Crentes e não crentes celebram os 90 anos de Hans Küng, gigante da teologia pós-conciliar

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21 Março 2018

Completou 90 anos, no dia 19 de março, um dos maiores teólogos do século XX, aquele que certamente suscitou o mais intenso (e fecundo) debate na Igreja desde o pós-Concílio: trata-se de Hans Küng (nascido em Sursee, na Suíça, em 19 de março de 1928), padre, teólogo, professor universitário, forçado, desde dezembro de 1979, a abandonar o ensino na Faculdade Teológica de Tübingen por causa de suas teses contra a infalibilidade papal.

A reportagem é de Valerio Gigante, publicada por Adista, 10-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A revogação da missio canônica, isto é, a autorização para ensinar nas universidades católicas, foi um dos primeiros atos do pontificado de João Paulo II. Certamente, não se pode atribuir toda a responsabilidade daquela sanção a Wojtyla. O processo canônico contra Küng havia começado desde a fase posterior à publicação (1970) de seu livro “Infalível? Uma pergunta”, que ocorreu sob o pontificado de Paulo VI.

Mas o fato de que o ato final tenha sido assinado e endossado por João Paulo II deixava claro para alguns, já na época, qual seria o traço distintivo dos anos vindouros, ou seja, a restauração vaticanocêntrica de todo aspecto teológico e a centralização no governo da Igreja que, sob os pontificados de Wojtyla antes e de Ratzinger depois, seriam plenamente realizadas.

É igualmente significativo que, entre as primeiras vítimas desse processo involutivo do Concílio estivesse justamente Küng, que, ao clima cultural e eclesial que se seguiu à virada do Vaticano II, tinha participado tão intensamente e que era considerado um dos teólogos de ponta daquela temporada de renovação.

Após seus estudos médios em Lucerna, Küng foi a Roma para estudar filosofia e teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Ordenado padre em 1954, continuou seus estudos em Paris, obtendo um doutorado em teologia no Institut Catholique com uma tese sobre a doutrina da justificação do teólogo reformado Karl Barth. Depois, com apenas 32 anos de idade, em 1960, foi nomeado professor titular da Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen, na Alemanha, onde mais tarde fundaria também o Instituto para a Pesquisa Ecumênica.

Assim, em 1962, chegou o momento da abertura do Concílio, do qual Küng, muito jovem, participou diretamente, nas fileiras dos peritos nomeados pelo Papa João XXIII. De volta a Tübingen, convidou a universidade a contratar Joseph Ratzinger, a quem ele conhecera no fim dos anos 1950 e que reencontrou em Roma durante os trabalhos da última sessão do Concílio. Küng queria que seus estudantes ouvissem as lições de um professor culto e de tendência conciliar, embora distante dele em várias questões.

Como outro teólogo explicou a Gianni Valente (revista 30 Giorni, maio de 2005), professor em Tübingen de Teologia Fundamental, Max Seckler, “Küng sabia que ele e Ratzinger pensavam diferente sobre muitas coisas, mas dizia: com os melhores, pode-se tratar e colaborar, são os mesquinhos que criam problemas”.

Ratzinger, que era professor de Teologia Dogmática em Münster, foi então contratado em Tübingen. Mas a cooperação entre ele e Küng terminou abruptamente em 1969. De fato, Ratzinger deixou a prestigiosa faculdade teológica de Baden-Württemberg, abalada pelos movimentos estudantis, pela faculdade mais tranquila de Regensburg.

No segundo volume de suas memórias Umstrittene Wahrheit. Erinnerungen (Verdades controversas. Recordações), que começa em 1968, está contido um verdadeiro ato de acusação contra o futuro Papa Bento XVI: “Ratzinger era professor de teologia comigo – escreve Küng –, mas depois revelou ser filho de um policial, como era. Curvou-se à Cúria, denunciou-me como ‘não católico’ e me fez condenar. E fez isso fazendo o jogo duplo: me escrevia cartas de reconciliação e, enquanto isso, preparava as sanções contra mim”.

Após a revogação da missio canônica (mesmo assim, ele continuaria sendo padre católico, mantendo também uma cátedra em seu Instituto, mas separado da faculdade teológica católica), Küng tornou-se um dos mais lúcidos e coerentes críticos do pontificado de João Paulo II e do papel desempenhado, naquele papado, pelo seu ex-colega Ratzinger, que, a partir de 1981, tornara-se prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

Foi precisamente do dicastério que havia removido Küng do ensino que partiram as condenações, as censuras, as remoções que atingiram a parte mais madura e avançada do mundo teológico e do episcopado progressista católico.

