Nossas raízes judaicas. Artigo de Roberto Mela

Cruz de Davi, um dos símbolos do judaísmo | Foto: Pixabay

19 Fevereiro 2022

 

"Jesus e os apóstolos, Paulo e os primeiros missionários eram judeus. Jesus é a realização de uma expectativa expressada por gerações de fiéis. O Primeiro Testamento é o solo sobre o qual os livros do Novo Testamento foram pensados. Remover as referências à Bíblia hebraica fragiliza o Novo Testamento".

 

A opinião é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, ao comentar o livro “Le nostre radici ebraiche” [As nossas raízes judaicas], de autoria de Antoine Nouis. O artigo foi publicado por Settimana News, 04-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Pastor protestante, Antoine Nouis é teólogo e biblista, durante anos diretor da revista Réforme. No seu volume, ele pretende sublinhar a importância do Primeiro Testamento e do pensamento rabínico para a compreensão do Novo Testamento e da figura de Jesus. Nouis prefere falar de “Primeiro Testamento”, porque hoje o adjetivo “antigo” assumiu, segundo ele, uma conotação negativa que expressa algo de obsoleto, a ser rejeitado.

Ele define o próprio cristianismo como “rabiniano” (p. 67), a partir do momento em que, após 30 anos de estudo, ele se inseriu nos últimos 20 anos na literatura rabínica e no seu amplo mar interpretativo, ficando fascinado e dependente dele de modo contínuo. Na sua obra, o autor cita várias vezes alguns trechos dessa literatura.

 

NOUIS, Antoine. Le nostre radici ebraiche. Prefácio de Maurion Muller-Colard. Bréscia: Editrice Queriniana, 2021 (original francês: Paris, 2018), 96 páginas.

 

 

O Primeiro Testamento no Novo Testamento

 

Enquanto o marcionismo repudia o Primeiro Testamento, e o Alcorão o reinterpreta para islamizá-lo, o cristianismo recorre ao Primeiro Testamento como inspiração da qual pode tirar coisas antigas e coisas novas. A Bíblia pulula de histórias e é atraente também por esse motivo apenas.

O autor vê uma influência do Primeiro Testamento nas suas três partes – Torá, Profetas, Escritos – sobretudo na genealogia que abre o Evangelho de Mateus. Nela, entram quatro mulheres de histórico irregular. Maria se soma a elas com a sua história. Quatorze gerações sobem até Davi, 14 descendem até o exílio, e as últimas 14 reportam-se a Jesus.

Os profetas, por sua vez, são grandes críticos do templo, que se tornou a sede onde se sequestrou o encontro com Deus graças à obra dos respectivos técnicos – os sacerdotes – e aos sacrifícios de animais. A instituição sufocou a palavra. A pregação do Batista – sacerdote filho de sacerdote – não ocorre no templo, mas no deserto, onde ele atrai para um batismo de penitência, como previra Is 40,3. Os Evangelhos contestam implicitamente a vocação do templo.

Com a sua entrada real, mas humilde e pacífica, em Jerusalém, Jesus cumpre a profecia de Zc 9,9-10. A purificação do templo (ou, melhor, do culto) realizada por Jesus pretende reparar o furto do próprio Deus realizado pela instituição e por uma espiritualidade baseada mais no ritual do que na interioridade e na pessoa. Com a sua pessoa, pregação e gestos de cura, Jesus cumpre a palavra profetizada pelos profetas. No entanto, o autor também recorda a descontinuidade entre o judaísmo dos tempos de Jesus e o rabinismo atual.

Os Salmos, que pertencem à terceira parte da Bíblia hebraica, pontuam a vida de Jesus, especialmente o relato da sua paixão e morte na cruz. Os Salmos contêm muitas orações de luta. Na paixão, Jesus reza o Sl 22. Ele se sente abandonado por Deus, mas permanece em Deus, nunca fora dele. Jesus se confia aos Salmos para nos convidar a emitir o nosso grito diante de Deus. O Sl 118,22 (“A pedra descartada pelos construtores tornou-se a pedra angular”) é o versículo do salmo mais citado no Novo Testamento e expressa – segundo Nouis – a interpretação eclesial do escândalo de um messias crucificado e ressuscitado. Fez pensar o impensável.

