O fosso social na China tecnológica. 'A inteligência artificial não é, de fato, artificial e nem mesmo inteligente'. Entrevista especial com Jack Qiu

A essência do capitalismo digital com características chinesas depende da supressão do ativismo trabalhista, tem sido apoiado via políticas de Estado, e investe pesadamente em inteligência artificial, diz o pesquisador

Foto: IC Caixiin Global

Por: Edição: Patricia Fachin | Tradução: Isaque G. Correa | 26 Abril 2021

 

As pesquisas do professor da Escola de Jornalismo e Comunicação da Universidade Chinesa de Hong Kong, Jack Qiu, concentram-se no estudo do capitalismo digital na China e seus efeitos na vida dos sujeitos emergentes da sociedade em rede – altamente conectada –, que vivem "no meio do fosso digital", assim como ocorre em outros países do Sul global. "Estes são os trabalhadores migrantes, os membros de minorias étnicas, moradores rurais, que hoje estão nas fábricas, indústrias ou nas empresas de inteligência artificial", resumiu em sua conferência intitulada "Inteligência artificial e capitalismo digital na China pré e pós-pandemia de Covid-19", ministrada no XIX Simpósio Internacional IHU Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida em tempos de pandemia, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Na conferência, Qiu analisou a situação da classe trabalhadora digital no país em contraposição à classe burocrática, formada pelos membros do Partido Comunista e também dos "magnatas da internet". Enquanto "os mais ricos da China são do setor de Tecnologia da Informação e Comunicação - TIC" e "o capitalismo digital é a parte mais avançada e poderosa de formação de capital doméstico dentro do país", alguns trabalhadores são vigiados em suas jornadas de 10 a 12 horas para treinar algoritmos e viram seus salários serem reduzidos nos últimos anos. Uma parcela da classe trabalhadora, informa, atualmente recebe em média "130 dólares mensais", o equivalente a pouco mais de 730 reais.

 

Segundo ele, apesar de o desenvolvimento tecnológico chinês ser surpreendente e estar presente em diversos setores da economia, o país tem enfrentado uma crise no sistema de saúde não só porque faltam investimentos públicos na área e os trabalhadores têm cada vez mais dificuldade de pagar pelos serviços de saúde, mas porque há um déficit de confiança na população devido ao aumento da repressão e da vigilância do Estado. "Ao longo dos anos, entre 2005 e 2009, se olharmos o investimento em saúde pública na China, veremos que diminuiu. Um indicador disso são, por exemplo, os recursos humanos. Para cada 10 mil cidadãos na China, existe só 1,5 médico para manter a segurança na saúde pública, para prevenir doenças transmissíveis. (...) Cada vez mais os chineses precisam pagar por assistência médica. Não só o número de médicos na saúde pública está diminuindo, mas os chineses estão precisando pagar mais pela assistência. O cuidado com a saúde está ficando cada vez mais difícil para o trabalhador médio chinês. (...) Ultimamente, vemos um déficit enorme em termos de confiança. Na China, o trabalhador médio não confia nos médicos, nos hospitais privados, e nem nos hospitais públicos", relata.

 

De acordo com ele, o resultado do capitalismo digital com características chinesas é uma "ecologia social altamente problemática", que se tornou ainda mais evidente quando a Covid-19 atingiu o país no fim de 2019. "O que vimos, e sei que alguns colegas discordarão, é que no primeiro caso de Covid-19 relatado em dezembro de 2019 na minha cidade natal, Wuhan – eu cresci em Wuhan e ainda tenho amigos e familiares ali –, houve uma grande falha (...), apesar de todas as notas comemorativas sobre o capitalismo digital chinês, de quanto dinheiro foi feito, quantos magnatas surgiram com o capitalismo digital chinês. Tem havido um fracasso nas funções básicas do governo, de garantir saúde e evitar crises no setor de saúde pública, como no caso da Covid-19. Não aprenderam com a SARS, no final da crise", reiterou.

 

A seguir, publicamos a conferência de Jack Qiu na íntegra, no formato de entrevista. Ela foi comentada por Rafael A. F. Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. O comentário, publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, está disponível aqui.

 

Jack Qiu durante conferência para o IHU

Jack Linchuan Qiu é professor da Escola de Jornalismo e Comunicação da Universidade Chinesa de Hong Kong, onde atua como diretor do C-Center (Centro de Pesquisa em Mídia Chinesa e Comunicação Comparada). Suas publicações incluem Goodbye iSlave (U of Illinois Press, 2016), World Factory in the Information Era (Guangxi Normal University Press, 2013), New Media Events Research (Renmin U Press, 2011), Working-Class Network Society (MIT Press, 2009), Mobile Communication and Society (coautoria, MIT Press, 2006), algumas das quais foram traduzidas para alemão, francês, espanhol, português e coreano. Também trabalha com ONGs de base e fornece serviços de consultoria para organizações internacionais.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa sobre capitalismo digital e inteligência artificial pré e pós-pandemia de Covid-19?

Jack Qiu - A minha exposição é sobre o capitalismo digital e a inteligência artificial pré e pós-pandemia de Covid-19. Farei uma introdução teórica e global: a primeira parte é mais teórica, e a segunda parte fala do capitalismo digital chinês antes da pandemia, isto é, até dezembro de 2019. Essas ideias fazem parte do meu trabalho original, outras são leituras que faço do trabalho de outros colegas. Depois, falarei do capitalismo digital chinês durante a pandemia e, no final, apresento-o no período pós-pandemia. As últimas partes estão menos desenvolvidas porque elas ainda estão em andamento e por causa de minhas próprias limitações. Há pouco me mudei, com a minha família, de Hong Kong para Singapura, e não tive tempo suficiente para fazer uma pesquisa apropriada.

Portanto, aqui estão as minhas observações e o meu pensamento sobre o que pode estar acontecendo no pós-pandemia. A pandemia ainda ocorre em grande parte do mundo, embora na China continental – onde eu cresci – alguns consideram que a pandemia já acabou.

 

 

Fosso digital

O enquadramento teórico [da minha abordagem] advém do meu trabalho anterior. Eu cresci na China, depois fiz pós-graduação na Califórnia e, em seguida, por 16 anos ensinei e trabalhei em Hong Kong. Mas a maior parte do meu foco é a China continental e me baseio no livro que publiquei em 2009, pela MIT Press, intitulado Working-Class Network Society: Communication Technology and the Information Have-Less in Urban China.

