O Sul Global não é um ponto no mapa mundial; é uma condição estrutural de dependência e subordinação tecnológica”. Entrevista especial com Mardochée Ogécime

Transformações geradas pela IA é um dos fenômenos mais urgentes e desafiadores do nosso tempo, diz pesquisador haitiano

Foto: Pixabay

22 Setembro 2025

O desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) não envolve apenas conhecimento técnico e científico, que permite o “aprendizado” das máquinas ou a criação de sistemas digitais inteligentes. O desenvolvimento de IA, adverte Mardochée Ogécime, tem a ver com concentração de poder. Mais especificamente, afirma, com a “reconfiguração das desigualdades estruturais e colonialidades”. A questão que se coloca diante do avanço da IA no mundo contemporâneo, assegura, “não é apenas uma questão técnica, mas uma questão política: quem ganha e quem perde na organização estrutural que a IA promove?”

Para o pesquisador das áreas de Ciência da Informação e Ciência da Computação, a resposta à questão é clara: a corrida dos países pela dominação do desenvolvimento da IA acentua o colonialismo, a dependência e as desigualdades nos países periféricos. “Há uma dependência infraestrutural. A maioria dos países latino-americanos e africanos não possui supercomputadores, GPUs ou fábricas de semicondutores capazes de competir no mercado global. Outra questão é a própria cadeia de fornecimento de IA, que reforça esse quadro. Enquanto os recursos minerais essenciais, como lítio, cobalto e terras raras estão concentrados nos países do Sul Global, a exploração desses recursos é controlada por corporações estrangeiras, que reproduzem velhas lógicas extrativistas com novas roupagens tecnológicas”, resume.

O colonialismo digital, esclarece, “não é uma metáfora; ele se materializa em desigualdades estruturais de acesso, em regime de dependência tecnológica e em formas de exploração do trabalho e dos recursos naturais. Enquanto alguns poucos países e empresas concentram poder computacional e publicidades intelectuais, grande parte do mundo permanece como fornecedor de insumos, sejam eles dados minerais, sejam eles trabalhos baratos”.

Mardochée Ogécime foi o primeiro conferencista do Ciclo de Estudos A corrida pela Inteligência Artificial. Distopias capitalistas e resistências decoloniais, promovido pelo Instituto Humanitas UnisinosIHU neste semestre com o objetivo de refletir sobre os avanços da IA e as transformações no sistema capitalista. Na videoconferência intitulada “Tecnofeudalismo e colonialismo digital. Um olhar a partir do Sul Global”, o engenheiro informático classifica as transformações geradas pela IA como “um dos fenômenos mais urgentes e desafiadores do nosso tempo”. A seguir, reproduzimos a conferência no formato de entrevista.

A próxima videoconferência do ciclo será ministrada por Luca Belli, professor de Direito da Regulação da Fundação Getulio Vargas (FGV). A palestra “Da soberania digital à soberania em IA. Desafio da corrida pela Inteligência Artificial” será transmitida na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no YouTube em 30-09-2025, às 10h. A programação completa do ciclo está disponível aqui.

Mardochée Ogécime (Arquivo pessoal).

Natural do Haiti, Mardochée Ogécime é doutorando em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre na mesma área pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e graduado em Engenharia Informática pela Universidad Tecnológica de Santiago, República Dominicana.

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a questão mais urgente do nosso tempo?

Mardochée Ogécime – Um dos fenômenos mais urgentes e desafiadores do nosso tempo é a questão das transformações trazidas pelas tecnologias de Inteligência Artificial. A IA deixou de ser uma promessa futurista para se tornar um fator decisivo nas estratégias geopolíticas contemporâneas. Ao mesmo tempo, ela se converteu em uma engrenagem fundamental nas novas formas de acumulação capitalista, reconfigurando setores econômicos inteiros, redefinindo a organização social do trabalho e alternando a própria experiência social cotidiana. Quando falamos em IA, não estamos tratando apenas de algoritmos, máquinas inteligentes ou agentes inteligentes; estamos nos referindo ao poder, à reconfiguração das desigualdades estruturais e colonialidades. Estamos também falando de como as infraestruturas digitais se articulam com dinâmicas históricas de exploração e dependência, aprofundando hierarquias globais já existentes.