Segundo o autor, os três lugares teológicos das genealogias, dos profetas e dos salmos mostram “um evangelho que se inscreve em uma história e em uma tradição. Remover o Primeiro Testamento da fé cristã equivale a privá-la das suas raízes” (p. 45). O enraizamento, porém, não deve ser somente acolhido, mas também interpretado.

 

A contribuição das raízes judaicas

 

O Primeiro Testamento não é apenas uma introdução ao Novo, mas também contém “um modo de pensar, com uma gramática particular e jogos linguísticos que dão origem a uma visão do mundo. Se o Evangelho se inscreve em uma história, ele se elabora em um âmbito de pensamento com uma maneira singular de aprender a questão de Deus” (p. 50).

 

Encarnação

 

A Bíblia confessa um Deus criador, mas sem cair no deísmo nem no panteísmo. A relação com a criação é pensada em termos de aliança. Segundo os sábios, na aliança, o ser humano depende de Deus, mas também é possível fazer a afirmação recíproca. Aliando-se ao ser humano, Deus reconhece que precisa dos seres humanos para cumprir seu próprio desígnio, assim como o ser humano precisa do divino para saber se comportar no mundo.

A Moisés foi dada a Torá, o próprio nome de Deus segundo o Talmud (cf. p. 54). A tradição rabínica está convencida de que a Torá já não está nos céus, no sentido de que a sua aplicação já não depende mais de uma voz, mas da maioria dos sábios (a Grande Assembleia que nasce após a extinção do profetismo).

A Lei se “encarnou”, assim como a encarnação é o coração da revelação do Novo Testamento. Pensando a encarnação de Cristo, os cristãos se inseriram em uma tradição espiritual que os precedia.

A Bíblia se apresenta como uma grande narrativa que começa com a criação e culmina em Jesus Cristo. Mas se eu conheço apenas o fim da história, será que eu realmente a entendi, vivi, habitei? Para entendê-la em profundidade – afirma o estudioso – é preciso ter vivido com os personagens ao longo de todo o caminho que leva à sua conclusão.

O Evangelho e o Novo Testamento não caíram do céu, mas foram pensados e escritos em uma corrente teológica e espiritual, em um processo de encarnação progressiva.


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Arte da capa da edição francesa do livro, Nos racines juives | Divulgação

 

Tensões e leitura infinita

 

A Bíblia hebraica conhece algumas tensões, pelas quais, segundo muitos, não é possível delinear uma teologia do Primeiro Testamento, mas apenas várias teologias (assim como no Novo Testamento).

Nouis afirma que a Torá representa uma identidade de fundação; os livros proféticos, uma identidade de contestação; enquanto a coleção dos “outros escritos” corresponde a uma identidade de universalização, contendo muitos elementos presentes também em outros âmbitos culturais.

O estudioso recorda que o judaísmo estrutura as três partes da Bíblia hebraica segundo uma ordem decrescente de importância.

As tensões do Primeiro Testamento permitem pensar naquelas presentes no Novo Testamento. Nouis recorda três.

A primeira é a tensão entre lei e liberdade (cf. Paulo), ambas necessárias, se a primeira não se fossilizar. Não se trata de escolher e excluir. A referência ao Primeiro Testamento permite pensar a complexidade.

A segunda tensão é aquela entre o fundamento e a abertura. No Novo Testamento, são expressadas algumas afirmações sobre estar ou não com Jesus ou contra Jesus que devem ser interpretadas no contexto. Existe o fundamento em Jesus e existe abertura ao outro.

A terceira tensão é aquela entre o juízo e o perdão. Haverá um juízo, mas o perdão superabundou, mesmo não sendo automático e obrigatório.

De acordo com Nouis, dizer apenas que existem teologias diferentes significa ignorar a complexidade. O estudo do rabinismo e dos sábios do judaísmo posterior ensinou o autor a apreender a complexidade, a articular a norma e a sua transgressão, o exclusivo e o inclusivo, a justiça e a misericórdia, a pensar as dissensões. Desse modo, o estudioso chegou a uma compreensão pessoal do Novo Testamento.

A terceira contribuição fornecida pelas raízes judaicas ao cristianismo (além das ideias de encarnação e de complexidade) é aquela fornecida no que diz respeito à interpretação das Escrituras. O judaísmo rabínico conhece uma tradição oral que tem o mesmo valor daquela escrita e por meio da qual se interpreta a Bíblia (como os cristãos fazem por meio de Jesus). Ele também conhece uma leitura infinita, o que não equivale a desdobrar o cérebro. Toda leitura é legítima se estiver conectada a uma tradição que a sustente.