Basicamente, a ideia de “information have-less”, presente no título, diz que na China, bem como no Sul global, temos pessoas na zona intermediária entre os ricos de informações e os pobres de informações, no meio do fosso digital. No contexto chinês, e talvez no brasileiro, estes são os trabalhadores migrantes, os membros de minorias étnicas, moradores rurais, que hoje estão nas fábricas, indústrias ou nas empresas de inteligência artificial, sobre o que irei falar. Precisamos entender essas pessoas como parte de uma emergente sociedade em rede. Essa frase é do sociólogo Manuel Castells, que escreveu a trilogia The Rise of the Network Society entre 1996 e 1998. Ele diz que uma sociedade em rede consiste de estados em rede, por exemplo, a União Europeia, e de empreendimentos em rede, por exemplo, as corporações transnacionais, o capitalismo.

Quando escrevi o livro em 2009, basicamente eu disse que, além de estados em rede e do empreendimento em rede, pode existir – e já existe – um terceiro pilar emergente de sociedade em rede na China e também mundialmente, que se chama trabalho em rede. Portanto, o grupo intermediário dos que têm menos informações [“information have-less”] constitui uma classe trabalhadora digital em si. São pessoas que têm empregos de classe trabalhadora, possuem celulares de baixo custo e usam lan-houses (internet café) para se conectar on-line. Formam uma classe em si.

 

Trabalho em rede

O trabalho em rede é um estágio mais elevado. Usando uma ideia marxiana, o trabalho em rede são as pessoas da classe trabalhadora que têm consciência de classe e que possuem uma organização social e política separada dos estados em rede e dos empreendimentos em rede. Ao mesmo tempo, possuem uma identidade distintiva. Eles se veem como uma categoria separada, social, cultural e politicamente. Portanto, o trabalho em rede é uma classe trabalhadora digital em si e com consciência política, e a classe daqueles com menos informações é o estágio inicial, o movimento do trabalho em rede.

 

 

Capitalismo digital na China e os magnatas da internet

O contexto chinês é também distinto, porque o país ainda se proclama, na Constituição da República Popular da China, um país socialista. Mas, em minha análise, e creio que a maioria das pessoas fora da China irá concordar, a China não é socialista ou trabalhista. A classe trabalhadora, mesmo no papel, deveria ser a classe governante. Mas a China é governada por uma classe burocrática. É mais um estado autoritário do que um socialismo real, segundo as definições internacionais do termo.

Na verdade, a ideia de os burocratas serem uma classe distinta veio do presidente Mao [Tsé-Tung]. Logo, a natureza estatista da República Popular da China também trabalhou estreitamente com o capital internacional. Assim, a China é um estado-capital-nação, e muitos desses capitalistas estão dentro da China.

Hoje, a China tem muitos magnatas da internet, por exemplo. Se buscarmos pelo homem mais rico da China desde 2003, ele é um magnata da internet. Desde 2003, os mais ricos da China são do setor de Tecnologia da Informação e Comunicação - TIC. O capitalismo digital é a parte mais avançada e poderosa de formação de capital doméstico dentro da China. Só uma minoria dos mais ricos da China não faz dinheiro na área das TICs. Mas todos têm alguma participação, mesmo que pequena, na área de tecnologia da informação. O negócio menos importante deles também tem relações com a internet.

Também igualmente importante é que a formação de capital chinês depende do mundo externo. Inicialmente, o país dependia do capital americano ou, em menor extensão, do capital japonês. Mas, nos últimos anos, especialmente com a ascensão da inteligência artificial, há mais explicitamente um capital doméstico.

Portanto, para entender a formação da sociedade em rede da classe trabalhadora e também a ascensão do trabalho em rede, na China, precisamos considerar o tema na sua relação com os estados e que esta relação pode ser positiva, com os estados fomentando um certo tipo de formação de classe entre os que têm menos informações. Mas, nos últimos anos, especialmente na era da inteligência artificial, o Estado chinês tem sido mais repressivo, sobre o que irei falar adiante. Os papéis desempenhados pelo governo, de suprimir e de apoiar, bem como o capital são fatores cruciais à formação da classe trabalhadora entre os que têm menos informações [information have-less].

E, finalmente, o meu debate teórico relativo à sociedade em rede da classe trabalhadora fala da ideia de inovação que vem a partir de ameaças existenciais. Aqui vemos que os processos de trabalho em rede diferem do empreendimento em rede, ou do estado em rede. Tanto os governos quanto as autoridades e as corporações têm muita inovação porque têm muito dinheiro e poder. Mas, no caso da formação do trabalho em rede, a inovação acontece porque as pessoas enfrentam ameaças existenciais. É por isso que falei antes que a repressão estatal contra a formação da classe trabalhadora pode ser uma inter-relação negativa entre estado e força de trabalho. Mas, no fim, ela pode desencadear mais inovação porque também cria ameaças existenciais à inovação revolucionária entre os que têm menos informações para a formação do trabalho em rede. E isso assumiu a forma não só de luta econômica inovadora, mas de formações sociais, culturais, políticas e tecnológicas.

 

 

IHU On-Line – Pode dar um exemplo?

Jack Qiu - Um dos meus exemplos favoritos é de 2009. Chamo de a primeira guerra cibernética, feita por fabricantes de calçados da província de Fujian. Aconteceu quando a fabricante, chamada 360 Degrees, viraria empresa de capital aberto na Bolsa de Valores de Nova York. Pouco antes da oferta pública inicial, a fábrica de calçados foi rebaixada. Esse rebaixamento é comum para mostrar maior lucratividade aos investidores. Mas esse processo de rebaixamento desencadeou uma greve em larga escala na empresa.

A fabricante de calçados trabalhou com o governo local, numa aliança típica entre estado e capital para reprimir. Houve uma repressão sangrenta contra os trabalhadores que tentaram proteger os seus direitos diante da oferta pública inicial. O governo tentou censurar as imagens sangrentas da repressão relacionadas à greve. O que aconteceu depois foi que os trabalhadores agiram juntamente com hackers. Lembremos que 2009 foi o ano da crise financeira global. Provavelmente alguns programadores, membros da classe trabalhadora, perderam o emprego e simpatizaram com os trabalhadores calçadistas. Então, eles focaram na otimização dos mecanismos de busca... Sempre que um investidor pesquisasse no Google sobre a nova oferta pública inicial da China, a 360 Degrees, encontraria fotos da repressão sangrenta e não materiais de propaganda ou documentos.