IHUA partir dessa perspectiva, como pensa a IA e suas consequências a partir do Sul Global?

Mardochée Ogécime – A IA e suas consequências não são neutras ou universais. Tomar a IA a partir de um olhar crítico do Sul Global nos permite enxergar não apenas os efeitos materiais da IA – econômico, trabalhista e político –, mas também seus impactos simbólicos, epistemológicos e culturais. Em outras palavras, é uma aposta intelectual de indagar que tipo de capitalismo está emergindo junto com as tecnologias baseadas em IA e, diante dele, quais existências decoloniais se tornam possíveis e necessárias. É com esse horizonte em mente que faço uma reflexão sobre o feudalismo, o capitalismo e o colonialismo digital, articulando distopias capitalistas e possibilidades de existências que podem ser pensadas ou que estão sendo pensadas a partir do Sul Global.

Sul Global, uma condição política e econômica de dependência

O termo “Sul Global” não é apenas geográfico; ele faz referência a uma condição política e econômica de países historicamente situados na periferia do sistema mundial, marcados por colonialismo, dependência econômica, desigualdade, pouco acesso a recursos e subordinação tecnológica. O Sul Global não é um ponto no mapa mundial; é uma condição estrutural de dependência e subordinação tecnológica.

IHU – A China enquadra-se neste conjunto de países?

Mardochée Ogécime – A China é um caso singular. Historicamente, este país faz parte do Sul Global, mas, nas últimas décadas, assumiu um certo protagonismo tecnológico, tornando-se competidor direto dos Estados Unidos. Isso coloca o gigante asiático em uma posição ambígua. Quando situamos o olhar a partir do Sul Global, a China é, simultaneamente, exemplo de ascensão pós-colonial e de novas formas de dominação digital no Sul Global.

IHU – Há um colonialismo digital no Sul Global?

Mardochée Ogécime – Situo o conceito de colonialismo digital como uma atualização do conceito de terceiro mundo, que está articulado com a noção de colonialidade do poder, baseado, por exemplo, na teoria de Aníbal Quijano. Argumento que, apesar da independência formal, as estruturas coloniais continuam operando em forma de exploração econômica, dependência tecnológica e subalterização cultural e epistêmica.

O Sul Global inclui grande parte da África, América Latina, Caribe, Oriente Médio e regiões da Ásia, com heterogeneidades internas. Neste contexto, a China é uma figura importante no debate sobre o Sul Global. Merece atenção especial pela questão da origem, experiência histórica e ascensão econômica e tecnológica contemporânea. Consideramos a China como potência semiperiférica ou contra-hegemônica. O país já não pode ser visto como parte do Sul Global em termos tecnológicos, porque lidera em pesquisa, infraestrutura e investimentos em tecnologia baseada em IA.

Porém, a China ainda enfrenta dependências em áreas críticas, como acesso a certos mercados, regulação interna, bloqueios e sanções. O país, portanto, atua numa posição híbrida por ser uma potência emergente que tensiona a hegemonia do Norte Global, mas não compartilha totalmente as condições de vulnerabilidade dos países periféricos, quando comparado com Brasil, Nigéria, Índia e outros.

IHU – Quais as implicações políticas e econômicas do desenvolvimento da IA? Como essa tecnologia está reconfigurando as relações entre os países?

Mardochée Ogécime – Nos últimos anos houve um salto extraordinário na capacidade dos sistemas de IA: modelos de linguagem, como aqueles que hoje dialogam conosco em tempo real, algoritmo ou divisão computacional, capazes de interpretar textos, vídeos, sistema de aprendizagem profunda, que alimentam muitos diagnósticos médicos. A IA passa a ocupar um lugar central na vida social e no mercado, sobretudo nas disputas geopolíticas, deixando de ser, portanto, um tema restrito a laboratórios e universidades.

Controle do espaço digital

No plano internacional, o desenvolvimento da IA se torna mais um eixo estratégico de disputa de poder, sobretudo entre Estados Unidos e China. É nesse contexto que se insere a ideia de capitalismo digital, que é diferente do capitalismo industrial, marcado pela produção material. O capitalismo digital concentra seu poder no controle das plataformas, no fluxo de dados, nas redes globais de infraestruturas e em empresas, por exemplo, como Google, Amazon, Meta, Microsoft e Apple, mas também em conglomerados chineses, como Alibaba, Baidu e Tencent.

