05 Setembro 2025
Divulgado nesta quarta-feira (3) pela Coalizão Florestas e Finanças, relatório aponta que bancos e investidores alimentam práticas violentas e exploratórias em nome da transição energética; Brasileira Vale ficou em quinto lugar no ranking global de mineradoras beneficiadas, apesar de histórico de violações socioambientais
A reportagem é de Daniela Penha, publicada por Repórter Brasil, 03-09-2025.
A produção de metais de transição energética, como como cobalto, níquel, lítio e cobre, está causando impactos socioambientais graves, com o incentivo de financiamentos que movimentam bilhões de dólares. É o que aponta um estudo divulgado nesta quarta-feira (3) pela Florestas e Finanças, coalizão de organizações que monitora globalmente fluxos de dinheiro para empresas que colocam as florestas do planeta em risco. A Repórter Brasil faz parte da coalizão.
O relatório “Mineração e Dinheiro: Falhas Financeiras na Transição Energética” (disponível apenas em inglês) alerta que a “corrida” por fontes de energia limpa está alimentando o desmatamento, a grilagem de terras, a poluição, a contaminação e a violência contra povos tradicionais. Esse processo também repete “as mesmas práticas violentas, exploratórias e insustentáveis que definiram a era dos combustíveis fósseis”, diz trecho do relatório.
O estudo mapeou 130 empresas de mineração que produzem dez minerais classificados como de transição (alumínio, cromo, cobalto, cobre, grafite, ferro, lítio, manganês, níquel e zinco) e os bancos e investidores que financiam essas companhias.
O relatório identificou os bancos americanos JPMorganChase e Bank of America como os maiores bancos financiadores de mineradoras de minerais de transição, setor classificado pelo estudo como “notoriamente de alto risco”. Do lado dos investimentos, as gestoras BlackRock e Vanguard, também dos Estados Unidos, lideram em volume de títulos e ações de empresas do setor.
Entre 2016 e 2024, mostra o estudo, bancos em todo o mundo injetaram um total de US$ 493 bilhões em empréstimos e emissão de títulos para empresas do setor. Já investidores detinham, até junho de 2025, US$ 289 bilhões em ações e títulos dessas empresas. Do montante total investido pelos bancos, 53% foram destinados para apenas 10 companhias do setor, como a brasileira Vale.
Vale: soma de desastres
A mineradora brasileira está entre as principais companhias listadas no estudo, tanto pelo volume de recursos recebidos quanto pelo histórico de violações.
O relatório destaca os rompimentos de duas barragens ligadas à empresa.
O primeiro, em novembro de 2015, na barragem do Fundão, em Mariana (MG). O rompimento da barragem, de propriedade da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela australiana BHP, fez 19 vítimas fatais e é considerado a pior tragédia ambiental da história do Brasil. O segundo, em janeiro de 2019, foi o rompimento de uma barragem da própria Vale, em Brumadinho (MG), com 272 mortos e 11 desaparecidos. O relatório destaca que o caso “continua sendo um dos desastres industriais mais mortais do século XXI”.
O estudo também cita que a mineradora foi multada por descumprir uma lei estadual que determinava um prazo legal para o encerramento de suas barragens mais perigosas em Minas Gerais, agora adiado para 2035. “As comunidades continuam em risco, pois 20 das barragens de rejeitos da Vale são consideradas de alto risco de falha”, complementa outro trecho do estudo.
A pesquisa descreve ainda a atuação da Vale no Pará. As operações na mina de níquel Onça Puma, administrada por uma subsidiária da Vale na região da Serra dos Carajás, no Sudeste do estado, são suspeitas de contaminar com metais pesados o rio Cateté, curso d’água banha a Terra Indígena Xikrin do Rio Cateté.
Em fevereiro deste ano, o MPF (Ministério Público Federal) do Pará ajuizou uma ação civil pública contra a mineradora, a União e o estado do Pará, pela contaminação por metais pesados dos indígenas.
Em resposta enviada à Repórter Brasil, a Vale alega que laudos de peritos judiciais apontam que a Mina Onça Puma não é fonte de contaminação do rio Cateté e destaca que na região existem outras atividades poluidoras, como o garimpo ilegal o uso de defensivos agrícolas. A mineradora sustenta, também, que a nova ação civil pública contra o empreendimento não altera a legitimidade da operação, nem os mecanismos de controle já em vigor, como o seu programa de monitoramento das condições das águas superficiais e efluentes associados à operação de Onça Puma.