A meu ver, vimos em 2009 uma aliança entre trabalhadores do setor manufatureiro, tradicionalmente trabalhadores de colarinho azul, e hackers, pessoas que sabem jogar com os algoritmos do Google. Trabalharam unidos e pegaram os capitalistas de surpresa. Por isso que chamo de a primeira guerra cibernética.

 

Guerra cibernética e ameaças existenciais

Esse é um exemplo típico de ameaças existenciais criadas pelos desenvolvimentos capitalistas, nesse caso, a oferta pública inicial na Bolsa de Nova York, com a ajuda de um estado local autoritário. Mas essas ameaças existenciais contribuíram positivamente para a formação de solidariedade entre a classe trabalhadora tradicional e a classe trabalhadora informacional, numa formação de capital digital. No contexto chinês, portanto, não há nenhuma novidade quanto aos modos inovadores de resistência ao capitalismo digital, inclusive no uso de inteligência artificial, via algoritmo, como se registrou desde 2009, segundo a minha pesquisa. Isso tudo faz parte dos movimentos históricos mais amplos no sentido de uma sociedade da classe trabalhadora em rede, fortalecendo o terceiro pilar do trabalho em rede.

 

 

Norte global x Sul global

Em contexto mais recente, eu falo da China como país estatista, um estado autoritário, e da classe burocrática como a força dominante. E há uma grande diferença entre o Norte global pós-industrial e as demais partes do Sul global. Penso que a Índia e partes do Brasil se assemelham à China, onde ainda estão se industrializando. Mas existe uma outra parte do Sul global que ainda é agrária, está num estágio pré-industrialização. As regiões urbanas chinesas estão rapidamente se industrializando, incluindo o desenvolvimento do capitalismo digital no país. A China está no processo de usar manufatura inteligente (smart). Essas coisas diferem de outras partes do Sul global, mas também do Norte global pós-industrial, que empresta uma importância particular à manufatura e aos processos de trabalho intensivo da classe trabalhadora.

Na China, esse processo industrializante é um estado desenvolvimentista. Basicamente, temos aqui a formatação do estado-capital-nação japonês e que agora é replicado na China em maior escala. Esse processo lidera alguns dos desenvolvimentos de ponta do capitalismo digital, incluindo a inteligência artificial.

 

Tecnologia 5G e economia gig

Assim, na China temos a Huawei, uma das grandes empresas de tecnologia que tem uma das câmeras de smartphones mais poderosas, com inteligência artificial integrada. A Huawei também reivindica ser a líder em tecnologia 5G, um dos motivos pelos quais [Mike] Pompeo e os EUA visaram a China, por causa da capacidade de 5G da empresa Huawei.

A China foi o primeiro país, em nível nacional, a endossar a economia gig, especialmente os serviços de carona remunerada (ride-hailing). Aqui falamos basicamente da plataforma Uber e da sua equivalente na China, a empresa DiDi. Isso aconteceu em 2006. A China foi o primeiro país a endossar os serviços de carona remunerada no capitalismo de plataforma corporativa para o transporte urbano.

Outra coisa importante a mencionar é a biomedicina, pois estamos numa época de pandemia. Em grande parte, a biomedicina chinesa conta com a formação de capital doméstico, mas também conta com fusões internacionais especialmente no caso do sequenciamento de DNA, o que é essencial aos procedimentos médicos de identificação do coronavírus, por exemplo, e à testagem – e mesmo no desenvolvimento – da vacina. A China tem a maior empresa de sequenciamento de DNA do mundo, por exemplo. Esse é o histórico dos desenvolvimentos do capitalismo digital liderado pelo Estado chinês e que resulta em algumas das empresas de capitalismo digital mais influentes que já vimos.

 

 

Trabalho intensivo

Um outro ponto importante que já mencionei é que o desenvolvimento do trabalho intensivo continua central ao longo do capitalismo digital chinês, não só na linha de montagem como também na mineração de dados, e mesmo no sequenciamento de DNA. A empresa alega usar a automação – padrões de combinação auxiliados por computação. Na verdade, esse sequenciamento requer muita participação humana.

Portanto, diferentemente do Vale do Silício ou de corporações multinacionais sediadas no Norte global, na China vemos um amplo espectro de trabalho intensivo e de capital intensivo. São duas abordagens diferentes, mas, no contexto chinês, não importa se é Huawei ou a economia gig ou biomedicina. Há muitas sobreposições aqui. Uma empresa pode ser de capital intensivo e de trabalho intensivo. Assim, enquanto no Norte global praticamente não há sobreposições e a diferença entre elas é como dia e noite, no contexto chinês capital intensivo e trabalho intensivo são, frequentemente, uma e mesma coisa.

Kai-Fu Lee, um dos grandes capitalistas aventureiros, mas também um defensor da inteligência artificial chinesa, escreveu um livro chamado AI Superpowers, comparando o setor de inteligência artificial da China com o setor nos EUA. Ele chamou as empresas chinesas de pesos-pesados. Essencialmente, ele quis dizer... trabalho intensivo.

Como quando a DiDi – equivalente chinês da empresa Uber – se popularizou, ela contratou milhares de pessoas para distribuir materiais promocionais, panfletos, a taxistas e àqueles que aguardavam em filas para pegar o táxi. Foi um trabalho altamente intensivo, distribuindo materiais promocionais a taxistas e passageiros ao mesmo tempo. É isso que Kai-Fu Lee chama de abordagem peso-pesado, em referência à inteligência artificial. Eu chamo de trabalho intensivo. Kai-Fu Lee argumenta que essa é uma vantagem para o modelo chinês de inteligência artificial, porque a abordagem peso-pesado – eu chamaria de abordagem do trabalho intensivo à inteligência artificial – gera mais dados. Foi sobre isso que ele escreveu. Aliás, o autor é um cientista formado na área de dados, ex-CEO da Google China antes de a empresa decidir sair da China continental.

 

IHU On-Line – Como você entende o capitalismo digital de hoje na China?

Jack Qiu - Há um termo chamado “neoliberalismo com características chinesas”, cunhado pelo estudioso chinês Wang Hui, mas David Harvey pegou-lhe emprestado e o popularizou nos países de língua inglesa. Então, pego emprestado de David Harvey e de Wang Hui para falar de um “capitalismo digital com características chinesas”. Trata-se de um jogo de palavras com o lema do Partido Comunista da China, que diz que faz um “socialismo com características chinesas”. Portanto, tudo pode ter características chinesas, incluindo o capitalismo digital.