Essas empresas não competem apenas em mercados específicos; elas estão estruturando a própria lógica de funcionamento da economia digital. Estamos diante de uma economia em que as plataformas se tornam verdadeiros senhores feudais, cobrando pedágios e extraindo renda sobre atividades sociais e econômicas mediadas por algoritmos e suas infraestruturas. Nesse modelo, não se trata apenas de vender produtos ou serviços, mas de controlar o espaço digital como um território onde cada transação, cada interação, gera extração de valor.

Formação de novas arquiteturas

Quando olhamos para o cenário contemporâneo de IA, vemos não apenas avanços técnicos, mas também a formação de novas arquiteturas de poder global, arquiteturas que redefinem relações entre Estados, corporações e cidadãos, as quais reproduzem novas assimetrias e novas formas de dependência. Isso tudo coloca diante de nós a pergunta fundamental: estamos caminhando para uma era de emancipação tecnológica ou para uma intensificação de forma de dominação que já conhecemos?

IHU – O que os dados empíricos sugerem?

Mardochée Ogécime – No contexto da IA, há diferenças globais e regionais no acesso a chips avançados, GPUs, TPUs e infraestruturas de data centers que permitam treinar e executar modelos de IA. Até fevereiro deste ano, 75% do desempenho computacional dos clusters de GPUs estava concentrado nos Estados Unidos e, 15% na China, que está em segundo lugar.

Os Estados Unidos dominam também cerca de 75% do desempenho total dos supercomputadores; a China, 15%. Essa é uma corrida que está sendo disputada de forma rápida e intensificada. Isso confirma a existência de um uma divisão computacional globalíssima. A maioria da infraestrutura para o desenvolvimento e treinamento de IA está na mão de poucos países centrais.

Outra questão é a perspectiva que tenta mensurar a produção de modelos baseado em IA e investimento. No ano passado, instituições estadunidenses geraram 40 modelos relevantes de IA contra 15 da China e apenas 13 da Europa. A Europa, como bloco econômico e político, ainda está perseguindo os Estados Unidos e a China nesta corrida.

Investimento global em IA

Em relação aos investimentos globais em IA, estamos observando uma distribuição desigual. Conforme dados da Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2023 o capital de risco global focado em IA ultrapassou 19 bilhões de dólares, liderado pelos Estados Unidos e pela China. No mesmo ano, o continente africano recebeu apenas cerca de 3 bilhões em investimentos em IA. Em 2025, recebeu menos de 1,5% do total global, apesar desta região abrigar cerca de 17% da população mundial.

Outra questão é a projeção dos impactos regionais. Conforme estudos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) focados na América Latina e Caribe, a IA deve contribuir com menos de 5% do PIB regional até 2030, o equivalente a cerca de menos de um trilhão de dólares. Isso representa um valor significativamente potencial na economia, mas esse potencial ainda está bem abaixo dos 15% esperados na América do Norte.

Nesse quesito, o Latam-GPT, uma tecnologia ainda em fase de desenvolvimento – que é uma iniciativa colaborativa muito ambiciosa que une 20 países da nossa região, apoiada por infraestrutura de supercomputação, estimada em 10 milhões de dólares – está tentando combater a dependência tecnológica ao projetar programas e projetos de diversidade cultural, de línguas indígenas e de contextos regionais.

Nesse cenário de perspectiva comparada entre o Norte e o Sul Global, o governo brasileiro propôs um plano de investimento em IA no valor de 23 bilhões de reais, entre 2004 e 2028, com foco em autonomia tecnológica, infraestrutura, inovação e formação. É uma proposta bastante interessante, sobretudo por esses novos quadros de desafios, que estão reconfigurando o cenário da geopolítica mundial. Frequentemente, o Brasil encara dificuldades em transformar a retórica governamental em política de Estado. Geralmente, há descontinuidades, fragmentações institucionais e limitações na consolidação de uma estratégia nacional de longo prazo.