O autor cita uma página do Talmud em que se ilustram muitas explicações acerca do tempo e da modalidade em que os tempos messiânicos se cumprirão (com elementos até mesmo contraditórios entre si, mas todos sustentados pela Bíblia ou por outros sábios anteriores). O Talmud se apresenta como um discurso irredutivelmente plural.

 

Um olhar novo e a abertura à atualidade

 

A descoberta da leitura rabínica abriu ao autor horizontes infinitos e fecundos. Ele dá três exemplos de como a leitura rabínica entra em ressonância com o Novo Testamento, fornecendo um olhar novo.

Os pesadíssimos “ais” dirigidos por Jesus aos fariseus em Mt 23 encontram um paralelo em uma página do Talmud (escrito por fariseus) que ilustra sete tipos de fariseus: o exibicionista, o temporizador, o “pilão” (isto é, com a cabeça baixa por falsa humildade), o calculista entre culpas e boas ações para compensá-las, o previdente (observa um preceito para poder violar outro da mesma importância), o fariseu por temor, o fariseu por amor, como Abraão. Este último é o único amado por Deus.

Não se trata da crítica a representantes de um movimento religioso, mas de um mau posicionamento diante de Deus. Pode-se reler Mt 23 substituindo o termo “fariseu” por “cristão”.

Na alegoria das duas esposas de Abraão elaborada por Paulo na Carta aos Gálatas para ilustrar a escravidão e a liberdade, o apóstolo inverte os elementos. À escrava Hagar são associados o Monte Sinai e Jerusalém, ou seja, ao dom da Lei, da libertação e da independência de Israel. Paulo se vale das aberturas presentes na tradição (a mulher livre e a mulher escrava) para dar origem ao relato bíblico, comparando-o com as problemáticas atuais.

Alimentado pela leitura infinita dos rabinos, Paulo relê as Escrituras aceitando o risco da interpretação e da atualização. O relato bíblico não é um fato intocável do passado. É certo que, com a sua teologia feita “a golpes de martelo” (p. 78), Paulo não deixou de criar escândalo entre os sábios do seu tempo. Paulo lembra aos seus interlocutores que “é no exercício da liberdade que eles são verdadeiros filhos de Abraão, herdeiros de uma promessa que passa pela mulher livre, e não pela mulher escrava” (p. 78).

Os comentários rabínicos se preocupam mais com uma leitura atualizadora das Escrituras do que com uma leitura de tipo histórico. A Carta aos Hebreus recorda a importância de evitar “hoje” a rebelião contra Deus e contra Moisés levada a cabo pelo povo de Israel no deserto (cf. Hb 3,7-8 que cita Sl 95,7-8). Para Hebreus, o “hoje” do salmista se torna o da primeira Igreja, torna-se o hoje do leitor do nosso tempo.

Nouis lembra que a religião pode se fechar em si mesma e gerar monstros. Por isso, é preciso abrir-se ao rosto do outro. “Na minha opinião – afirma o estudioso – o judaísmo é um rosto teológico e espiritual que deveria impedir o cristianismo de se fechar em uma concepção exclusiva demais da sua verdade” (p. 82).

 

Recuperar as raízes

 

Segundo Nouis, três razões explicitam a proteção que o fato de levar em consideração as próprias raízes judaicas pode oferecer diante dos monstros gerados pelo cristianismo.

A primeira é uma razão teológica. A idolatria ameaça o teólogo quando ele se inclina a assimilar o seu discurso sobre Deus com o próprio Deus, tendo domínio sobre ele. Então, tudo se torna possível. “Basear-se no Primeiro Testamento é um modo de dizer que a palavra de Deus sempre excederá a minha compreensão e o meu discurso” (p. 83).

A razão histórica se deve, por sua vez, à extraordinária sobrevivência de Israel, que crê no mesmo Deus que os cristãos, apesar de todas as perseguições. Segundo Nouis, se alguém ler a história guiado pelo Evangelho e com os óculos de Cristo, não poderá deixar de ver nesse povo oprimido, mas sempre vivo, um sinal do rastro de Deus na história. Não podemos ignorar a estupefaciente riqueza de sabedoria, de reflexão, de estudo, de fé e de oração presente na modalidade judaica de ler as Escrituras. Segundo Nouis, o cristão não pode ignorar essa rica tradição.