 

Capitalismo digital com características chinesas – supressão do ativismo trabalhista

Se eu pudesse resumir, diria que a essência do capitalismo digital com características chinesas possui três pontos.

O primeiro é que este capitalismo digital depende da supressão do ativismo trabalhista, especialmente a independência das ONGs. Em meu livro de 2009, menciono várias ONGs trabalhistas independentes. Mas, se quiserem saber mais, poderão ler meu outro livro intitulado Goodbye iSlave: A Manifesto for Digital Abolition, pela editora da Universidade de Illinois, em 2016. Em Goodbye iSlave, falo mais sobre o ativismo na área do trabalho dentro da China continental, mas também em Hong Kong e em Taiwan, e estas organizações atuam juntas com uma rede global de ativistas, sindicatos trabalhistas, por exemplo.

Porém, o que vemos, desde 2015, é uma repressão cada vez maior. Antes de 2015, muito embora o governo chinês nunca tenha gostado de ativistas trabalhistas independentes, ele não costumava prender. São organizações da sociedade civil. Algumas dessas ONGs são também feministas, outras trabalham na área ambiental ou com minorias étnicas. Mas, agora, todas estão sujeitas à detenção, às vezes por períodos de longo prazo, um tratamento desumano, que a própria ONU, os direitos humanos, condenaria por causa do encarceramento de ativistas trabalhistas dentro da China.

Ao mesmo tempo, Pequim institucionalizou regulamentos mais draconianos contra a conexão transfronteiriça entre ativistas de Hong Kong e ativistas da China continental, ou entre ativistas continentais e do exterior. Aqui temos, portanto, um outro importante gargalo, dificultando o ativismo trabalhista dentro da China, somando-se às ameaças existenciais aos ativistas trabalhistas, os quais são essenciais à formação do trabalho em rede.

Esta situação tem dificultado a vida dessas pessoas, tanto no caso da lei e da ordem no país quanto com respeito às conexões transfronteiriças, informacionais e monetárias. Algumas daquelas organizações concorriam a financiamentos externos de Hong Kong, por exemplo, mas hoje não podem mais.

Essa exacerbação das ameaças existenciais contra ativistas trabalhistas na China pode ser um outro gatilho para uma formação de classe mais fundamental e criativa. É uma das minhas teses, quando falo de onde vem a inovação: das ameaças existenciais.

 

 

Capitalismo digital com características chinesas – apoio ao capitalismo digital via políticas de Estado

Uma segunda parte do capitalismo digital com características chinesas é que o governo chinês tem feito de tudo para apoiar o capitalismo digital via políticas de Estado. Por exemplo, em Guizhou existem muitos programas para a computação em nuvem. Guizhou é a província chinesa com o mais alto nível de pobreza. Portanto, a computação em nuvem tem sido usada como uma forma de aumentar o crescimento econômico numa das províncias mais pobres do país.

O governo chinês vem promovendo a internet+, palavra-código para empreendedorismo digital. Trabalhadores desempregados ou estudantes universitários, que não conseguem encontrar emprego, agora podem iniciar o próprio negócio. É a economia de compartilhamento. Por exemplo, já mencionei a DiDi, equivalente do Uber na China. Ela recebeu ajuda em nível nacional. Foi o primeiro apoio em nível nacional, com a legalização de uma economia de compartilhamento de serviços de carona remunerada. A China liderou essa tendência do capitalismo digital liberal.

 

Capitalismo digital com características chinesas – inteligência artificial

Finalmente, temos a inteligência artificial. Através das universidades, do Ministério da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia, o governo chinês vem colocando bilhões de dólares no desenvolvimento de inteligência artificial. O livro de Kai-Fu Lee, AI Superpowers, que compara os setores da int eligência artificial de chineses e americanos, enfoca somente o setor privado. Aqui, o que eu enfatizo é que grande parte deste setor se beneficia de investimentos públicos feitos pelo governo chinês, que decide onde quer investir. Hoje, colocam bilhões de dólares em inteligência artificial, o que significa menos dinheiro no setor público, deixando de investir em formas mais eficazes para o alívio da pobreza. Isso também acontece na saúde pública.

 

 

IHU On-Line – Qual é a situação da saúde pública no país?

Jack Qiu - Na China, a infraestrutura de saúde pública vem caindo, muito embora o país tenha sofrido com a SARS. Hoje, chamamos de Covid-19. Na verdade, a estrutura de DNA da Covid-19 se assemelha à SARS. Trata-se de uma infecção transmitida pelo ar, uma síndrome respiratória aguda e severa, que atingiu a China em 2003 e se espalhou por vários países. Mas essa pandemia não foi tão severa fora da China quanto a Covid-19 está sendo agora.

Antes da SARS, a China já tinha embarcado nessa via do neoliberalismo com características chinesas com que diminuiria os investimentos em saúde pública. Logo após a SARS, em 2003, o governo aumentou os investimentos em saúde pública, incluindo o uso do e-governo [governo eletrônico] para o controle de doenças. Basicamente, o centro de controle e prevenção de doenças chinês recebeu mais de 20 investimentos do governo.

Depois, houve muitos novos projetos para construir um centro de informações melhor, porque a SARS saiu do controle em 2003. Em parte, porque o sistema de informações de saúde pública era muito lento e opaco. Para relatar um caso do nível mais baixo da China – a China tem o tamanho da Europa, com 1,3 bilhão de pessoas – e então fazê-lo chegar ao nível nacional, eram necessários vários dias e percorriam-se muitas camadas burocráticas.

Depois disso, creio que em 2004-2005, foi criado um novo sistema nacional, dentro dos projetos de e-governo, desencadeado pelo surto de SARS em 2003. O tempo para informar um novo caso de SARS ou semelhante, da base até o governo central em Pequim, foi encurtado para quatro horas. Supostamente, com a Covid-19 tendo iniciado no nível local, Pequim saberia da doença rapidamente. É este o sistema.

Porém, esse sistema não foi muito bem guardado. Não quero fingir que entendo tudo do sistema de informações de doenças na China. Desde dezembro de 2019, grande parte dele continua sendo uma caixa-preta, e não voltei ao país durante este período. Então, o que sei se baseia na leitura do noticiário. Mas pesquisei sobre o período posterior ao surto de SARS e os projetos de e-governo. Aprendi que, da base ao topo, os casos levariam quatro horas para serem informados.

