Sobre a fórmula do batismo: um responsum límpido, uma nota doutrinal preciosa, mas parcial. Artigo de Andrea Grillo

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07 Agosto 2020

"Em um sacramento, não há apenas a 'fórmula' e o seu 'ministro', mas há também uma 'forma ritual', que, a partir do Concílio Vaticano II, redescobrimos como 'fonte e ápice' de significado e de verdade", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 06-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Como é habitual das Congregações vaticanas, pode acontecer que, para “casos polêmicos”, suscitados pela experiência eclesial e propostos à atenção da Cúria Romana, cada Congregação dê uma breve resposta, que geralmente assume a forma lapidar de um “sim” ou de um “não” (afirmativas/negativas).

No caso em questão, o texto da Congregação para a Doutrina da Fé se apresenta com esse corte lapidar usual [disponível aqui, em português oficial]:

Dúvidas

Primeira: É válido o Batismo conferido com a fórmula “Nós te batizamos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”?

Segunda: Aquelas pessoas para quem foi celebrado o Batismo com esta fórmula devem ser batizadas de modo absoluto?

Respostas

À primeira: Negativamente.

À segunda: Afirmativamente.

Se não tivéssemos a Nota Doutrinal, que acompanha o breve texto, poderíamos custar a entender de onde surge a questão e quais são as razões da resposta.

Por isso, é muito útil ler a seguinte Nota, da qual se fica sabendo que a “fórmula” utilizada e contestada não é simplesmente aquela referida na citação oficial do “responsum”, mas sim esta:

“Em nome do papai e da mamãe, do padrinho e da madrinha, dos avós, dos familiares, dos amigos, em nome da comunidade, nós te batizamos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.”

Aqui é evidente que o motivo da justificada perplexidade na avaliação do “caso” não está tanto no uso do “nós” no lugar do “eu”, mas sim na sobrecarga de “nomes” que são jogados dentro da fórmula. Esta é dita “em nome” de todos os parentes e padrinhos e “em nome” da trindade divina.

A perplexidade em relação a tal expressão, com a recondução da ação do ministro “em nome” dos parentes/padrinhos, certamente é exorbitante e desviante no que diz respeito ao sentido do sacramento e à forma comunitária da Igreja.

Isso implica, como a própria nota diz mais adiante, que não se pode entender a ação do ministro como ação realizada “em nome dos pais, dos padrinhos, dos familiares ou dos amigos”. A diferença entre família e Igreja deve permanecer clara e não pode ser obliterada. Qualquer ministro do batismo – ordenado ou leigo – se coloca em uma posição “outra” em relação à família de pertença do batizando. Precisamente porque ele é ministro de Cristo e da Igreja, e não da família.

Por outro lado, é necessário reconhecer que a bondade da decisão tomada e dessa argumentação geral que a sustenta corretamente é acompanhada de expressões e motivações que não parecem totalmente convincentes.

Gostaria apenas de assinalar três expressões, que levantam alguma perplexidade em relação ao caso considerado e corretamente julgado:

a) Em uma passagem central, a Nota afirma:

“A Igreja, com efeito, quando celebra um Sacramento, age como Corpo que opera inseparavelmente da sua Cabeça, enquanto é o Cristo-Cabeça que age no Corpo eclesial por ele gerado no mistério da Páscoa. A doutrina da instituição divina dos Sacramentos, solenemente afirmada pelo Concílio de Trento, vê assim o seu natural desenvolvimento e a sua autêntica interpretação na citada afirmação da Sacrosanctum Concilium. Os dois Concílios se encontram, portanto, em sintonia complementar, ao declararem a absoluta indisponibilidade do setenário sacramental à ação da Igreja. Os Sacramentos, de fato, enquanto instituídos por Jesus Cristo, são confiados à Igreja para que sejam por ela conservados. Aparece aqui evidente que a Igreja, ainda que seja constituída pelo Espírito Santo como intérprete da Palavra de Deus e possa, em certa medida, determinar os ritos que exprimem a graça sacramental oferecida por Cristo, não dispõe dos fundamentos mesmos do seu existir: a Palavra de Deus e os gestos salvíficos de Cristo”.

Na identificação da continuidade entre o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II, formula-se uma “absoluta indisponibilidade” do septenário que parece ser uma afirmação não justificada nem pelo caso em questão, nem pela tradição posterior ao Concílio Vaticano II.

