Guerra na Ucrânia: ameaças internas e externas são instrumentos de legitimação ideológica para o autoritarismo. Entrevista especial com Vicente Ferraro

“Muitos países no Leste Europeu (...) estão convencidos de que a OTAN é fundamental para a segurança e proteção frente a eventuais práticas expansionistas da Rússia e de Putin”, afirma o pesquisador

Foto: Ashley Gilbertson | Unicef

Por: Patricia Fachin | 27 Julho 2023

O “principal instrumento de legitimação ideológica” do governo de Vladimir Putin “é a mobilização de ameaças internas e externas” e, nessa perspectiva, o presidente russo “já sabia” que um dos efeitos da guerra com a Ucrânia seria o fortalecimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN entre os países do Leste Europeu e da União Europeia, mas “não estava preocupado com isso”. “A real motivação dele é utilizar esse conflito para impulsionar sua legitimidade dentro da Rússia”, assegura Vicente Ferraro, autor da tese doutoral intitulada “O dilema entre democracia e ordem em sociedades divididas: conflitos separatistas, ameaças sociais e preferências autoritárias na Rússia e na Ucrânia”, defendida na Universidade de São Paulo – USP em 2022.

Segundo ele, o regime Putin utiliza-se de contextos multiétnicos e conflituosos para defender um Estado forte e manter-se no poder. Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele explica como as guerras das últimas décadas fazem parte da estratégia governamental do presidente e contam com o apoio da população. “Do ponto de vista de legitimação do regime Putin, argumento que tanto a questão da Chechênia quanto a da Ucrânia tiveram o mesmo efeito para o regime, ou seja, o de estimular a noção de que a Rússia é cercada de inimigos internos e externos que devem ser combatidos. Para combater essas ameaças e ter segurança, a população deve se unir em torno da figura de Putin”.

Vicente Ferraro (Foto: Reprodução | YouTube)

Vicente Ferraro é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics, de Moscou, e bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Desde 2010, é membro do Laboratório de Estudos da Ásia – LEA-USP, seção Rússia e Eurásia.

Confira a entrevista.

IHU – Em sua tese de doutorado, o senhor afirma que “elites políticas utilizam os conflitos domésticos como pretexto para justificar mudanças institucionais iliberais e legitimar regimes autoritários, argumentando que em contextos multiétnicos e conflituosos é necessário um Estado forte, centralizado e implicitamente autoritário para garantir a estabilidade e a integridade territorial”. Pode dar exemplos de como isso se manifesta na Rússia e na Ucrânia?

Vicente Ferraro – Na tese, que desenvolvi entre 2018 e 2022, abordei como a questão das guerras da Chechênia impactou na construção do regime autoritário de Vladimir Putin na Rússia. Em paralelo, comparo como a guerra do Donbass, que começou em 2014, estava impactando na dinâmica política ucraniana. Há muitos anos estudo o regime Putin e uma das características mais marcantes dele é a mobilização de ameaças tanto externas quanto internas para justificar medidas autoritárias, políticas repressivas e de perseguição, como combate a jornalistas, acadêmicos e políticos opositores. A constante mobilização de ameaças internas e externas é usada para justificar a união da população russa em torno de Putin, que seria, de acordo com a narrativa do regime, a liderança que vai trazer segurança e estabilidade política e econômica para o país. Essa não é uma característica apenas do regime de Putin. A ditadura militar brasileira teve características semelhantes. Os regimes autoritários precisam de ameaças e hostilidade para justificar a sua existência.

Tipos de regimes autoritários

Existem três tipos de regimes autoritários: os regimes de partido único, os regimes militares e os regimes personalistas. Os dois primeiros têm mecanismos e arcabouços institucionais que contribuem tanto para a sustentação ideológica mais significativa quanto para uma eventual sucessão. Nesses casos, quando a liderança morre ou acontece alguma coisa que ela não consegue mais permanecer no poder, os regimes têm mecanismos para garantir uma sucessão mais estável. Os regimes personalistas, como é o caso de Putin, não têm mecanismos institucionais que facilitam esta transição. A literatura de ciência política comparada mostra que os regimes personalistas são os mais vulneráveis a momentos de transição; eles geralmente terminam com transições violentas porque não têm os mesmos arcabouços institucionais e ideológicos que os outros dois.

Putin, regime vulnerável

Putin se insere neste tipo de regime mais vulnerável e por isso ele precisa, a todo tempo, sustentar o discurso ideológico de mostrar que o regime é eficaz e, sobretudo, provê segurança contra as instabilidades internas e externas. Outro elemento que a literatura de política comparada mostra é que os regimes autoritários geralmente contam com três instrumentos de sustentação: a repressão contra opositores, a distribuição de ganhos econômicos – isto é, a cooptação que pode ser feita tanto em relação às elites, com a compra de apoio a partir da distribuição de cargos ou distribuição de recursos, quanto  por parte da população, despendendo, na maior parte, de recursos e, com isso, mostrar que o regime é economicamente eficaz e angariar apoio popular – e a legitimação ideológica. É aqui que o regime Putin se sustenta: seu principal instrumento de legitimação ideológica é a mobilização de ameaças internas e externas.

Putin toma posse como presidente da Rússia pela quarta vez:

No início dos anos 2000, a Rússia teve um grande crescimento econômico e isso acabou favorecendo a popularidade de Putin. Ele se apresentou como um líder eficaz. Na década de 1990, quando acabou a União Soviética, a Rússia passou por uma transição caótica. Foi um dos países do mundo que mais passou por transições políticas conturbadas exatamente porque, diferentemente do Brasil, que teve somente uma transição política, a Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas tiveram uma transição tripla: política, econômica – tiveram que privatizar centenas de empresas que eram estatais – e identitária estatal, no sentido de que antes existia uma identidade estatal soviética que havia sido construída por décadas e, do dia para a noite, aquilo deixou de existir e foi necessário ter uma reformulação da questão identitária e da estrutura administrativa estatal.

