. Documentos citavam outros documentos, que se baseavam em tópicos há muito desacreditados.
Nos Estados Unidos, os bispos endossaram o Courage, um grupo que tenta tratar a “atração pelo mesmo sexo” como uma doença. Eles pareciam não saber que a psicologia freudiana por trás desse grupo estava morrendo lentamente há décadas.
Em vez de aprenderem com o diálogo com a ciência e as pessoas LGBTQ, as lideranças da Igreja dobraram a aposta em sua homo/transfobia, inventando teologias e retóricas anti-LGBTQ ainda mais cruéis. A declaração Persona humana, de 1975, por exemplo, descrevia a homossexualidade como “intrinsecamente desordenada”. Em 1992, a Congregação para a Doutrina da Fé disse que ninguém deveria se surpreender se os movimentos pela libertação gay levassem a “reações irracionais e violentas”.
O que poderia provocar ataques tão fortes contra a igualdade LGBTQ? A homofobia internalizada pode ser a culpada. Embora seja difícil obter estatísticas definitivas, as estimativas mais baixas afirmam que cerca de 15% do clero é homossexual, enquanto as estimativas mais altas afirmam que o número está próximo de 75%.
O “armário” eclesiástico fomenta o sigilo, a vergonha e a autoaversão que as lideranças canalizam em campanhas contra os direitos civis LGBTQ. Dos anos 1980 até os anos 2010, a Igreja institucional foi a opositora religiosa mais significativa ao progresso LGBTQ em todo o mundo.
O mundo, enquanto isso, observa como muitas lideranças na hierarquia minam o testemunho à verdade da Igreja. A maioria dos bispos apresentam seus ensinamentos sobre as questões LGBTQ como se viessem de Deus. Alegando ser os guardiões de uma tradição ancestral e sagrada, eles confundem a sua participação nas guerras culturais com o Evangelho.
Se os católicos leigos levassem os bispos a sério, eles poderiam acreditar que Jesus disse todo tipo de coisa sobre a homossexualidade e as pessoas transgênero. Nada poderia estar mais longe da verdade.
Neste mês do Orgulho LGBTQ, os amigos de Dorothy veem o véu sendo levantado sobre as lideranças católicos e suas reivindicações de revelação divina. Atrás da cortina do mago, estão décadas de medo e insegurança desfilando como doutrina. Com Dorothy, estamos voltando para casa – em algum lugar além do arco-íris – com ou sem ele.