Em relação à reparação dos desastres em Brumadinho e Mariana, a Vale afirma ter cumprido 78% do total estimado em R$ 37,7 bilhões previstos no Acordo de Reparação Integral de Brumadinho e já ter pago R$ 4 bilhões em indenizações individuais desde 2019. “Pelo menos um familiar de cada empregado, próprio ou terceirizado, vítima do rompimento, já fechou acordo de indenização”, aponta a Vale. Sobre Mariana, a mineradora destacou o seu papel de acionista da Samarco e que está “comprometida com a reparação integral dos impactos causados pelo rompimento da barragem”. Esse compromisso, afirma a Vale, se reflete no Acordo de Reparação, homologado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em novembro de 2024.
A empresa também afirmou ter eliminado 17 das 30 barragens a montante previstas em seu programa de descaracterização, que teve início em 2019. A Vale alega que o prazo original estabelecido em lei estadual de Minas Gerais “foi considerado tecnicamente inviável, não somente para a Vale mas para várias empresas”. Em 2022, afirma a mineradora, a Vale e outras empresas assinaram um Termo de Compromisso com o Estado de Minas Gerais, órgãos reguladores e os Ministérios Públicos Estadual e Federal que estabeleceu um novo cronograma de descaracterização, com conclusão prevista para 2035. “O Termo também prevê que as empresas signatárias deverão pagar quantias estabelecidas a serem convertidas em projetos de dispêndio socioambiental – não se tratando, portanto, de multa”, aponta a empresa.
Leia as respostas da Vale na íntegra aqui.
Bilhões investidos após Brumadinho
Entre as 130 empresas mapeadas, a Vale foi a quinta mais financiada entre 2016 e 2024, recebendo US$ 23,3 bilhões de bancos. Desse total, US$ 15,8 bilhões foram direcionados às operações no Brasil.
“Quando analisamos os financiamentos emitidos entre 2016 e 2024, descobrimos que 65% vieram depois do segundo rompimento de barragem em 2019”, explicou à Repórter Brasil Stephanie Dowlen, da Rainforest Action Network, organização que integra a Coalizão Florestal e Finanças. “O Bank of America, maior credor da Vale nesse período, concedeu US$ 1,1 bilhão de dólares em 2020. O Bradesco foi outro banco que aumentou seu financiamento após Brumadinho, oferecendo US$ 334 milhões em 2020”, detalha Dowlen.
O estudo também aponta que investidores detinham US$ 27 bilhões em títulos e ações da Vale em junho de 2025, outra forma de captação de recursos para a empresa. A Caixa e a BlackRock, maior gestora de investimentos do mundo, possuíam a maior fatia: US$ 3,1 bilhões e US$ 2,9 bilhões em títulos e ações, respectivamente.
Para a pesquisa, os “financiadores são cúmplices nos danos causados pela Vale” e devem reforçar seus mecanismos de devida diligência – processo de identificar, prevenir, mitigar e responder por danos e violações socioambientais que tenham causado ou contribuído –, além de adotar critérios de exclusão para empresas reincidentes em violações.
JPMorgan Chase, Bank of America, Bradesco, Caixa, BlackRock e Vanguard também foram procurados, mas não responderam até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Políticas insuficientes ou inexistentes
O estudo avaliou as políticas socioambientais de 30 instituições financeiras com relação ao financiamento da mineração de minerais de transição. Foram analisados 34 critérios, divididos em quatro categorias: ambiental, social, governança das instituições e governança das empresas. Cada critério recebeu pontuação de 0 a 10, convertida em porcentagens para comparação.
A pontuação média geral das instituições foi de apenas 22%, aponta o estudo.
As medidas de proteção ambiental foram o ponto mais frágil, com média de pontuação de 17%. Apenas 13% das instituições avaliadas tinham políticas claras de desmatamento zero, nenhuma exigia de seus clientes o gerenciamento de riscos relacionados ao armazenamento de rejeitos e somente 10% adotavam diretrizes confiáveis, segundo o estudo, para o fechamento ou a recuperação de minas, com foco na proteção ambiental.
“Sabemos que existem lacunas na regulação financeira que permitem que bancos e investidores priorizem o lucro em detrimento dos direitos humanos, do meio ambiente e da responsabilidade corporativa. Essas lacunas, somadas aos rótulos de ‘verde’, ‘limpo’ ou ‘renovável’ atribuídos aos minerais de transição, estão agravando problemas antigos do setor”, conclui Dowlen.
Nota
O texto foi alterado dia 04/09, às 9h40, para incluir o posicionamento enviado pela mineradora Vale.
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