 

 

Sistema de saúde chinês: 1,5 médico para cada 10 mil habitantes

A sensação que tenho é que este sistema não foi bem administrado depois de 2005, quando passou a funcionar em nível nacional. Ao longo dos anos, entre 2005 e 2009, se olharmos o investimento em saúde pública na China, veremos que diminuiu. Um indicador disso são, por exemplo, os recursos humanos. Para cada 10 mil cidadãos na China, existe só 1,5 médico para manter a segurança na saúde pública, para prevenir doenças transmissíveis. Apenas 1,5 médico para cada 10 mil. A equivalência numérica com os EUA é, creio eu, nove médicos. Na Rússia, este número chega a 13. Isso mostra que a China está muito abaixo.

Sim, a inteligência artificial na China compara-se à dos EUA. Às vezes, ela é superior. Em termos de dinheiro injetado, a China é mais poderosa do que a Rússia no nível de formatação do capitalismo digital. Mas quando se trata de saúde pública, a China fica aquém da Rússia e dos EUA. Em parte, porque é um novo sistema liberal e porque usaram os projetos pós-SARS, de e-governo e investimentos do setor público, para estimular o período posterior à bolha da internet – ou “bolha das empresas ponto com” – no capitalismo digital chinês.

 

Déficit de confiança

Em 2000, a bolha da internet atingiu os EUA tanto quanto a China. Os projetos de e-governo pós-SARS foram usados para salvar empresas privadas de forma muito parecida após a crise financeira global, com o resgate dos grandes bancos. Temos aqui um processo semelhante: o dinheiro público usado para resgatar e fomentar empresas de internet privadas. O financiamento público, em Pequim, foi usado para salvar o capitalismo digital.

Cada vez mais os chineses precisam pagar por assistência médica. Não só o número de médicos na saúde pública está diminuindo, mas os chineses estão precisando pagar mais pela assistência. O cuidado com a saúde está ficando cada vez mais difícil para o trabalhador médio chinês. Privatizaram a saúde. Houve um grande escândalo no Baidu há alguns anos – Baidu é o mecanismo de buscas da China. Houve um estudante universitário de classe trabalhadora que acabou usando informações erradas, tiradas do Baidu, para se tratar de câncer. Ele acabou morrendo por isso. Privatizaram hospitais. São instituições que enganam as pessoas. São golpistas, mas pagam muito dinheiro. Jogam com o Baidu, o algoritmo de buscas, para maximizar o lucro financeiro, enquanto fornecem tratamentos médicos de baixo padrão, às vezes fatais, o que desencadeou protestos entre muitos chineses.

 

 

Isso fez parte do processo de quando o capitalismo digital era usado para aplicar golpes financeiros a partir das necessidades existenciais da classe trabalhadora chinesa por saúde. Ultimamente, vemos um déficit enorme em termos de confiança. Na China, o trabalhador médio não confia nos médicos, nos hospitais privados, e nem nos hospitais públicos.

Esse é o contexto mais amplo de quando os trabalhadores tinham certo ceticismo em relação às autoridades de saúde pública e aos profissionais de saúde. O capitalismo digital com características chinesas significou uma ecologia social altamente problemática quando a Covid-19 atingiu o país no fim de 2019.

 

Falha na proteção e controle da Covid-19

O que vimos, e sei que alguns colegas discordarão, é que no primeiro caso de Covid-19 relatado em dezembro de 2019 na minha cidade natal, Wuhan – eu cresci em Wuhan e ainda tenho amigos e familiares ali –, houve uma grande falha. O governo falhou na proteção da vida e no controle da doença em Wuhan. Foi assim que a doença se disseminou para outras partes da província de Hubei, da China e do mundo, incluindo o Brasil.

Foi uma grande falha, apesar de todas as notas comemorativas sobre o capitalismo digital chinês, de quanto dinheiro foi feito, quantos magnatas surgiram com o capitalismo digital chinês. No entanto, tem havido um fracasso nas funções básicas do governo, de garantir saúde e evitar crises no setor de saúde pública, como no caso da Covid-19. Não aprenderam com a SARS, no final da crise. Uso os dados antigos de 2004 e 2003 quando falo a funcionários do governo e engenheiros que tentaram refazer o sistema de informação de saúde pública da China. O projeto não foi entregue durante o surto de Covid-19.

 

 

IHU On-Line – Que relações estabelece entre esse cenário e o capitalismo digital antes da pandemia?

Jack Qiu - Isso nos leva à parte seguinte – o capitalismo digital antes da pandemia. Creio que posso ir mais rápido, pois já cobri esse assunto. O mais importante que precisamos lembrar sobre o capitalismo digital pré-pandemia é... a China é a fábrica do mundo. No entanto, esse status de fábrica do mundo está em jogo, está sendo desafiado. Ficou desestabilizado. Por um lado, a economia das plataformas movidas pela inteligência artificial tem se tornado dominante. Isso acontece com a empresa DiDi, equivalente à empresa Uber, mas também outros tipos de empresas, como a Alibaba, equivalente chinesa da Amazon, e a Tencent, equivalente do Facebook. Em alguns setores, como o das mídias sociais, elas continuam se tornando cada vez mais dominantes.

 

A inteligência artificial não é, de fato, artificial e nem mesmo inteligente

A Tencent é mais dominante do que é o Facebook nos países ocidentais. Eles criaram feriados artificiais. Falo aqui no começo de novembro [de 2020]. Na internet chinesa, muitos estão se preparando para o Dia dos Solteiros, 11 de novembro. É o maior evento comercial eletrônico da internet na China, em que as vendas superam aquelas feitas na Black Friday, dos EUA.

Recentemente li o livro Blockchain Chicken Farm [de Xiaowei Wang]. Atualmente, os algoritmos estão sendo usados para rastrear ovos de galinha. De novo, isso acontece em Guizhou, a província mais pobre da China, escolhida para receber os investimentos em computação em nuvem.

Em Shanghai, cada galinha que nasce usa uma pulseira. Essa pulseira carrega um código QR, uma espécie de blockchain. Portanto, podemos ter uma individualidade. Rastrear cada galinha, logo depois de seu nascimento, acompanhando o trajeto percorrido desde ovo até ser entregue em sua casa. Podemos ter o trajeto inteiro. Podemos ver um mapa de como a galinha circulou pela fazenda, por exemplo. Pode parecer exótico, mas já está em vigor, por causa da desconfiança rampante dos consumidores chineses com a forma como as galinhas estão sendo criadas, se estão recebendo antibióticos, ou se estão sendo alimentadas com organismos geneticamente modificados e não orgânicos. Computadorizaram a solução para um problema maior que eu já descrevi... a falta de confiança, não só entre os profissionais de saúde, mas também em termos de processos na produção de alimentos.

