O livro Arrastados, de Daniela Arbex, não é apenas uma narrativa sobre a tragédia de Brumadinho. É um documento de memória e denúncia, que expõe as vidas ceifadas, os territórios destruídos e o silêncio cúmplice que recobre a lama tóxica. A obra recorda que não se tratou de um “acidente”, mas de um crime socioambiental, gestado pela negligência e pela lógica do lucro sem limites.
O artigo é de Mônica Lima, graduanda em Jornalismo pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Por meio de relatos de sobreviventes e de profissionais, Arbex trás uma visão dos acontecimentos daquele 25 de janeiro de 2019 e dos acontecimentos posteriores ao rompimento da Barragem B1 da mineradora Vale S.A, localizada no Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios foram despejados pela mina.
O livro-reportagem reconstrói o início do fatídico dia 25, um dia comum, a saída de casa nas primeiras horas da manhã, as conversas no ônibus, o cheiro de café: a banalidade da rotina atropelada ao 12h28, quando um “tsunami” de rejeitos arrastou tudo que estava á sua frente e destroçou a vida em Brumadinho.
Enquanto os relatórios técnicos contabilizam perdas materiais, Arbex devolve humanidade às estatísticas. Mostra que como os corpos soterrados pela lama são também os corpos de uma história que insiste em ser esquecida: trabalhadores terceirizados, homens e mulheres que sustentaram o ciclo da mineração e que, na hora da tragédia, foram reduzidos a números em planilhas de indenização.
É impossível ler sobre Brumadinho sem que a emoção nos atravesse. Naquele dia, 272 pessoas: filhos e filhas, mães e pais, irmãos e irmãs, avós e avôs, deixaram seus lares rumo a mais uma sexta-feira de trabalho, carregando, talvez sem saber, a esperança de regressar aos braços de suas famílias.
O rompimento em Brumadinho foi uma tragédia anunciada, como relata a jornalista: “A Vale previu ainda que, no caso de um eventual rompimento, o tempo de chegada da inundação nas edificações a até 2 quilômetros da B1 seria inferior a 1 minuto. Ou seja, não haveria jamais nenhuma chance de fuga do local que a empresa delimitou como “zona de autossalvamento”. A tragédia expôs a face mais cruel de um modelo econômico que coloca o lucro acima da vida.
Segundo sobreviventes e moradores, havia diversos boatos de ex-funcionários de que a Vale tinha conhecimento dos riscos de rompimento da barragem e da falsa sensação de segurança transmitida. Apesar dos alarmes instalados pela empresa em vários pontos do Córrego do Feijão, nenhum deles soou no momento em que o tsunami de lama foi abaixo.
A empresa alemã terceirizada Tüv Süd, contratada para elaborar os relatórios de segurança das barragens do Córrego do Feijão, sofreu diversas pressões da Vale em relação à declaração de estabilidade de uma estrutura em risco.
Se a Vale não conseguisse a declaração de estabilidade da B1, as atividades da mineradora precissariam ser paralisadas, uma opção que não fazia parte dos planos da mineradora. A Vale optou pelo negócio e não pela segurança das pessoas.
Apesar da dúvida da empresa de ceder ou não às investidas da Vale S.A, eles decidiram assinar a declaração e atestar a segurança da estrutura. Ao legitimar um empreendimento que apresentava sinais críticos de risco, a Tüv Süd assumiu uma parcela significativa de culpa pelo desastre.
Até o momento, as duas empresas e mais 16 pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público de Minas Gerais, mas nenhum dos acusados foram condenado. Eles respondem por homicídios qualificados, crimes contra a fauna e a flora e crimes de poluição.
Um estudo do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), que analisou 319 processos julgados no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), concluiu que 75% das decisões foram desfavoráveis aos atingidos de Brumadinho.
Brumadinho não é um episódio isolado. Apenas três anos antes, em 2015, o país já havia testemunhado o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), operada pela Samarco (Vale e BHP Billiton), que liberou 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos e destruiu o rio Doce. O desastre de Mariana foi considerado, até então, o maior crime ambiental do Brasil. Contudo, Brumadinho mostrou que a lição não foi aprendida.
Ambientalmente, o impacto da lama tóxica provocou danos em 300 km do rio Paraopeba e atingiu 26 municípios. O território, cercado pelo bioma da Mata Atlântica e do Cerrado, teve perdas enormes da fauna e da flora. Segundo o Ibama, 2,6 milhões de metros quadrados de mata foram destruídos pela lama, diversas espécies entraram em risco de extinção. Desde o acidente, as águas do rio Paraopeba são impróprias para banho e consumo.