Em 1990, houve instabilidades políticas. Semanas antes da promulgação da Constituição russa, em 1993, houve o bombardeio do parlamento. Houve uma intensa crise econômica nesse período e muitas pessoas passaram fome. Então, a partir do momento em que houve um crescimento econômico no governo Putin, principalmente nos primeiros anos, com estabilidade política, os russos associaram essa ideia de que a abertura política que eles tiveram nos anos 1990 – que não foi uma democracia, mas um regime mais aberto do que existe hoje – leva à instabilidade, à crise econômica. Esta é uma das bases de sustentação do regime: é melhor um governo político e fechado, mas que garanta estabilidade política e econômica, do que um regime aberto que gera o caos político e econômico, como foi nos anos 1990.

No fim de 1999, quando Putin chegou à liderança do Estado, a Rússia estava no meio da segunda guerra da Chechênia e ele teve um papel fundamental contra os separatistas chechenos, diferentemente da primeira guerra, entre 1994 e 1996, em que o presidente Boris Yeltsin não conseguiu derrotar os separatistas chechenos e a Chechênia saiu quase vitoriosa. Na guerra começada em 1999 e concluída em 2000, sob a liderança de Putin, os separatistas foram derrotados. Isso aconteceu no início do governo Putin e contribuiu para que os russos associassem essa ideia de que uma mão forte e autoritária como a Putin traria mais estabilidade e segurança para a Rússia do que foi o período Yeltsin. A guerra da Chechênia foi fundamental para que Putin consolidasse essa percepção na sociedade russa e tivesse grande aceitação popular. Os gráficos de popularidade mostram que o primeiro grande salto ocorreu no meio da segunda guerra da Chechênia e ele foi eleito como sucessor de Yeltsin no início dos anos 2000, em parte, por causa da popularidade que foi resultado da sua atuação na segunda guerra da Chechênia.

IHU – Quais foram as causas e os fatores que levaram a essas duas guerras da Chechênia e por que os chechenos querem se separar da Rússia?

Vicente Ferraro – Vou voltar um pouco no tempo. Os diversos impérios europeus, como era o caso do Império Austro-húngaro, que era um império com muitas etnias, e o Império Otomano, sucumbiram no início do século XX. A Rússia também corria esse risco de ameaça separatista que ocorreu no início do século XX porque esse é um estado multiétnico. Quando os comunistas assumiram o poder após a Revolução de 1917, eles promoveram uma verdadeira reforma administrativa na Rússia e gradualmente foram adotando um sistema etnofederativo, que é a divisão do território com base em características étnicas em diferentes regiões.

Naquele momento, em 1922 mais especificamente, foi fundada a União Soviética. Isso envolveu uma reformulação do que era o Império Russo e uma divisão em critérios étnicos. Ali foi criada a Ucrânia e, para administrar a Ucrânia, precisaria falar ucraniano, conhecer a cultura ucraniana. No início dos anos 1920, houve a estratégia de tentar mostrar que a Rússia não era mais um império e não implementaria um processo imperial de russificação, mas passaria por um certo processo de descolonização, a fim de ter o apoio ao regime socialista por parte das periferias. Então houve esse momento de instituição do chamado federalismo étnico e a adoção do critério de nacionalidade, que é um critério diferente do que temos no Brasil. Enquanto aqui a nacionalidade, para nós, é a mesma coisa que cidadania, ou seja, todo mundo que nasce no território brasileiro tem a nacionalidade brasileira, na Rússia e em ex-repúblicas soviéticas a nacionalidade é a mesma coisa que etnia. Quando se pergunta sobre a nacionalidade, quer se referir à etnia. Esse modelo é chamado etnonacional.

Repúblicas e disputas por independência

Na União Soviética, o que era o Império Russo antes foi dividido em várias regiões étnicas e, entre elas, a Ucrânia. No período final da União Soviética havia 15 repúblicas étnicas, mas a questão é que dentro de algumas dessas repúblicas étnicas havia as chamadas repúblicas autônomas, que são regiões que também concentravam minorias étnicas. A Rússia era uma das repúblicas da União Soviética que mais tinha, dentro de si, outras repúblicas autônomas – é por isso que esse modelo também é chamado de federalismo matriosca, em referência àquela boneca-russa que, quando aberta, tem outras dentro de si. Hoje, a Rússia tem mais de 80 regiões e nessas, pouco mais de 20 são repúblicas. Até hoje, dentro da Rússia existem essas repúblicas que são regiões que concentram minorias étnicas. Como as 15 repúblicas da União, com o fim da União Soviética, ficaram independentes, algumas repúblicas dentro dessas repúblicas da União, que antes eram chamadas de repúblicas autônomas, também começaram a objetivar a sua independência.

Mapa das Repúblicas Russas (Foto: Wikimedia Commons)

 

Legenda do Mapa das Repúblicas Russas (Foto: Wikimedia Commons)

No caso da Geórgia, duas repúblicas ficaram independentes: Abecásia e Ossétia do Sul. Houve um conflito separatista e essas duas regiões ficaram independentes. No caso da Rússia, houve uma guerra separatista por parte da Chechênia. As autoridades chechenas pegaram esse embalo de desintegração das 15 repúblicas da União Soviética e começaram a reivindicar a independência para si também. Outras repúblicas dentro da Rússia também começaram a reivindicar mais autonomia e até mesmo independência nos anos 1990, como a República do Tartaristão.