Então, muito embora estas coisas soem extravagantes, faço questão de destacá-las. Temos aqui uma citabção de Kate Crawford, do AI Now Institute, que diz que a inteligência artificial não é, de fato, artificial e nem mesmo inteligente.

No contexto chinês, eu gostaria de destacar que a inteligência artificial da China não é fundamentalmente artificial porque se baseia nos corpos naturais de humanos – mesmo no processo com as galinhas, onde há os agricultores e entregadores, e também os que trabalham no rastreamento das galinhas, nesse caso.

Também o trabalho das “tags” está se tornando realmente grande. Acho que a primeira vez que ele apareceu na mídia chinesa foi três ou quatro anos atrás. Na região central da China, chamam de Pingdingshan, na província de Henan, onde fica a Foxconn. Foxconn é uma outra fábrica onde trabalhei. É a maior fabricante de eletrônicos do mundo, que produz aparelhos da Apple, como iPhones, por exemplo.

 

 

Mina de dados e escravidão digital

O trabalhador que fabricava iPhone deixou a linha de montagem física e foi para o interior, passando a realizar o trabalho das tags com uma renda praticamente igual. Isso ocorreu há três ou quatro anos. O tédio do trabalho e sua intensidade são comparáveis com o trabalho na linha de montagem digital das tags para o reconhecimento por imagem, reconhecimento facial... É o rosto de um ser humano? Ou o de um animal empalhado, um urso panda? Isso tudo significa tags humanas. Basicamente eles estão ensinando a aprendizagem de máquina (machine learning). Supervisionam, alimentam os algoritmos com dados. Portanto, parte da China está usando exatamente o mesmo: o modo de trabalho intensivo de produção, como na linha de montagem tradicional, física. A diferença é que, hoje, fazem este trabalho na mineração de dados.

E não é inteligente porque muito desse trabalho é um desperdício, impreciso. Segue um modo extrativo. Chamo de “mina de dados”, porque se compara à montanha Potosí [na Bolívia]: o trabalho análogo à condição de escravo, de extração de prata, é literalmente parecido, como o trabalho das tags. Está se tornando insustentável. Se fosse inteligente, então seria sustentável.

Há três ou quatro anos, quando falávamos de ex-trabalhadores da Foxconn, eles faziam cerca de três mil yuans chineses por mês. Não sei quanto isso representa na moeda brasileira, mas nos EUA são cerca de 500 dólares. No começo deste ano, fontes disseram que o trabalho das tags gerava apenas um mil yuans, em outros lugares como Guizhou e na província de Shanxi, no leste da China.

Essencialmente, ganham 130 dólares mensais para realizar o mesmo serviço de três ou quatro anos atrás em regiões rurais da China central. Hoje, no leste, as pessoas fazem a mesma coisa, um trabalho intensivo de tags, em todos os tipos de objetos, para treinar os algoritmos, torná-los inteligentes (smart). Mas a renda é menos da metade do que ganhavam há alguns anos. E a razão é porque estão usando estudantes, estagiários e, às vezes, realizando trabalho forçado.

Há guardas no lado de fora das oficinas, onde menores de idade precisam trabalhar de 10 a 12 horas para treinar os algoritmos, e recebem muito pouco. Não podem parar porque há seguranças que podem puni-los fisicamente, nem podem sair mais cedo.

É um padrão que vimos na Foxconn também. Muita força bruta, uma forma de supressão em ordem para gerar dinheiro. Portanto, não é inteligente. Não é sustentável. Antes da pandemia, a China já tinha um estado de vigilância. Depois da pandemia, como todos sabemos, por causa do rastreamento da pandemia, eles aumentaram [o sistema].

 

 

Geopolítica e a dissociação Washington e Pequim

A geopolítica cambiante entre os EUA e a China, especialmente desde a guerra comercial, o colapso das relações bilaterais, é muito importante. É bem semelhante a 400 anos atrás, quando Portugal e Espanha competiam entre si para ocupar a América Latina, as Filipinas, a Indonésia, o sudeste asiático.

Nos acostumamos a pensar na inteligência artificial e no ciberespaço como se fossem um mundo ilimitado, virtual. Mas hoje precisamos ver que a formação de capital precisa se ancorar em jurisdições particulares. O TikTok precisa ser legalizado ou será proibido em alguns países, como o México. Eles estão trabalhando nisso. Então, é preciso estar ancorado na geopolítica real. As empresas Huawei e TikTok estão sendo visadas. Em seguida, há o motor financeiro... grande parte do capitalismo digital, especialmente o capitalismo das plataformas, deve-se à flexibilização quantitativa.

O que eu gostaria de salientar é que, entre Washington e Pequim, vem ocorrendo uma dissociação. Mesmo assim, no setor tecnológico chinês temos muitos investimentos de Wall Street, em parte porque a Casa Branca não controla mais Wall Street depois da desregulamentação financeira. As empresas de Wall Street tomam as próprias decisões. Portanto, não é uma dissociação completa. A flexibilização quantitativa americana também tem promovido investimentos no setor de inteligência artificial na China. Talvez não no mesmo grau de antes. Mesmo assim, há uma conexão com o sistema financeiro global.

 

 

Desilusão com o capitalismo digital

Na base, os investidores, os cidadãos, os próprios trabalhadores, o povo chinês, já viram o desastre causado pelas bicicletas compartilhadas. Elas eram um assunto altamente debatido anos atrás. Mas, hoje, muitos passaram a usar ônibus, causando uma degradação ambiental na China. As pessoas passaram a duvidar mais quanto ao sucesso do capitalismo digital como uma panaceia para os problemas do país. Isso ocorre em sintonia com o desenvolvimento semelhante dos países ocidentais e do Japão, quando os cidadãos ficaram desiludidos com os fracassos do capitalismo digital.

 

Há menos oferta do que demanda na fábrica do mundo

Desde 2010, o que temos visto são as greves e resistências trabalhistas na China. Em parte, por causa da força de trabalho, da demografia, dos jovens, pois a China adotava, até recentemente, a política do filho único. Então, a população vem diminuindo entre os jovens. Há menos oferta do que demanda crescente na fábrica do mundo [isto é, a China]. Os jovens aqui, especialmente nas zonas rurais e os migrantes, estão mudando da manufatura, empregos do tipo Foxconn, para serviços e empreendedorismo, incluindo o empreendedorismo on-line.