Se foi modificada até a “fórmula” de alguns sacramentos (por exemplo, da unção dos enfermos, da ordenação...), é claro que é difícil falar de “absoluta indisponibilidade”. Eu acredito que é legítimo distinguir modificações arbitrárias, que sempre devem ser evitadas, e modificações ponderadas e meditadas, que podem ocorrer oficialmente, mesmo que apenas sob determinadas condições. De modo algum a indisponibilidade do sacramento significa enrijecimento, minimalismo ou formalismo. Ai de nós se compreendêssemos o sentido nessas direções.

b) Com uma bela síntese, a nota expressa o valor da ministerialidade batismal com estes termos:

“O ministro é um sinal exterior da subtração do Sacramento ao nosso arbítrio e da sua pertença à Igreja universal”.

Isso vale para aquele que age “in persona ecclesiae” mediante a palavra e o gesto. A “diferença” do ministro – repito, seja ele clérigo ou não, como é possível no batismo – é fundamental para que o batismo não seja nem um ato anônimo, nem um ato de clã familiar ou de sociedade civil.

Essa diferença, no entanto, deve ser distinguida da ação “in persona Christi”, que é reservada, na tradição, apenas à presidência eucarística. Daí o terceiro ponto significativo e que gera algum desconforto.

c) Uma terceira afirmação-chave da Nota tem o seguinte teor:

“Quando o ministro diz ‘Eu te batizo…’, não fala como um funcionário que cumpre um papel a ele confiado, mas opera ministerialmente como sinal-presença de Cristo, que age no seu Corpo, doando a sua graça e tornando aquela concreta assembleia litúrgica manifestação ‘da genuína natureza da verdadeira Igreja’, enquanto ‘as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é sacramento de unidade, isto é, povo santo, reunido e ordenado sob a direção dos bispos’”.

Essa arejada reconstrução parece deixar um pouco em segundo plano o fato de que o “ministro do batismo” pode ser qualquer pessoa na Igreja, até mesmo uma pessoa não batizada. Por isso, a tradição sempre enfatizou que quem batiza age “in persona ministri”, não “in persona Christi”.

O texto da Congregação parece sobrepor imediatamente o “ministro do batismo” ao “presbítero/bispo”. Essa diferença entre batismo e eucaristia, que por sua vez deve ser conservada, permite salvaguardar o caráter comunitário da celebração, mas não aconselha a superexposição do ministro mais do que o devido, precisamente porque a fórmula – a mesma – pode estar na boca de um bispo, mas também na boca de uma obstetra.

A tradição, que conhece bem essas diferenças, talvez aconselharia uma formulação menos drástica da identificação cristológica do ministro, junto com uma consideração menos rígida da articulação ministerial na pastoral batismal.

Portanto, é totalmente verdade que não somos nós os donos da tradição e que não podemos manipulá-la ao nosso gosto. Muito menos podemos curvar as fórmulas eclesiais à absolutização das relações familiares ou comunitárias.

Mas a relativa (não absoluta) indisponibilidade com a qual a Igreja conserva a tradição batismal encontra na dinâmica ministro/assembleia uma verdade na qual o “eu” que batiza age “in persona ministri” – como ministro chamado à ação eclesial – e somente assim encontra em Cristo e na Igreja a sua verdade plena.

Em um sacramento, não há apenas a “fórmula” e o seu “ministro”, mas há também uma “forma ritual”, que, a partir do Concílio Vaticano II, redescobrimos como “fonte e ápice” de significado e de verdade.

Essa “forma ritual”, que inclui a fórmula, é feita, porém, também de gestos, de cantos, de silêncios, de posições no espaço e no tempo, de todas as outras palavras, antes e depois da fórmula. Portanto, se poderia dizer que o “nós” não substitui o “eu” da fórmula sacramental, contanto que, na “forma ritual” do sacramento, se saiba passar do “eu” para o “nós” do povo santo reunido, sob a orientação do pastores.

O que a fórmula não diz e não pode dizer, o rito o realiza e o deve mostrar, com toda a multiplicidade dos seus códigos verbais e não verbais. O fundamento da tradição a ser conservado também está nessa preciosa redescoberta da sua forma ritual, que certamente se situa na fórmula, mas também, e estavelmente, aquém e além da fórmula.

 

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