Guerra da Chechênia

A década de 1990 foi um período complexo para a Rússia porque havia esses movimentos separatistas não apenas na Chechênia, mas também em outras repúblicas que concentravam minorias étnicas e que aproveitaram esse embalo de desintegração da União Soviética para constituir ou seus Estados nacionais independentes ou reivindicar maior autonomia em relação a Moscou. A Chechênia foi o caso mais complexo que acabou culminando na guerra separatista, em 1994, quando o presidente Boris Yeltsin decretou intervenção na Chechênia para tentar barrar o avanço desse processo separatista. Essa guerra acabou se estendendo por quase dois anos, com a morte de muitos russos e chechenos. Yeltsin não conseguiu conter os separatistas e, em 1996, as elites chechenas tinham praticamente ganho a guerra contra o governo federal quando houve um acordo de cessar-fogo. A Chechênia ficou praticamente independente por alguns anos, mas, em 1999, alguns grupos de dentro da Chechênia invadiram uma região vizinha, o Daguestão, que é uma república da Rússia, com uma série de atentados em cidades russas, contra edifícios de moradia civis. Foram atentados que deixaram muitos mortos e então o governo russo iniciou uma segunda guerra contra a Chechênia em setembro de 1999. Nessa época, Putin estava subindo dentro da estrutura estatal. Ele tinha sido nomeado primeiro-ministro pelo presidente Boris Yeltsin e, de 1999 para 2000, Yeltsin renunciou e Putin assumiu, interinamente, como primeiro-ministro a direção do país. Nas eleições dos próximos meses, foi eleito presidente em primeiro turno.

Medo e preferência pelo autoritarismo

A guerra da Chechênia acabou dando impulso para a popularidade de Putin, para que conseguisse se firmar como uma liderança forte dentro da Rússia. Em minha tese, mostro um elemento que a literatura de psicologia política vem estudando há muitos anos, que é essa questão de que quanto maior a percepção de ameaça na sociedade, maior é a inclinação a preferências por regimes autoritários. Mostro, com dados, gráficos e testes estatísticos, que, nos períodos mais intensos da segunda guerra da Chechênia, as preferências autoritárias na sociedade russa tiveram um crescimento substancial. As lideranças autoritárias exploram ameaças internas e externas exatamente porque há esse efeito psicológico de que pessoas que sentem mais medo têm maior inclinação a apoiar regimes autoritários. Há um esforço de Putin em incentivar os medos exatamente para angariar apoio. Isso também foi visto em outros países, como nos EUA por ocasião dos atentados de 11 de Setembro. O consentimento da população norte-americana com medidas políticas que viessem a limitar direitos civis cresceu consideravelmente. Ou seja, para garantir a segurança nacional havia uma concordância de que houvesse mais restrições às liberdades.

União em torno do líder

Na ciência política há outro fenômeno estudado: a união em torno da população e do líder. Quando há um conflito, a população se une em torno do líder e acaba reforçando os instrumentos psicológicos e de legitimação dos regimes. Isso foi verificado nos EUA quando houve os atentados de 11 de Setembro e a popularidade de Bush disparou. Outro caso mencionado na literatura é a Guerra das Malvinas. Quando os militares argentinos estavam em uma crise profunda de legitimidade e insatisfação popular, eles tentaram recuperar as Malvinas na expectativa de estimular o nacionalismo dentro da Argentina e o apoio do regime militar. Nesse caso, a Argentina saiu derrotada e acabou mais prejudicada, tendo o efeito contrário.

Presença da OTAN no Leste Europeu e popularidade de Putin na Rússia

Mas há outros casos que poderíamos mencionar, de lideranças políticas que acabam se beneficiando de conflitos para a sua legitimidade e popularidade. Esse é o meu principal argumento desde que começou a invasão de larga escala na Ucrânia em 2022. Tenho mostrado que, por mais que os argumentos de Putin em relação à expansão da Rússia sejam legítimos, não havia nenhuma expectativa de que invadir a Ucrânia resolveria esse problema e garantiria uma maior proteção das fronteiras russas ou geraria um equilíbrio de poder mais favorável à Rússia dentro da Europa. Pelo contrário, já era sabido que uma invasão da Ucrânia só fortaleceria a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN; foi o que de fato aconteceu. Há, hoje, uma presença maior da OTAN no Leste Europeu.

A Finlândia, que tem um exército grande, acabou entrando na OTAN. Antigamente, a população do país era contrária à entrada da Finlândia na OTAN. Com a invasão da Ucrânia, a OTAN ganhou um impulso ideológico no sentido contrário aos argumentos de que sua existência era anacrônica e ilegítima, uma vez que a Guerra Fria acabou. Muitos países no Leste Europeu, mais do que nunca, estão convencidos de que a OTAN é fundamental para a segurança e proteção frente a eventuais práticas expansionistas da Rússia e de Putin.

É interessante destacar que a Ucrânia não estava perto de entrar na OTAN. A partir de 2008, houve uma promessa de que um dia a Ucrânia seria membro da OTAN, mas não havia expectativa de que isso iria se concretizar. Em 2021, o ministro ucraniano das Relações Exteriores escreveu um artigo criticando a OTAN por até hoje não ter fornecido um documento que estabelecesse os critérios para a Ucrânia entrar na organização. Nunca a OTAN ofereceu esses documentos para a Ucrânia. Havia uma ajuda com armas e treinamento militar, mas é muito diferente de um país fazer parte da OTAN diretamente.

A Suécia também está no caminho de entrar na OTAN. O país tem uma das melhores forças aéreas da Europa. Então, vemos que a Rússia, contrariamente ao que Putin argumentava, só tornou as fronteiras russas mais vulneráveis. Ou seja, a OTAN, hoje, está muito mais próxima das fronteiras russas do que estava antes, lembrando que a Finlândia faz fronteira terrestre com a Rússia; é um país muito próximo de São Petersburgo. Isso deu um arcabouço ideológico para a OTAN e um equilíbrio de poder dentro da Europa. Essa guerra teve o efeito contrário ao que Putin preconizava.