Como resultado da dinâmica desse mercado de trabalho, os salários estão subindo na China, e as empresas passaram a contratar no exterior. Por exemplo, elas buscam trabalhadores filipinos para o serviço de tags em empresas chinesas, ou trabalhadores têxteis de Bangladesh.

 

 

Mas há uma maior resistência ao capitalismo de plataforma, especialmente a partir de 2016. É o mesmo ano em que a China se tornou o primeiro estado-nação a legalizar os serviços de carona remunerada. Mas esse mesmo ano também foi marcado por uma onda de motoristas da empresa DiDi. Em 2016, realizamos um estudo e descobrimos que os motoristas chineses precisavam trabalhar mais horas, e recebiam menos. Foi esse o motivo para os serviços privados de carona remunerada em 2016. Em 2018, houve uma greve nacional dos caminhoneiros por causa de uma plataforma interprovíncias de tráfego de caminhões de longa distância.

Essa greve desencadeou uma reforma institucional da ACFTU, a federação dos sindicatos chineses. É o único sindicato de propriedade do governo. Como resultado da greve dos motoristas de caminhões de longa distância contra o capitalismo de plataforma na China, a ACFTU criou a Divisão para o Trabalho de Internet. Agora há uma forma melhor de abordar esse tipo de resistência trabalhista em nível nacional contra o capitalismo de plataforma, ao mesmo tempo que a absorve. Ouvi que o mesmo ocorre no Brasil – uma absorção dos motoristas de aplicativo aos sindicatos reconhecidos pelo governo.

 

Mudança institucional

Portanto, tivemos uma mudança institucional também causada pela resistência ao capitalismo de plataforma na China. Ano passado, ocorreu algo inesperado. Aconteceu com os trabalhadores das classes alta e média, de dentro da indústria de softwares. Na China, eles são chamados “code farmers”. Eles escrevem códigos. Em inglês, acho que são chamados de “code monkeys”, aquelas pessoas que escrevem códigos das 9h às 21h, seis dias por semana. Chamam-se “996”. As principais empresas de plataforma, como Alibaba, estão desrespeitando a legislação trabalhista chinesa, porque as leis prescrevem que os empregados trabalhem 8 horas diárias, e mensalmente não podem ultrapassar 36 horas [extras]. Mas com o regime de 996, estas empresas de plataforma não respeitam a lei. Isso começou com a classe média, mas, depois, entrou a classe trabalhadora. As principais empresas de plataforma chinesas, como a Alibaba, foram pegas de surpresa.

 

 

IHU On-Line – Como você diria que está a situação na China depois da pandemia? O que tem acontecido no país desde então?

Jack Qiu - Quero ser franco. Não fiz uma pesquisa sistemática. Aqui apresento as minhas observações pessoais. A fase inicial [da pandemia] eu diria que foi dezembro de 2019 a janeiro de 2020. As autoridades chinesas fracassaram no controle da doença. Mesmo assim, como natural de Wuhan, deixei a cidade em 1995, mas culturalmente me considero wuhanês. Eu ainda não sei quantos morreram. A maioria dos meus amigos em Wuhan não confia nas contagens do governo, porque muitos cometeram suicídio, o que é algo muito triste. Apesar de o governo gastar dinheiro em vigilância, tecnologia, hospitais, o povo de Wuhan não ficou protegido. O governo errou feio em Wuhan e em outras partes da China. Isso é algo que eu queria dizer.

 

Ação de base

Apesar das proezas do capitalismo digital chinês, houve um fracasso na fase inicial da Covid-19. Mas, em fevereiro e março, o que observei – como dito, tenho familiares e amigos em Wuhan – é que, assim como nas demais partes da China onde havia lockdown, o setor que mais funcionou não foi o das empresas privadas, não foi o poderoso governo chinês. Foi no nível comunitário; os pequenos bairros. Hoje, estão usando ferramentas de internet, especialmente o WeChat. Portanto, é uma ação de base. Esse programa se assemelha com o Facebook, mas com orientação de base. É semiautônomo, recebe apoio de governos, mas é administrado nos bairros por guardas e voluntários. Meus amigos e colegas se voluntariaram para ajudar outros vizinhos, de um jeito não diferente das cooperativas. Eles ajudam no jardim comunitário, em projetos agrícolas comuns.

Então, nos meses de fevereiro e março, o nível de base, nos pequenos bairros, foi mais importante do que as estruturas estatistas de cima para baixo. Em abril, a pandemia foi controlada na China, foi quando a antiga vigilância, a abordagem de cima para baixo e também o capitalismo digital, como a DiDi, se tornaram mais presentes. Eles foram usados para reescrever a história, de dezembro até março. O governo fingia que era o salvador mais importante da China. Mas, para mim, isso só ocorreu no terceiro estágio da pandemia, não nos dois primeiros.

 

Desempenho das empresas de inteligência artificial na pandemia

O panorama das empresas de inteligência artificial na China também é muito desigual. Uma delas é a Meituan, empresa líder no ramo das entregas de alimentos. Mas, durante a pandemia, ela não entregou alimentos apenas. Também entregou mantimentos, artigos de papelaria e produtos farmacêuticos. Tornou-se um sistema de entrega e compras on-line muito mais abrangente.

A Meituan já era uma empresa campeã, assim como a Alibaba, que também já era a equivalente chinesa da Amazon. Como durante o lockdown não se podia sair para comprar, as empresas Meituan e Alibaba foram as grandes ganhadoras, enquanto outras, se olharmos o mercado de ações, os dados auditados, a DiDi e também a Tencent, não fizeram muito dinheiro. Elas expandiram, mas em grau muito menor. E houve outras empresas que quebraram. Por exemplo, a Xiaozhu – equivalente à Airbnb. Como não havia pessoas viajando, a Xiaozhu caiu muito nos negócios.

Uma outra plataforma é a que uso, nesse momento, para falar com vocês... a Zoom. Por problemas de geopolítica, a Zoom ficou inacessível na China, em decorrência da relação bilateral entre a China e os EUA, em julho. Por causa da luta intercapitalista entre a China e os EUA, a empresa Zoom sofreu grandemente, muito embora seu fundador [Eric Yuan] tenha vindo da China.