IHU – Como a concentração de IA em poucos países e corporações se conecta com a questão do colonialismo?

Mardochée Ogécime – Trata-se de um colonialismo que opera no terreno digital. O conceito de colonialidade de poder, formulado por Aníbal Quijano, nos ajuda a compreender esse processo. A colonialidade não desapareceu com o fim do colonialismo formal. Ela está sendo reconfigurada em novas formas de dominação que organizam o trabalho, o próprio saber, a autoridade no mundo contemporâneo.

Vivemos uma atualização dessa matriz colonial aplicada ao universo das tecnologias digitais. A ideia central é que, assim como no período colonial os territórios eram ocupados e os recursos naturais eram extraídos, hoje assistimos também à extração sistemática de dados pessoais e coletivos por parte de grandes plataformas, que tratam nossas interações digitais como uma matéria-prima inesgotável.

Essa extração não é neutra; ela concentra poder em poucos centros e relega várias regiões do planeta a uma posição periférica. Um exemplo são as grandes corporações do Norte Global que utilizam dados produzidos no Sul Global para treinar seus modelos de IA, sem necessariamente garantir retorno social e econômico às comunidades locais. Trabalhadores quenianos e venezuelanos têm sido empregados em condições precárias para rotular dados e filtrar conteúdos, sustentando visivelmente a operação dessas plataformas.

Além da extração de dados, há uma dependência infraestrutural. A maioria dos países latino-americanos e africanos não possui supercomputadores, GPUs ou fábricas de semicondutores capazes de competir no mercado global. Outra questão é a própria cadeia de fornecimento de IA, que reforça esse quadro. Enquanto os recursos minerais essenciais, como lítio, cobalto e terras raras estão concentrados nos países do Sul Global, a exploração desses recursos é controlada por corporações estrangeiras, que reproduzem velhas lógicas extrativistas com novas roupagens tecnológicas.

Colonialismo digital e desigualdades estruturais

Esse quadro nos mostra que o colonialismo digital não é uma metáfora; ele se materializa em desigualdades estruturais de acesso, em regime de dependência tecnológica e em formas de exploração do trabalho e dos recursos naturais. Enquanto alguns poucos países e empresas concentram poder computacional e publicidades intelectuais, grande parte do mundo permanece como fornecedor de insumos, sejam eles dados minerais, sejam eles trabalhos baratos.

IHU – Seria o caso de pensar o desenvolvimento da IA a partir do Sul Global?

Mardochée Ogécime – Pensar a IA a partir do Sul Global exige reconhecer que estamos diante de uma nova etapa de dependência que combina os legados do colonialismo histórico com as dinâmicas do colonialismo digital contemporâneo. Reconhecer isso é fundamental para abrirmos espaços alternativos que não apenas produzam assimetrias, mas também busquem formas de soberania tecnológica e de resistência colonial.

As novas práticas tecnológicas exemplificam a precarização e a invisibilidade do trabalho que sustenta a IA Global. Em países como Paquistão e Quênia, adolescentes contornam restrições de idade para operar em plataformas, realizando tarefas de moderação e anotação de dados. Com frequência, eles são expostos a conteúdos explícitos, têm remunerações muito baixas e trabalham em condições precárias.

A precariedade nos países do Sul Global é uma categoria de análise. Estudos recentes revelam que a precariedade foi um traço estruturado do trabalho digital no Sul Global. Trabalhadores na Argentina, Brasil e Venezuela permanecem submetidos à condição de trabalhos informais, estáveis e mal remunerados, seja qual for o nível de formação educacional. Essa dinâmica reforça não apenas a vulnerabilidade socioeconômica, mas também a dependência tecnológica elaborada em relação ao Norte Global, onde se concentram as plataformas e as cadeias de comando que estruturam a economia da IA.

Colonialização persistente

As cadeias globais de trabalho indicam uma colonialização persistente. Além disso, observam-se desigualdades estruturais na produção de IA. Pesquisas que comparam dados entre Venezuela, Brasil, Madagascar e França revelam que trabalhadores do Sul Global continuam vivendo em subcondições e com pouca influência sobre o próprio processo.