Argumento que Putin já sabia que teria esse efeito e não estava preocupado com isso. A real motivação dele é utilizar esse conflito para impulsionar sua legitimidade dentro da Rússia. Ele não teve ganhos em relação às fronteiras, mas o regime teve um ganho de popularidade, como aconteceu em todos os outros conflitos, como em 2014, quando houve a anexação da Crimeia e a intervenção do Donbass, que foi o grande salto de popularidade, em 2008, na guerra da Geórgia, e agora, novamente, como era de se esperar, houve novamente um salto de popularidade.

20 de fevereiro de 2014: O dia mais sangrento da História da Ucrânia após a independência:

Repressão de dissidentes

O regime tem aproveitado esse conflito para reprimir ainda mais as vozes dissidentes. Ou seja, a repressão hoje está muito maior do que era antes. Essa guerra se explica mais por fatores internos e estratégias domésticas do governo Putin em se consolidar dentro da sociedade e se manter estável do que por considerações geopolíticas. Obviamente houve considerações geopolíticas, mas argumento que não foram a principal motivação na intervenção. A principal motivação é a estratégia de manutenção ideológica de manter o regime. Diria mais: Putin precisa da OTAN hostil, do Ocidente coletivo hostil e ameaçador, como ele chama, [ele precisa] da Ucrânia como ameaça porque este é o seu principal instrumento de legitimação. Para ele, é positivo esse antagonismo que foi reforçado agora.

IHU – Alguns dizem que, no caso da guerra com a Chechênia, o Ocidente foi conivente com a Rússia, diferentemente do que tem feito em relação à Ucrânia, por conta dos recursos fósseis russos e pelo fato de ver em Putin um governante capaz de gerir os recursos energéticos no antigo território soviético para exportar matéria-prima para o Ocidente. Isso tem sentido? Como explica as reações do Ocidente nesses casos?

Vicente Ferraro – Em relação às guerras da Chechênia, o Ocidente teve uma relação ambígua. Putin menciona, com certa frequência, que o Ocidente e as potências ocidentais, indiretamente, davam apoio aos separatistas chechenos ao denunciarem que a Rússia estava violando os direitos humanos.

Como a questão da Chechênia não era somente uma questão étnica, mas também ideológica, porque a Chechênia é uma região islâmica e havia um grupo que tinha uma interpretação mais ortodoxa do Alcorão e era visto como uma ameaça maior, o combate ao fundamentalismo islâmico acabou, nos primeiros anos, inclusive aproximando a Rússia e os EUA. A Rússia estava no combate aos fundamentalistas e separatistas na região do Cáucaso e os EUA, no Afeganistão, por causa dos atentados de 11 de Setembro.

Mas mesmo que as potências ocidentais tenham sido prejudicadas com o distanciamento econômico da Rússia, por não ter acesso facilitado aos recursos energéticos russos, houve uma percepção de que o afastamento era uma medida necessária em relação aos recursos energéticos da Rússia e isso foi percebido pelo Ocidente como uma estratégia para tentar conter novos ímpetos expansionistas de Putin. Aqui entra uma questão de legitimação porque, no caso da segunda guerra da Chechênia, por mais que houvesse a violação de direitos humanos, a Rússia estava tentando garantir o controle de uma região que há muito tempo lhe pertencia – desde o século XIX aquela região tinha sido anexada ao estado russo e a Rússia estava protegendo parte do seu território. O que é diferente da questão da Ucrânia, que envolve não a defesa de um território próprio, mas a invasão de um Estado soberano e reconhecido pela Organização das Nações Unidas – ONU e pela comunidade internacional como independente. Por mais que as guerras da Chechênia e da Ucrânia envolvam violações de direitos humanos, do ponto de vista do direito internacional, envolvem violações bem diferentes.

A Chechênia, de júri, pelo direito internacional, era parte do território russo; a Ucrânia, não. No caso da Ucrânia houve uma violação do direito internacional não apenas de direitos humanos, ao invadir o território de um Estado vizinho, que é reconhecido pela comunidade internacional como soberano, independente e membro da ONU. Do ponto de vista de legitimação do regime Putin, argumento que tanto a questão da Chechênia quanto a da Ucrânia tiveram o mesmo efeito para o regime, ou seja, o de estimular a noção de que a Rússia é cercada de inimigos internos e externos que devem ser combatidos. Para combater essas ameaças e ter segurança, a população deve se unir em torno da figura de Putin. Esse argumento acaba reforçando o regime. Muitos opositores foram presos no ano passado, muitos deixaram a Rússia, a legislação de repressão foi endurecida, como o combate a protestos, controle na academia e na imprensa. O regime que já era autoritário se tornou ainda mais fechado e, inclusive, agora tem controle sobre a internet, que era uma área de maior liberdade antes da invasão.

Ameaças

A grande questão é se o regime tinha motivo para se preocupar. Ou seja, estava sob ameaça? Observando os índices de popularidade de Putin, aparentemente não havia grandes ameaças. Os regimes personalistas são os mais vulneráveis entre os regimes autoritários. De 2011 para cá, houve um movimento de protestos políticos na Rússia e, desde 2017, os protestos começaram a se interiorizar. Antigamente, eles ocorriam apenas em Moscou e São Petersburgo. A partir de 2017, começam a ocorrer protestos significativos em cidades pequenas.

Diferentemente dos anos 2000, em que Putin conseguiu, beneficiado em parte por causa do crescimento do petróleo no mercado internacional, promover uma melhora das condições econômicas da vida da população, em 2010 não houve o mesmo desempenho econômico. Assim como o Brasil é dependente da exportação de commodities e, no país, os anos de 2010 foram complicados do ponto de vista econômico, na Rússia, o regime também não tinha mais barganhas econômicas para se manter como instrumento de apoio. As pesquisas mostravam que a popularidade do regime era muito mais baixa do que em outros períodos.