 

 

Entregadores de app

O quarto ponto eu já mencionei. Estudantes de escolas vocacionais são usados como estagiários no trabalho de tags e para fornecer um serviço de treinamento aos algoritmos, a aprendizagem de máquina, nas províncias de Shanxi e Guizhou, no leste chinês. O sucesso mais inesperado pelo trabalho em rede desde a pandemia veio em 8 de setembro. Em setembro desse ano [2020], saiu um artigo na revista chinesa Renwu, equivalente à revista People. Era um artigo sobre os entregadores de alimentos, como os da Meituan. Falava dos abusos que sofrem, do quão duro trabalham, e do quanto os algoritmos dificultaram a vida dos entregadores durante a pandemia.

A surpresa aconteceu porque, dentro de algumas semanas, houve uma enorme conscientização pública sobre as condições precárias de trabalho e os abusos sofridos pelos entregadores. As autoridades chinesas e a imprensa se uniram para ajudar os trabalhadores e a ACFTU, o sindicato oficial, a intervir com a sua Divisão para o Trabalho de Internet. Como resultado, alteraram os algoritmos. Agora, o aplicativo tem um novo botão para informar que o consumidor não está com muita fome, podendo esperar mais 15 minutos. Assim, o entregador não é penalizado. Portanto, o programa tornou-se mais humanizado por causa da reação contra a exploração excessiva dos entregadores.

Isso aconteceu no lado do consumidor. A plataforma agora acrescentou algo novo, pois inteligência artificial tem a ver com a otimização baseada em diversos fatores e variáveis. O antigo algoritmo só se preocupava com a velocidade da entrega e sua quantidade. No fim, estavam apenas os lucros possíveis de serem gerados a partir desse processo de trabalho. Mas agora há uma nova variável, que são as condições climáticas: se chove, se tem neve. O tempo esperado para a entrega estende-se, reduzindo as chances de acidentes no trânsito. O artigo da revista falava dos trabalhadores particularmente vulneráveis, entregadores de comida que se acidentaram ou que morreram, por exemplo.

É um novo setor, formado pela coalizão de jornalistas, trabalhadores, membros do sindicato. Essas pessoas trabalharam juntas, muito embora tenho colegas que olhavam estas plataformas e diziam: “É aprendizagem de máquina. Não sabemos como fatorar o clima. Não sabemos como fazer. É uma caixa-preta”. Mas hoje é um sucesso para mostrar aos trabalhadores, consumidores, governos e o público que a chamada “caixa-preta” pode ser mais humana, acrescentando opções e variáveis no processo de otimização.

 

 

Futuros incertos

Neste momento, a situação, pelo menos na China e talvez fora, na América Latina, está muito ruim. Na América do Norte também. Mas na China muitos acham que estamos na parte final da pandemia. Tomara. Cruzemos os dedos para que ela não volte.

Mas os futuros permanecem incertos. E digo os “futuros”, no plural. Não existe só um futuro. Pessoalmente, me preocupa, se a pandemia realmente está no fim, se iremos repetir 2010. O ano de 2010 foi o final da crise financeira global, o que significa que, na fábrica do mundo [a China], como aconteceu na Foxconn, o trabalho acabou mais explorador, na busca por compensar as perdas havidas na crise.

Normalmente, os momentos mais exploradores e fatais do capitalismo digital são aqueles imediatamente posteriores à crise. Será que haverá outra onda de suicídios entre os trabalhadores, nesse caso, não na manufatura, mas no trabalho de plataforma? Os trabalhadores vão cometer suicídios em grande número? É algo que me preocupa verdadeiramente.

Os suicídios na Foxconn foram seguidos por uma onda nacional. De norte a sul, houve uma grande onda de greves. Com essas formas inesperadas de resistência, como os suicídios, e se houver uma outra onda nacional de greves, essas pessoas encontrarão o punho cerrado, firme dos estados autoritários? Isso significa mais ativistas sendo jogados nas prisões, ou mesmo assassinados. Portanto é algo que também muito me preocupa.

A luta intercapitalista entre a China e os EUA – e dentro da China também – está se intensificando. A Alibaba compete com a Tencent. A Huawei ainda enfrenta desafios internos, domésticos com fabricantes de outros equipamentos. Essa luta interna pode também vir de facções diferentes de dentro do Partido Comunista, de diferentes partes da classe burocrática, dos diferentes tipos de aliança. Algumas mais próximas do Vale do Silício, outras mais próximas do capital imobiliário. Portanto, há muita incerteza dentro do establishment.

 

 

Luz no fim do túnel

Vejo uma luz no fim do túnel, vinda do nível municipal. Como mencionei, no nível nacional a China foi o primeiro país a abraçar o capitalismo de plataforma, nos serviços de carona remunerada. Mas também houve resistência. Por exemplo, o governo municipal de Shanghai resistiu porque teria que consertar as ruas. Ele costumava coletar impostos das empresas de táxi para arrumar as ruas. Mas agora, com serviços como DiDi, não pode mais aplicar este imposto. Desenvolve-se um antagonismo muito interessante contra o capitalismo de plataforma, o que pode ser um recurso para a formação do trabalho em rede, conforme interpreto. O meu grupo de pesquisas também trabalhou com o sindicato municipal de Pequim, o ramo local da ACFTU, que considero uma filial progressista. Portanto, eu buscaria mais alianças, parcerias e governos locais.

Uma das autoridades estatais locais que conheço é grande fã de Che Guevara. Nominalmente, a China é socialista, mas, em algumas partes do governo, podemos também identificar figuras interessantes que se dedicam à causa da classe trabalhadora.

Finalmente, não sei quantos de vocês já leram o interessante livro de Adam Arvidsson. Ele tem um livro, em parte inspirado no desenvolvimento do capitalismo digital e no movimento maker, na China. O livro se chama Changemakers e enfoca a revolução “industriosa” – e não a revolução “industrial” – de capital intensivo. Aqui, a promessa é que as empresas poderão dispensar a força de trabalho: quando tudo for automatizado, será possível a formação de capital sem trabalho. Na verdade, fui eu quem levou Adam Arvidsson à província de Shenzhen para observar o desenvolvimento do capital de trabalho intensivo industrioso. Temos aqui também um desafio teórico... revisitar o papel do capitalismo pequeno, aqueles trabalhadores que decidem começar o seu próprio negócio.

Penso que esse é um outro gargalo teórico para o marxismo na condição do capitalismo digital de hoje, incluindo a inteligência artificial. Na China, assim como em outras partes do mundo, precisamos de mais trabalhos empíricos, precisamos superar o gargalo teórico. Exatamente como esse capitalismo pequeno na forma industriosa da acumulação de capital, que pode pavimentar o caminho para uma sociedade em rede da classe trabalhadora, pelo trabalho em rede e para o trabalho em rede.

 

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