Clima de suspeita. E os teólogos calam

Depois da morte de João Paulo II, Küng escreveu um artigo, publicado na Alemanha e na Itália (Corriere della Sera, 02-01-2006), em que destacava as muitas e enormes contradições do pontificado que tinha acabado de concluir: “Assim como Pio XII mandou perseguir os mais importantes teólogos de seu tempo, do mesmo modo comportaram-se João Paulo II e o seu Grande Inquisidor, Ratzinger, com Schillebeeckx, Balasuriya, Boff, Bulányi, Curran, Fox, Drewermann e também o bispo de Evreux, Gaillot, e o arcebispo de Seattle, Hunthausen. Na vida pública, faltam hoje intelectuais e teólogos católicos da estatura da geração do Concílio. Esse é o resultado de um clima de suspeita, que cerca os pensadores críticos desse pontificado. Os bispos se sentem governadores romanos em vez de servidores do povo da Igreja. E muitos teólogos escrevem de modo conformista ou se calam”.

“Quando chegar o momento – continuava o artigo – o novo papa deverá decidir enfrentar uma mudança de rota e dar à Igreja a coragem de novas clivagens, recuperando o espírito de João XXIII e o impulso reformista do Concílio Vaticano II.”

Mesa para dois

Mas Küng talvez imaginava que aquele pontífice, apesar de tudo, seria justamente o teólogo, seu ex-colega de Tübingen, que se tornou papa com o nome de Bento XVI, aquele Ratzinger que tinha inicialmente abraçado o Concílio, para depois mudar decisivamente de rota. Muitos levantaram a hipótese dessa possível reviravolta na relação entre os dois em 24 de setembro de 2006, dia em que Küng aceitou o convite para jantar com Bento XVI na residência de verão de Castel Gandolfo, conversando com ele por mais de duas horas.

Naquela ocasião, ele apresentou ao papa os resultados de sua pesquisa dos últimos anos, sobre uma ética mundial que servisse para as grandes religiões do mundo, referente ao diálogo entre fé e ciências (desde 1993, por essa razão, Küng criou a Fundação Weltethos), obtendo uma impressão positiva da conversa com o papa. Mas que permaneceu apenas como uma impressão.

De fato, os caminhos logo voltaram a se dividir radicalmente. E, nos anos seguintes, Küng reiterou a Ratzinger quase todas as acusações feitas a seu antecessor: além da restauração do status quo ante Concilium, a rejeição das reformas, do diálogo intraeclesial, da liberdade de pesquisa teológica, da colegialidade, da abertura ecumênica (para Küng, a declaração Dominus Iesus de 2000, que reafirma a unicidade salvífica de Cristo e da Igreja e o valor não salvífico das religiões não cristãs, trai o autêntico espírito do Concílio Vaticano II), do papel dos leigos e das mulheres na Igreja; mas também a multiplicação dos santos e dos beatos como instrumento de governo da Igreja no mundo, os silêncios sobre a chaga da pedofilia na Igreja, a centralização de todo poder, a rigidez absoluta sobre as questões sexuais e sobre a bioética.

Precisamente sobre a bioética, em 2015, chegou o último desafio de Küng ao magistério papal: o da eutanásia. No ensaio “Morrer felizes?”, o teólogo suíço reivindica sua fé cristã e católica, reafirmando a sacralidade da pessoa e da vida; mas, precisamente à luz dessa fé e do respeito por todo ser humano, defende fortemente o direito de cada pessoa de “escolher com a minha responsabilidade quando e como morrer”. Tal atitude sobre o fim da vida “se fundamenta, em última análise, na esperança de uma vida eterna”.

Caro Francisco, falemos de infalibilidade

Com o Papa Francisco, as relações com a cúpula da Igreja estão hoje mais distendidas, mesmo que as posições ainda estejam distantes. “Sem uma ‘re-visão’ construtiva do dogma da infalibilidade”, a renovação da Igreja não possível, escrevera o teólogo suíço em março de 2016, em um apelo ao Bergoglio, pedindo-lhe para possibilitar “uma discussão aberta e imparcial sobre a infalibilidade do papa e dos bispos”.

O mesmo Küng anunciou algumas semanas depois que recebera uma resposta de Francisco de forma privada que considerava muito positiva.

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