Por fim, a razão ética reside no fato de que levar em consideração o Primeiro Testamento como raiz, com a sua proximidade e a sua diferença, é uma abertura que permite dar um lugar ao outro no meu sistema de pensamento. Defrontando-se com o Primeiro Testamento, outro em relação a si mesmo, o cristianismo “não satura o campo do sentido, mas deixa espaço para o diálogo e para o encontro com outras palavras de verdade. [...] Apoiar-se em uma fonte que me é estranha é um modo de abrir um espaço que permite que a palavra dotada de sentido circule” (p. 85).

 

 

Dezessete razões

 

Dezessete são as razões elencadas por Nouis na conclusão do seu livro para crer nas raízes judaicas. Jesus e os apóstolos, Paulo e os primeiros missionários eram judeus. Jesus é a realização de uma expectativa expressada por gerações de fiéis. O Evangelho fala de uma encarnação da palavra. Esta se inscreve em uma tradição. O Primeiro Testamento é o solo sobre o qual os livros do Novo Testamento foram pensados. Remover as referências à Bíblia hebraica fragiliza o Novo Testamento. Jesus em pessoa expressou o primeiro de todos os mandamentos citando Dt 6,4-5.

Em Rm 9,2-5, Paulo, o defensor da liberdade cristã (e, segundo Nouis, um dos fundadores do cristianismo), expressou uma dor enorme pela incredulidade dos seus correligionários em relação a Jesus. Porém, recorda deles os inúmeros e preciosos privilégios histórico-teológicos. Se os personagens e as histórias do Primeiro Testamento fossem tirados, a fé cristã se tornaria menor, mais triste, respiraria pior. O Primeiro Testamento também é copioso em criatividade (mitos, contos, tragédias, épicos, parábolas, orações, provérbios etc.).

Nouis também acredita nas raízes judaicas do cristianismo porque o pensamento rabínico é tão rico quanto a vida, e não tão pobre quanto uma ideologia. Ele lembra que a Igreja primitiva não se livrou do Primeiro Testamento, declarando ser portadora de uma verdade radicalmente nova que tornaria obsoletas as revelações anteriores. Paulo lembra que tudo é dom. O Evangelho não caiu do céu, mas é fruto de uma espera e de uma história. O reconhecimento das raízes judaicas leva à humildade, a se sentir impulsionado por uma fonte diferente de si mesmo: “As minhas raízes me lembram que o Deus que eu sirvo é maior do que aquilo que eu sei sobre ele” (p. 90). Os comentários dos sábios estão ricos em pepitas de inteligência e de sabedoria que falam do Deus em quem até o cristão crê. Se o povo judeu não existisse, o mundo seria enormemente mais pobre em arte, literatura, poesia, filosofia, ciências e humanidade.

Nouis crê ainda nas raízes judaicas porque Israel foi regularmente perseguido, e o versículo sálmico mais citado no Novo Testamento diz que “a pedra descartada pelos construtores se tornou a pedra angular”. O coração da revelação cristã – a paixão de Jesus – evoca o projeto de aniquilação do povo de Israel e da sua tradição religiosa. Não se pode manter nenhum sentido da história que possa ser defendido voltando-se as costas para Auschwitz.

A última razão pela qual Nouis crê nas raízes judaicas da sua fé cristã reside no fato de que não foi ele quem as escolheu, mas foram elas que a moveram, alimentaram e convocaram.

O autor leu o Primeiro Testamento por 50 anos e, há 30 anos, fez isso com a ajuda dos comentários dos sábios, encontrando ali um alimento para a própria fé.

Nas últimas linhas do seu texto, Nouis confirma, portanto, aquilo que Paul Claudel escreveu: “A prova do pão é que ele alimenta; a prova do vinho é que ele inebria; a prova da verdade é a vida; e a prova da vida é que ela faz viver!” (p. 91).

Termino estas linhas enquanto chega a notícia da morte em Jerusalém do Pe. Frederic Manns, exegeta franciscano, grande estudioso das raízes judaicas do cristianismo. Que ele viva em Deus e goze do prêmio da alegria do seu Senhor, cuja Palavra ele difundiu com amor infinito.

 

 

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