Regimes parecidos com o de Putin, como em Belarus, no governo de Aleksandr Lukashenko, que desde a década de 1990 estava no poder, ou o regime do Cazaquistão, que era mais parecido com o da Rússia, que desde a década de 1980 até 2018 ficou no poder e depois foi sucedido, do dia para a noite, se viram em meio a grandes protestos em massa. No caso de Belarus, em 2020 e 2021 houve grandes protestos. Se não fosse por interferência política de Putin, possivelmente o regime de Aleksandr Lukashenko teria caído. Em 2022, o regime do Cazaquistão, que era muito estável, do dia para noite se viu em meio a protestos muito violentos, enquanto em Belarus ocorreram protestos pacíficos. Alguns acabaram incendiando delegacias e órgãos públicos e ali houve intervenção russa com outros países aliados.

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Percebemos que esses regimes, por mais estáveis que pareçam, do dia para a noite podem sucumbir. Como tudo é muito controlado, às vezes, o próprio regime não tem muita ciência de quanto é o real apoio dentro da sociedade. Por mais que o regime pareça estável, o próprio endurecimento das medidas nos últimos anos mostra que as autoridades e elites russas estavam preocupadas com eventuais instabilidades políticas. Essa guerra acabou como uma luva para reforçar a estratégia do combate de ameaças externas e internas que vêm desde os anos 2000.

Em 2006, um ex-agente do Serviço Federal de Segurança – FSB, o órgão sucessor da KGB [Comitê de Segurança do Estado], Alexander Litvinenko, fez uma denúncia de que os atentados de 1999, que deram início à segunda guerra da Chechênia, teriam sido promovidos pelo próprio FSB para gerar uma comoção na sociedade e facilitar uma nova empreitada contra separatistas chechenos. Se é verdade ou não, nunca saberemos; essa é uma teoria conspiratória, mas Alexander Litvinenko foi envenenado com polônio radiativo em Londres, em 2006, e morreu algumas semanas depois desse envenenamento, o que mostra o quão complexa é essa situação.

IHU – Como a relação entre o governo Putin e a Igreja Ortodoxa Russa sustenta a posição em favor da guerra e a manutenção desses conflitos?

Vicente Ferraro – Uma das estratégias políticas de Putin é a aproximação com a Igreja Ortodoxa. Há uma ligação da igreja russa com o Estado russo. Essa é uma característica das igrejas ortodoxas. Enquanto a Igreja Católica Apostólica Romana tem uma certa autonomia em relação aos Estados, as igrejas ortodoxas têm um vínculo histórico muito ligado aos Estados: a Igreja Ortodoxa Grega, a Igreja Ortodoxa Armênia, a Igreja Ortodoxa Búlgara, a Igreja Ortodoxa Ucraniana são igrejas vinculadas e, às vezes, dependentes dos Estados. Acaba ocorrendo uma simbiose no caso russo entre o Estado que ajuda a igreja e, ao mesmo tempo, a igreja contribui para a legitimação política do Estado e do regime como um todo. Isso, historicamente, vem de um modelo chamado 1cesaropapismo. No sistema ortodoxo, as lideranças eram vistas como representantes de Deus. Hoje, não mais tem esse vínculo direto, mas há algo que remonta um pouco a essa ideia.

IHU – Qual o papel da diplomacia vaticana e do Papa Francisco na tentativa de pôr fim ao conflito?

Vicente Ferraro – A atuação do Papa é limitada porque os dois países são de maioria ortodoxa. A opinião do Papa e seu posicionamento pouco influencia no conflito porque esses são países que têm ligação com a Igreja Ortodoxa e não com a Igreja Católica Apostólica Romana.

Houve uma disputa no sentido de que dentro da Ucrânia há igrejas filiadas à Igreja Ortodoxa Russa, ligadas ao patriarcado de Moscou, e houve uma briga do Estado ucraniano, tentando ceifar a relação de igrejas ucranianas com o patriarcado de Moscou. Houve um rompimento na Ucrânia, chamado de autocefalia, ou seja, um desmembramento da igreja ucraniana em relação ao patriarcado de Moscou por volta de 2018, 2019. Até hoje isso gera uma briga porque uma parte dos fiéis é vinculada à Igreja Ortodoxa Russa e a desvinculação da igreja ucraniana acabou gerando algumas tensões. As duas partes estão intransigentes e não estão abertas à negociação.

IHU – Qual a visão de mundo que subjaz às lideranças da guerra?

Vicente Ferraro – As elites russas veem uma maneira de lucrar com esse conflito para a sua legitimação interna. Também é importante lembrar que Putin é um ex-oficial da KGB e trabalhou no órgão sucessor, FSB, ou seja, em órgãos ligados ao establishment militar e de segurança, que tem uma visão de mundo das relações internacionais como um jogo de soma zero. Ou seja, uma visão de competição por poder e pouca crença na eficácia da cooperação. Isto é, os interesses militares e de segurança estão em primeiro lugar. Esses interesses não estavam ausentes, mas não foram o principal motor do conflito. A origem do conflito não foi geopolítica, mas o conflito se torna geopolítico a partir do momento em que começa e passa a envolver interesses de vários atores regionais e extrarregionais. A formação e a carreira de Putin ocorreram no aparato estatal de segurança soviético. Ele tem ligação com uma visão soviética em relação ao Ocidente, uma relação de competição, de antagonismo. Ou seja, ele traz a bagagem institucional e da Guerra Fria. É inegável que a visão militar é predominante dentro da Rússia porque Putin, quando subiu ao poder, trouxe muitos companheiros e aliados do establishment militar para órgãos públicos. Os chamados representantes do presidente nos distritos federais na Rússia são, principalmente, militares. Eles têm uma influência política e ideológica na Rússia hoje.