Estudos mostram ainda que a República Democrática do Congo é responsável por mais de 70% do fornecimento global de cobalto, mineral essencial para a fabricação de baterias modernas. Entretanto, o setor é marcado por graves denúncias de exploração, incluindo trabalho infantil, o que tem levado a ações judiciais contra grandes corporações, como Apple, Tesla, Microsoft, por violações de direitos humanos.

IHU – Como o capitalismo se reconfigura a partir da IA?

Mardochée Ogécime – Quando olhamos um pouco mais de perto para o modo como a IA se integra ao sistema econômico, percebemos que ela não apenas amplia a produtividade ou gera inovações, mas também reorganiza profundamente as formas de exploração capitalista. Essa reorganização se manifesta em três dimensões: no trabalho invisível, na precarização laboral e na plataformização da vida.

A dimensão do trabalho invisível sustenta a IA. Por trás das interfaces inteligentes, que parecem autônomas, existem milhares de pessoas em condição precárias de trabalho, que rotulam dados, moderam conteúdos, validam respostas de algoritmos. Esse cenário revela uma cadeia global de exploração que sustenta a potência tecnológica.

A dimensão da precarização laboral é a própria questão da precarização e fragmentação do trabalho. A inteligência artificial acelera a lógica da plataformização da vida. Basta ver o trabalho dos motoristas de aplicativos, os serviços educacionais, de entregadores, de trabalhadores com microtarefas. Todos vivem sob a gestão algorítmica que distribui trabalhos numa lógica quantitativa, calculam remunerações e avaliam, de forma quantitativa, desempenhos em tempo real. É um tipo de gestão “sem gestores”, em que os trabalhadores não negociam com pessoas, mas com sistemas automáticos, muitas vezes opacos, desprovidos de transparência. Isso significa que milhões de pessoas estão sendo submetidas a formas de controle digital, o que eu chamaria de controle algorítmico. É um tipo de controle que retira a autonomia, reduz direitos trabalhistas e amplia a insegurança cotidiana.

Por sua vez, a dimensão da plataformização da vida social mostra que a própria IA não opera apenas em setores de trabalho, mas se expande para os setores de saúde, educação, crédito, segurança pública e comunicação. O algoritmo cada vez mais decide o que recebemos. O resultado é uma intensificação do controle social algorítmico, que, para além de reforçar desigualdades preexistentes, consolida as plataformas como mediadoras quase inevitáveis de novas experiências.

IA como amplificador das contradições do capitalismo

Em vez de uma promessa emancipatória, a IA tem funcionado como um amplificador das contradições do capitalismo. Percebemos que, embora haja um da produtividade, isso ocorre à custa da intensificação das desigualdades. Ao mesmo tempo que se criam novos mercados, destroem-se formas de trabalho estáveis. De um lado, a IA oferece conveniência, mas também normaliza a vigilância e o controle. Portanto, a questão que posta aqui não é apenas uma questão técnica, mas uma questão política: quem ganha e quem perde na organização estrutural que a IA promove?

IHU – Que futuro vislumbra a partir desse cenário que descreve?

Mardochée Ogécime – É importante refletirmos sobre o horizonte que se desenha, de distopia capitalista associada à IA. Diferentemente das ficções científicas clássicas, essa distopia não aparece de forma abrupta ou espetacular, mas como uma distopia suave que se instala gradualmente no nosso cotidiano.

Em primeiro lugar, temos a questão da vigilância em massa: sistema de reconhecimento facial, câmeras inteligentes, software de análise de comportamento, amplamente utilizados por governos e empresas. Na China, milhões de câmeras estão integradas a sistemas de crédito social que avaliam os cidadãos a partir dos seus comportamentos. Nos Estados Unidos e na Europa existem tecnologias semelhantes, que atuam no policiamento e no controle de fronteiras físicas. No Brasil, cidades como Rio de Janeiro e São Paulo já testaram o sistema de monitoramento facial em eventos públicos. Tudo isso leva a preocupações sobre racismo algorítmico e abuso de autoridade.

Em segundo lugar, há um risco de desemprego estrutural. Relatórios estimam que 300 bilhões de postos de trabalho no mundo todo podem ser impactados pela automação impulsionada pela IA. Isto significa não apenas uma substituição de tarefas manuais, mas também de atividades intelectuais e criativas.

