Um sonho chamado Talmud

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06 Abril 2019

O Talmud, pois bem: por onde começar? Poderia ser, sinteticamente, mas de modo algum fácil, pelas palavras do rabino Adin Even Israel: "O Talmud é um livro do mistério totalmente aberto porque o segredo que contém não precisa ser escondido". É a citação apresentada no início de cada Tratado publicado pela editora Giuntina, para o extraordinário "Projeto de Tradução do Talmud Babilônico" em italiano: um sonho, quase uma utopia, nascido em 2010 graças à professora Clelia Piperno e sob a orientação científica e operacional do rabino Riccardo Di Segni.

A reportagem é de Camilla Tagliabue, publicada por il Fatto Quotidiano, 28-03-2019. A tradução é de Luisa Rabolini

Quinhentos anos após a última impressão na Itália (justamente na Veneza do século XVI o Talmud foi publicado pela primeira vez no mundo), o projeto envolve uma centena de pesquisadores e tradutores informatizados e foi realizado - com um financiamento de onze milhões de euros - em sinergia entre a Presidência do Conselho de Ministros, o MIUR, o CNR, o UCEI e o Colégio rabínico italiano.

Texto sagrado do judaísmo, perdendo apenas para a Torá, o Talmud significa precisamente "estudo, ensino, discussão" da Bíblia, mas não apenas: é a somatória do pensamento - e do debate, das interpretações, das contradições, das disputas e muito mais - das escolas e academias da Palestina e da Babilônia entre o século II antes da Era Comum (a.C.) e o V depois a Era Comum (d.C.), embora a redação e a sistematização dos imensos materiais tivesse acontecido apenas entre o III e V séculos. É dividido em seis ordens (regras agrícolas; sábado e festas; direito matrimonial; direito civil e penal; normas sacrificais; pureza e impureza ritual), por sua vez divididas em Tratados, 63, para um total de 2.711 folhas.

Graças ao projeto dirigido por Piperno, três Tratados já foram traduzidos e editados desde 2016 - Rosh haShanà (Ano Novo, de Riccardo Di Segni); Berakhòt (Bênçãos, por Gianfranco Di Segni); Ta'anìt (Jejum, por Michael Ascoli) -, enquanto um quarto, Qiddushìn (Matrimônio), está sendo preparado para a publicação. A tradução é digitalizada, e este é um dos aspectos inovadores da operação italiana, que utiliza um software e um complexo sistema informático (rebatizado "Traduco") desenvolvido pelo Instituto de Linguística Computacional do CNR de Pisa. "Já está na máquina 60% do trabalho, mas ainda há muito a ser revisado", explica Piperno, jurista e acadêmica, já nomeada "Mulher do Ano" pela revista Lilith - Independent, Jewish e Frankly Feminist.

"A margem de tempo é desafiadora: ainda não temos como quantificar a duração de todo o projeto. O único empreendimento semelhante ao nosso foi tentado, há muito tempo, nos Estados Unidos: sem o software, os norte-americanos empregaram 40 anos para traduzir o Talmud babilônico, ou seja, duas gerações de estudiosos. Nosso objetivo é terminar o trabalho em uma única geração”.

Obra-mundo, bíblia da bíblia, o Talmud entrelaça“ breves acenos sobre o universo ”, mas seriamente, com todo o respeito a Gramsci: nele tem de tudo, e mais ainda, e o contrário de tudo, e mais ainda; desde o papel da mulher às modalidades do divórcio, da alma à caridade, das superstições aos empréstimos, das normas de higiene à ressurreição dos mortos, do perdão aos deveres para com os animais ... tanto que no século XX, um teólogo sarcástico, ou talvez apenas ignorante, ridicularizou o livro rotulando-o como "tratado dos ovos", porque sim, até sobre ovos se trata no Talmud. Hoje, ao contrário, há muitos que assumem a definição-metáfora de "hipertexto", explicando assim, no projeto italiano, a feliz união entre sabedoria antiga e tecnologia ultramoderna: "Eu gostaria de esclarecer com uma imagem - continua Piperno -. Um dos testes a que as crianças eram submetidas no final do estudo do Talmud era o seguinte: eles recebiam uma agulha, ou seja, um ancestral do apontador, pedindo-lhes que "furassem" o livro para depois explicar o que estava escrito nas páginas abaixo do furo da agulha. Justamente como em um hipertexto, as páginas, os "doc" estão todos interligados: raciocínios sobre raciocínios, dúvidas sobre dúvidas, para chegar a encontrar as respostas dentro de si.

Mais do que um livro, é um banco de conhecimentos, dentro do qual cada um pode também encontrar novas questões, novas interrogações". Diante de uma obra tão aberta, rizomática, criada pela" gemação intelectual ", da infinita hermenêutica, ainda hoje discutida, atualizada e em evolução (embora o Talmud "canonizado" pare no V século), é impossível não prender a respiração e sentir assombro. "Perturba-nos como pode nos perturbar o universo, que se expande o tempo todo: não o conhecemos inteiramente. A primeira sensação é o medo, é verdade, mas com um pouco de coragem você tenta se jogar no infinito onde, de qualquer forma, você já está. A comparação com o infinito é natural: o Talmud te ajuda a administrar esse medo, as mesmas ansiedades e as mesmas dúvidas transmitidas por séculos. Hoje falamos de jejum, meio jejum, jejum por horas: no Ta'anìt já se fala tudo isso". Também a interpretação dos sonhos está lá, de forma seminal, no Berakhòt: "Não é mostrado a um homem em seus sonhos, se não o que vem dos pensamentos de seu coração".

Em suma, Freud não inventou nada, nem o Deus misericordioso é uma invenção de Cristo. O Talmud é cheio de histórias, explicações e anedotas sobre a misericórdia de Deus, por exemplo, quando ele salva dois peregrinos de uma previsão desfavorável do astrólogo, comovendo-se por um pedaço de pão dado a um mendigo, ou quando impede que os anjos celebrem depois de ter fechado as águas do Mar Vermelho, advertindo-os: "A obra de minhas mãos se afoga no mar e você me ofereceriam um cântico!" "O mundo é julgado pela graça", comentou um rabino e outro, o mítico Hillel, foi ainda mais lapidar: "O que você não quer para si mesmo, não faça ao seu próximo. Tudo isso é a Torá e o resto é apenas comentário. Vá, e aprenda”.

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