Visão ucraniana

A situação da Ucrânia é mais difícil de analisar porque houve muitas mudanças políticas nos últimos anos. No período pós-soviético, a Ucrânia foi muito dividida internamente: a parte Oeste é mais pró-Ocidente e tenta se integrar à União Europeia – UE e à OTAN, enquanto a parte Leste é mais vinculada à Rússia e defendia uma maior integração política e econômica com este país. A parte leste da Ucrânia fez parte do Estado russo e foi colonizada pela Rússia por mais tempo; a língua russa e a Igreja Ortodoxa Russa são mais difundidas nessa região e há vínculos familiares com a Rússia. Essa divisão cultural que se formou ao longo de séculos, gradualmente, foi levando a uma polarização no sistema partidário e eleitoral. Então, a cada eleição, a política passava por uma reviravolta: ora ganhava uma liderança pró-Rússia, ora, uma pró-Ocidente.

Em 2014, o governo de Víktor Ianukóvytch, pró-Rússia, estava negociando um acordo de comércio com a UE, que estava tramitando há muitos anos. O acordo estava prestes a ser assinado e, por pressão da Rússia, o presidente se recusou a assiná-lo. Isso levou a uma grande revolta e a uma série de protestos que acabaram adquirindo contornos violentos. Ianukóvytch ordenou uma repressão contra os manifestantes e, em algum momento, tiros foram dados; até hoje não se sabe de onde eles vieram. Esses tiros mataram tanto manifestantes quanto membros do órgão de segurança e da polícia. Isso acabou inflamando ainda mais os protestos e os prédios públicos começaram a ser invadidos e Ianukóvytch fugiu da Ucrânia porque grupos mais radicais e nacionalistas, que ganharam proeminência, acabaram tendo mais destaque. A região leste, que era pró-Rússia, quando viu que as lideranças nacionalistas estavam tendo proeminência política nos protestos, ficou preocupada e Putin se aproveitou dessa insegurança e insatisfação na região leste para promover uma invasão e a anexação da Crimeia e começou uma invasão camuflada no Donbass.

Ucrânia: Confrontos durante manifestação em Kiev:

Invasão camuflada

Há uma discussão na academia sobre se a guerra iniciada em Donbass, em 2014, seria uma guerra separatista ou uma invasão russa. Grupos locais participaram desse movimento, mas, nas fases iniciais, as principais lideranças eram ligadas ao Estado russo e não eram nem mesmo da região. Eram russos étnicos da própria Rússia, ligados ao FSB. Ou seja, houve intermediação russa no estímulo a esse conflito. As elites da Ucrânia consideram que o conflito do Donbass é mais uma invasão da Rússia do que uma guerra separatista no sentido convencional. Na Ucrânia, a invasão de 2022 é chamada de invasão em larga escala, porque ela teria iniciado em 2014, com a anexação da Crimeia e a interferência russa no Donbass. E não se limitou a Donbass, mas tentou pegar inclusive a capital, Kiev.

Há evidências de que é uma invasão porque em diversos momentos o governo ucraniano estava prestes a retomar o controle dessas regiões e, do nada, aconteciam reviravoltas no front porque lá estavam atuando o exército russo e não exércitos separatistas. Depois de 2014, começou uma discussão intensa na sociedade sobre a ideia de que a Rússia representa uma ameaça à Ucrânia e, em prol da sobrevivência do país, seria necessário fazer uma desrussificação da Ucrânia. Os diversos monumentos da era soviética foram derrubados, a língua ucraniana passou a ter mais predominância sobre a língua russa. Isso gerou desconforto nas populações do Leste, onde a língua russa é predominante.

OTAN

Mas o fato é que as pesquisas de opinião pública, mesmo nas regiões lestes, mostram que se antes de 2014 havia uma propensão à integração política, cultural e econômica com a Rússia, após 2014 há uma reviravolta em toda a sociedade ucraniana no sentido de defender uma integração com o Ocidente, a UE e a OTAN. A invasão da Rússia acabou empurrando a Ucrânia para os braços da OTAN. As pesquisas de opinião pública mostram que as inclinações políticas da população antes da invasão, em 2014, eram mais favoráveis a uma integração com a Rússia do que com a UE e a OTAN. Depois dessa agressão, acontece a reviravolta. A agressão da Rússia estimula a Ucrânia a buscar a OTAN como mecanismo de sobrevivência e segurança.

De 2014 para cá, houve perseguição de canais midiáticos ligados à Rússia ou que defendiam posicionamentos mais alinhados à Rússia. Partidos políticos alinhados com a Rússia foram fechados, acusados de traição, de terem vínculos com o inimigo, assim como jornais, canais de televisão e rádio. As autoridades ucranianas também se beneficiam da instrumentalização do conflito no sentido de cercear o debate político e público. Apesar de toda a perseguição, o presidente Petro Poroshenko perdeu as eleições para Zelensky. Mesmo em meio a uma guerra, o presidente não conseguiu se reeleger.

O fato curioso é que Zelensky tinha uma posição mais amena em relação à Rússia, em comparação com Poroshenko. Isso, inclusive, favoreceu que ele vencesse porque foi visto de maneira mais positiva pelas regiões que anteriormente eram mais ligadas à Rússia. Mas, gradualmente, ele foi adotando uma posição mais confrontativa em relação à Rússia porque houve uma pressão na sociedade ucraniana de que ele era muito negligente com o país vizinho e com os separatistas do Donbass. Em 2019, foi adotada uma emenda à constituição ucraniana, segundo a qual, um dia, a Ucrânia seria parte da UE e da OTAN. Mas o fato de acrescentar essa emenda na constituição não garantiria em nada a entrada da Ucrânia na OTAN. Na Ucrânia, a entrada na OTAN é vista, desde 2014, como mecanismo fundamental para garantir a segurança e a integridade territorial do país contra o imperialismo russo.