Em terceiro lugar, há uma erosão da democracia. Plataformas digitais operadas por algoritmos, sobretudo algoritmos de recomendação, privilegiam conteúdos que geram engajamentos, mesmo que sejam permeados de desinformações, discurso de ódio e manipulação política. A experiência das eleições no Brasil, nos Estados Unidos e na Índia mostra como a IA pode ser usada para amplificar fake news, pluralizar sociedade e fragilizar processos democráticos. A essas categorias se somam o próprio fenômeno do racismo algorítmico.

Diversos estudos mostraram que o sistema de reconhecimento facial comete mais erros com rostos negros e femininos, reforçando desigualdades históricas. Da mesma forma, algoritmos de recrutamento já foram flagrados, no caso da LinkedIn, privilegiando currículos masculinos em detrimento de femininos. Ou seja, as assimetrias sociais não apenas persistem, mas são reproduzidas e naturalizadas pelas tecnologias. Distopias capitalistas associadas à IA já estão em curso; não se trata de um futuro distante, mas de uma realidade presente na nossa vida, que se expande silenciosamente.

O desafio que se coloca aqui é como resistir a essa naturalização e como abrir espaços para alternativas decoloniais e emancipatórias.

IHU – Em que outras esferas da vida a IA tem sido utilizada de modo a gerar preocupações?

Mardochée Ogécime – Estudos de 2020 feitos pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) mostram que um único treinamento de um grande modelo de linguagem, como o GPT-3, pode emitir mais de 550 toneladas de gás carbônico, o equivalente a 125 carros em uso por ano. O mesmo estudo relata que o treinamento do modelo GPT-3 teria consumido cerca de 700 mil litros de água para resfriamento de seus data centers, quantidade suficiente para produzir 370 carros elétricos e 320 iPhones. Esses números revelam uma pegada ecológica da IA e conectam-na a uma discussão de crises ambientais e disputas por recursos hídricos e energéticos.

Outra questão é a da concentração corporativa. As cinco principais empresas da IA (Google, Microsoft, Meta, Apple e Amazon) controlam mais de 75% do mercado global de computação em nuvem, que é essencial para a IA. Há investimentos massivos nessa área. Em 2023, a Microsoft investiu 13 bilhões na OpenAI, enquanto a Amazon prometeu 4 bilhões em investimento. Isto tudo reforça a leitura do tecnofeudalismo: poucas corporações capturam valor global.

Mercado militar de IA

Há também a questão dos gastos militares de segurança. O mercado de IA militar tende a ultrapassar o investimento de 13 bilhões de dólares em IA até 2030, com os Estados Unidos e a China liderando o investimento em armas autônomas, de vigilância e ciberdefesa, como vimos recentemente no desfile militar chinês, com ostentação das armas autônomas, que já são uma realidade.

Em 2022, o Pentágono lançou o Joint Artificial Intelligence Center (JAIC), com orçamento inicial de 1,3 bilhão de dólares para integrar a IA em operações militares. Esses dados reforçam como a IA não é apenas uma tecnologia econômica, mas um ativo geopolítico de poder.

Outra questão presente no debate sobre IA é a da regulação e governança. Há uma intensificação do lado da União Europeia, sobretudo no investimento da IA Act [Lei de Inteligência Artificial] desde 2024. É a primeira grande legislação sobre IA que está exigindo regras rígidas para uso de alto risco. Vemos também um movimento do lado da China, que já regula algoritmos desde 2020, exigindo que sejam registrados em órgãos estatais e sigam diretrizes de valores socialistas. No Brasil, teve a aprovação, em 2023, do PL 21/2020, do Marco Legal da IA na Câmara. Mas isso ainda está em debate no Senado, com fortes influências de setores empresariais.

O avanço da IA tem se consolidado sob um regime que combina tecnofeudalismo, como uma estrutura de concentração e controle, e colonialismo digital, como uma lógica de extração e dependência. Superar esses modelos exige a construção de caminhos voltados à soberania digital, à valorização do trabalho humano, à diversidade epistêmica e à própria questão da regulação orientada por direitos. Essa construção talvez permita abrir espaços para usos mais justos, plurais e emancipatória da tecnologia.

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