Brumadinho é mais uma história que mostra a relação do homem com a natureza, uma história calcada na exploração “infinita” de recursos naturais finitos.
Seis anos após a tragédia, as cicatrizes de Brumadinho seguem abertas. As indenizações, embora significativas, estima-se que a Vale já tenha desembolsado mais de R$ 37 bilhões em reparações, não são suficientes para recompor lares, recuperar territórios ou devolver vidas.
Além disso, a responsabilização criminal permanece arrastada pelo sistema de justiça. Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou parte do processo contra os executivos da Vale, deslocando o julgamento para a Justiça Federal, o que posterga a definição de culpados. A ausência de punição efetiva reforça a sensação de impunidade, já normalizada quando se trata de meio ambiente.
Até quando o país aceitará que tragédias anunciadas sejam tratadas como “acidentes”?
Hoje, 6 anos após a tragédia anunciada, a Vale continua crescendo nos mercados de mineração. Após o rompimento da barragem, mesmo com os prejuízos de R$1,6 bilhão por conta das indenizações, em janeiro de 2025 a empresa já soma R$347,35 bilhões desde que o desastre aconteceu.
Em dados comparativos entre o lucro e as despesas com o crime em Brumadinho (em dólares), publicados pelo Brasil de Fato, no período de 2019-2024, a empresa teve um lucro de US$ 58,694 bilhões, e gastou US$ 17,598 bilhões com despesas referentes ao “acidente”.
As indenizações da Vale S.A levantam questionamentos, a empresa realmente se importa com as vítimas, as comunidades destruídas, o meio ambiente. Ou funciona como cifra amortecedora para limpar a imagem da mineradora e diminuir o peso da consciência dos investidores?
Dia 3 de julho de 2025 a Justiça do Trabalho iniciou o pagamento das indenizações por “dano de morte” e apesar disso, nenhum dinheiro nunca será suficiente, pois nada fará as pessoas voltarem para os braços de seus familiares.
Além disso, atualmente, duas joias (como os bombeiros chamam as vítimas desaparecidas) não foram localizadas, Nathália de Oliveira Porto Araújo e Tiago Tadeu Mendes da Silva.
Desaparecidos de Brumadinho ainda hoje, Nathália de Oliveira Porto Araújo e Tiago Tadeu Mendes da Silva (Fotos: Arquivo Pessoal | Edição: Notícias R7).
Os últimos segmentos corpóreos encontrados na região foram da corretora de imóveis Maria de Lourdes da Costa Bueno em fevereiro deste ano.
Algumas famílias nunca conseguiram dar um enterro digno a seus familiares, pois em diversos casos (a maioria), os bombeiros encontraram apenas partes dos corpos. As pessoas nunca conseguiram se despedir, nem em vida e menos ainda na morte.
Nesse contexto, em uma sociedade extrativista, a aprovação de projetos de lei, como por exemplo o PL da Devastação (PL 2159/21), podem desencadear novas tragédias como Brumadinho.
Em seu livro, Arbex questiona: “Brumadinho nunca mais?” Infelizmente, dado todo o cenário socioambiental brasileiro, penso estarmos perseguindo a negativa, ainda mais pensando no grande problema da humanidade: a ganância.
Brumadinho não é apenas sobre Minas Gerais. Ele é sintoma de um paradigma exploratório que marca a economia brasileira desde a colonização. A mineração, símbolo do “progresso”, continua a ser pensada como motor de desenvolvimento, mesmo quando destrói territórios, polui rios, desmata a fauna e a flora e, principalmente, sufoca vidas.
O que Arbex nos mostra é que a lama é também simbólica: leva consigo direitos, memórias, vínculos. Não é apenas a natureza que sofre; é a democracia, reduzida a um espaço onde a vida vale menos que o minério.
Que a memória resista ao tempo e possamos aprender com os erros do passado, para que desastres socioambientais como Brumadinho nunca voltem a acontecer. Que possamos construir um futuro onde o respeito à vida e ao meio ambiente seja prioridade e, assim, prevaleça.
Livro "Arrastados: os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil", de Daniela Arbex (Editora Intrínseca, 2022).
ARBEX, Daniela. Arrastados: Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil. [S.l.]: Intrínseca, 2022.
PIRES, Thalita. Vale já lucrou R$ 347 bilhões seis anos depois do crime em Brumadinho. Disponível aqui.
AZEVEDO, Ana Lucia. Dano ambiental em Brumadinho ameaça centenas de espécies. Disponível aqui.
ALBUQUERQUE, Mariana. 5 anos de Brumadinho: o que houve com os envolvidos no rompimento da barragem. Disponível aqui.