Transferência de armas

Em 1994, a Ucrânia transferiu suas armas nucleares para a Rússia, no chamado Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança. Houve uma pressão ocidental para que ela transferisse as armas porque se achava que todas as armas da União Soviética deveriam ser concentradas na Rússia e não distribuídas entre as diferentes repúblicas. Hoje, isso é muito questionado. Alguns dizem que a Ucrânia não deveria ter entregado as armas. Segundo o acordo, a Rússia e as potências ocidentais garantiriam a segurança da Ucrânia, mas as elites ucranianas argumentam que não houve essa garantia de segurança tanto por parte da Rússia quanto por parte do Ocidente, que não conteve a invasão russa.

IHU – Qual é a visão do Ocidente em relação à Rússia? Há uma única visão?

Vicente Ferraro – Nós costumamos abordar o Ocidente em si como um bloco uniforme, mas é difícil dizer o que é a abordagem do Ocidente. Os países do Leste Europeu, principalmente os mais próximos da Rússia, têm uma posição muito parecida com a da Ucrânia, ou seja, veem que a OTAN é fundamental para a segurança e proteção deles frente ao expansionismo russo, principalmente os países bálticos que antes eram da União Soviética: Letônia, Estônia e Lituânia. Estônia e Lituânia têm minorias étnicas russas significativas e têm medo que a Rússia possa usar isso como justificativa e pretexto para invadir e unificar o mundo russo, como é a ideologia de Putin de anexar as regiões que são de língua russa.

Posições do Ocidente

Outros países do Leste Europeu, como a Polônia e a Romênia, também veem a Rússia como ameaça a eles e, mais do que nunca, defendem a presença ainda maior da OTAN no Leste Europeu. Outros países, como a Alemanha, que sempre foi um fiel da balança nas relações da UE e da OTAN com a Rússia, tentam manter uma posição de mediação para impedir que as relações entre o Ocidente e a Rússia se degenerem. [Emmanuel] Macron, na França, tenta acalmar os ânimos e tentou incentivar as partes a um diálogo, mas não teve sucesso.

O Reino Unido é um dos países que mais se posicionou ao lado da Ucrânia, tanto que, do ponto de vista ideológico, político e militar, é o país do Ocidente que mais levantou a bandeira de defesa da Ucrânia. Os EUA, devido à competição com a China, veem a ordem ocidental ameaçada. Tanto as rivalidades com a China e as tensões no mar da China em torno de Taiwan, quanto as no Leste Europeu, são vistas como uma ameaça à ordem internacional marcada pela hegemonia norte-americana. Os EUA têm interesses geopolíticos e em sinalizar para a Europa e, dentro da OTAN, que ainda é hegemônico e capaz de garantir a ordem internacional e a segurança dentro da Europa. O engajamento norte-americano acaba servindo como uma sinalização política aos aliados, dentro da Europa, de que os EUA ainda podem ser um ator fundamental para garantir a estabilidade política e militar dentro do continente europeu. Obviamente o establishment americano ganha muito com isso e as elites americanas também acabam sendo beneficiadas pelo conflito. Em resumo, existem diferentes atores envolvidos, com diferentes interesses: políticos, econômicos e de segurança.

IHU – Algumas críticas são dirigidas à esquerda brasileira por não criticar o governo Putin. Compartilha dessa avaliação? Por que, em sua opinião, não há uma crítica direta?

Vicente Ferraro – Sim, mas diria que isso acontece em parte da esquerda porque também me reconheço como esquerda. Há setores da esquerda que têm uma visão mais próxima à minha, de que essa é uma guerra imperialista, de agressão da Rússia, uma potência, contra um Estado menor. Mas há, sim, um posicionamento de parte da esquerda e, diria, de parte da academia também, contrários a essa visão, com muitas narrativas difundidas dentro da academia. Acredito que isso se dá, em parte, porque não há uma análise aprofundada do que é o regime Putin. Há muita semelhança entre as ideias de Putin e as de Bolsonaro. É um regime autoritário, conservador, que exalta o establishment militar, a violência, o nacionalismo. O regime Putin é um regime autoritário de direita e não de esquerda. É um regime que persegue jornalistas, opositores, a própria esquerda. Um dos grupos que mais foi enfraquecido na Rússia desde que Putin chegou ao poder foi o Partido Comunista.

A conivência da esquerda com o governo Putin se dá também pelo antagonismo em relação aos EUA, ou seja, por o regime oferecer um antagonismo e contraponto aos EUA, ele já é um regime positivo e benéfico. Eu também tenho críticas às políticas imperialistas e agressivas norte-americanas nas intervenções no Oriente Médio e na América Latina, mas é preciso ter consciência de que a política imperialista hoje está do lado da Rússia. Assim como os países latino-americanos buscaram se aproximar da Rússia e da União Soviética para conter o imperialismo norte-americano na região, os países do Leste Europeu fazem o movimento contrário, se aproximam dos EUA para tentar conter um imperialismo por parte da Rússia. Outra coisa que é fato é que a Ucrânia talvez não existiria mais no mapa se não estivesse recebendo ajuda militar e econômica de potências ocidentais. O país possivelmente teria sido anexado se não fosse essa ajuda.

IHU – Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança russo, declarou recentemente: “Afirmarei uma coisa que os políticos de qualquer espécie não querem admitir: um apocalipse nuclear não é somente possível, mas também bastante provável. Ao menos há duas razões. A primeira, o mundo está numa crise muito pior que a crise do Caribe (1962). A segunda razão é um tanto quanto banal: as armas nucleares já foram utilizadas. Isto significa que já não são um tabu”. Como interpreta essa declaração? Quais os riscos do uso de armas nucleares nos termos referidos por Medvedev?

Vicente Ferraro – Não acho que seja muito provável, mas há duas situações em que vejo que haveria esse risco. Se a Ucrânia tiver algum sucesso na guerra, no sentido de invadir o território da federação russa antes da invasão – o território de júri e não o território de fato que ela ocupa – e tiver uma contraofensiva. E, sobretudo, se a Ucrânia tiver sucesso no sentido de recuperar a Crimeia. No caso da Crimeia, a Rússia não hesitaria em utilizar armas nucleares porque a anexação da Crimeia é um dos principais trunfos de Putin. Ele não hesitaria em usar as armas nucleares para garantir o controle da Crimeia.

As armas utilizadas seriam as de uso tático, de menor impacto; não têm o mesmo potencial das de uso estratégico, como as de Hiroshima e Nagasaki. As de uso tático atingem bairros e têm um impacto mais localizado, mas, mesmo assim, têm um impacto ambiental e humanitário muito alto. Antes de vermos o uso de armas estratégicas, veríamos o uso de armas nucleares táticas e em situações específicas nesses casos.

IHU – Como interpreta o discurso de Robert Kennedy Jr. no Saint Anselm College, em Goffstown, em New Hampshire, no fim do mês passado, sobre a necessidade de buscar a paz? Quais são os elementos que destacaria?

Vicente Ferraro – O argumento dele é que a expansão da OTAN seria a causa da guerra. Não considero que a motivação da guerra tenha sido essa. Primeiro, porque a Ucrânia não estava perto de entrar na OTAN, ainda que recebesse uma ajuda militar, e, segundo, porque essa é uma guerra que só levaria ao fortalecimento da OTAN. A Rússia não está mais protegida hoje; pelo contrário, está mais ameaçada do ponto de vista geopolítico do que antes da invasão.

O que muitas das análises geopolíticas acabam ignorando é como a preocupação com a sustentação de regime acaba sendo mais tangível do que uma preocupação geopolítica. Putin está muito mais preocupado com ameaças a seu regime, como houve no Cazaquistão e em Belarus, que em questão de dias quase derrubaram os regimes, do que com um eventual ataque de uma das potências ocidentais contra uma potência nuclear, a maior potência nuclear do mundo. Dificilmente, conseguiríamos, nos dias de hoje, imaginar potências ocidentais atacando o país que tem maior número de ogivas nucleares do mundo, que levaria praticamente ao fim do mundo em termos de destruição nuclear. Então, discordo de Robert Kennedy Jr. em relação às causas, mas concordo que o Ocidente teve sua parcela de culpa na deterioração com as relações com a Rússia.

Paz

A discussão sobre a paz que ele levanta tem uma relação direta com a discussão sobre a justiça. Vejo muitas pessoas falarem que o Ocidente precisa parar de dar armas para a Ucrânia porque do contrário nunca vai haver paz. Mas se hoje fosse estabelecida uma paz, qual paz seria? Uma paz em que, provavelmente, 15% do território ucraniano não voltaria nunca mais para as mãos da Ucrânia, depois de terem ocorrido uma série de violações de direitos humanos. Crianças foram deportadas ilegalmente do território ucraniano para dentro da Rússia. Há uma política de assimilação forçada, de anexação territorial. Ou seja, uma série de injustiças foram cometidas e uma negociação de paz seria uma negociação que consolidaria uma injustiça para a Ucrânia.

Negociações

Cedo ou tarde a Ucrânia terá que incorrer em uma negociação e qualquer negociação que for feita será injusta para a Ucrânia. A Ucrânia hoje está numa disputa para ver qual será o melhor momento para alcançar o acordo menos injusto possível. Há uma expectativa de que na contraofensiva, que ela está produzindo agora, consiga desocupar alguns territórios para, eventualmente, estabelecer um acordo e um cessar-fogo que seja menos injusto. Ao mesmo tempo, se ela não buscar negociar um acordo agora, ao invés ter um acordo favorável, corre o risco contrário. A Rússia pode iniciar uma nova ofensiva, anexar mais territórios e, mais para frente, a Ucrânia pode tentar negociar em uma posição mais desfavorável. É um risco que ela está assumindo e que as elites ucranianas estão calculando.

Os dois lados têm preocupação com o tempo. A Rússia se preocupa que se for estabelecido o cessar-fogo agora, isso pode dar mais tempo para a Ucrânia se armar. Mas a urgência em relação ao tempo é maior em relação à Ucrânia porque quanto mais tempo a Rússia ficar com esses territórios, mais ela consegue os integrar à infraestrutura russa, seja física, política ou econômica. Ao mesmo tempo, vai ampliando-se a política de russificação com a migração de russos para a região.

A Rússia também está estabelecendo campos minados e uma das dificuldades que a Ucrânia está tendo agora, na contraofensiva, são as limitações de deslocamento porque a Rússia colocou muitos campos minados ao longo da região ocupada e isso dificulta a reintegração dessas regiões e pode gerar novas vítimas civis. Também há o risco de que a coalizão ocidental de apoio à Ucrânia possa se enfraquecer. A eventual vitória de Trump nas eleições americanas ou de algum republicano mais alinhado a Trump pode levar os EUA a reduzirem sua ajuda à Ucrânia e a reverem seu papel e a política externa; isso seria catastrófico para o país. Não apenas os EUA, mas outras potências ocidentais podem reavaliar seus posicionamentos por ordem interna, como uma crise econômica. A coalizão de apoio militar e econômico à Ucrânia, que hoje é sólida, poderia se fragmentar. No ano passado, houve uma contraofensiva com resultados positivos, como a retomada ucraniana da cidade de Kherson, no sul do país, mas, até o momento, não houve grandes resultados. Há uma grande pressão para que a Ucrânia demonstre resultados para que a ajuda das potências ocidentais não seja revista no curto prazo.

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