14 Mai 2025
O bolsonarismo não é uma ideologia, mas um pacto de milicianos, neopentecostais e uma elite rentista — uma distopia reacionária moldada pelo atraso brasileiro, não pelo modelo de Mussolini ou Hitler
O artigo é de Luiz Bernardo Pericás, publicado por A Terra é Redonda, 11-05-2025.
Luiz Bernardo Pericás, professor no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo).
1.
Estudiosos do fascismo, em diferentes países, têm se utilizado de estratégias de pesquisa e interpretações distintas para abordar esse tema e suas implicações políticas. Se alguns discutem o fascismo como um fenômeno temporal-sincrônico (ou seja, histórico), concentrando sua análise especialmente na Europa do entreguerras (neste caso, com foco principal na Itália e na Alemanha), outros, por sua vez, privilegiam um caráter genérico-diacrônico para discutir o assunto, descolando sua investigação de qualquer período específico e tratando-o como uma modalidade de ocorrência mais ampla e recorrente no mundo contemporâneo, a partir de uma apreciação calcada em traços comuns, padrões e definições mais abrangentes.
É claro que essas duas visões não são necessariamente excludentes, ainda que representem perspectivas muito particulares de como se trabalhar com esse objeto. Seja como for, qualquer tentativa de descrição e definição de uma experiência designada como “fascista” deveria, em tese, ter equivalências ou aspectos similares aos do modelo original (ainda que seja comum vermos o conceito sendo usado de forma mais flexível na atualidade).
Conforme afirmou S. J. Woolf, a palavra “fascismo” é como uma maleta de fole, que “quanto mais coisas colocamos nela, mais se abre”.[i] Nesse sentido, muitos movimentos, organizações e governos de direita (ou extrema direita) foram alcunhados como tal, ao longo do tempo, mesmo que, stricto sensu, esse não fosse o caso. As interpretações mais díspares seriam elaboradas a partir de aspectos econômicos, “psicológicos”, “sociológicos” e culturais.
Basta listar os nomes dos intelectuais que trataram do tema (assim como suas filiações políticas e épocas em que atuaram) para se ver como o assunto foi lidado de maneira bastante heterogênea. Antonio Gramsci, Otto Bauer, August Thalheimer, Leon Trótski, Palmiro Togliatti, Daniel Guérin, Benedetto Croce, Wilhelm Reich, Erich Fromm, Hannah Arendt, Z. K. Brzezinski, Clara Zetkin, Max Horkheimer, Jorge Dimitrov e Theodor Adorno, além de intelectuais como Ernest Mandel, Talcott Parsons, Ernst Nolte, Emilio Gentile, Renzo de Felice, Robert Paris, Roger Eatwell, F. L. Carsten, Edward R. Tannenbaum, Nicos Poulantzas e Michael Mann, são apenas alguns dos que se dedicaram a examinar (e, em determinados casos, também a combater) o fenômeno.
Na América Latina, outros se dispuseram a empreender análises no âmbito teórico ou dentro de nossa realidade (da perspectiva dos países periféricos), em um esforço para avaliar as experiências autoritárias locais (ou as “clássicas”) a partir desse referencial europeu, com conclusões bastante diferentes entre si. É só lembrar aqui de pensadores como José Carlos Mariátegui, Florestan Fernandes, Theotônio dos Santos, Schafik Handal, Carlos M. Rama, J. Chasin, Agustín Cueva, Leandro Konder e Ernesto Laclau. De qualquer forma, certas definições de fascismo são por vezes tão amplas e multíplices que praticamente tudo parece caber nelas.[ii]
Na luta política cotidiana, o termo tem sido proferido como um turpilóquio contra os reacionários, uma espécie de sinônimo de qualquer atitude considerada contestável e detestável, um rótulo contra aqueles que promovem todo tipo de barbárie e investidas aos ideais humanistas e progressistas. De fato, ativistas de esquerda têm costumeiramente pronunciado a palavra para acusar dirigentes que levam a cabo medidas autoritárias e truculentas, associando o “fascismo” mais a um “estado de espírito” e a práticas repressivas que a seus fundamentos econômicos, doutrinários e conceituais.
Ao se empreender uma avaliação mais acurada, contudo, é mister esmiuçar o fenômeno e tentar compreender suas principais características, evitando, a nosso ver, utilizá-lo como parâmetro único ou central de comparação (a partir de generalizações), enquanto ao mesmo tempo, são deixadas em segundo plano as variáveis imprescindíveis dos processos locais dos casos contemporâneos em análise. Para se enfrentar um inimigo, torna-se necessário, portanto, buscar sua verdadeira essência, suas origens sociais e ideológicas, e seus objetivos. E isso serve também, por certo, para o governo Bolsonaro e para o que está ocorrendo no Brasil de hoje.
É preciso, portanto, diferenciar a aparência, a superfície, do conteúdo de qualquer objeto de estudo, assim como procurar as particularidades de cada experiência histórica. Muitos dos elementos que hoje são atribuídos a um suposto “neofascismo”, “protofascismo” ou “colonial-fascismo” adaptado às condições atuais do país nos parecem, na verdade, deformações ou adequações de padrões recorrentes de nossa trajetória nacional a este momento específico do século XXI, variantes de práticas antigas, resultado do legado colonial, escravocrata, elitista e mesmo, ditatorial, que perpassou diferentes períodos de nossa história.[iii]
Deve-se, assim, prestar atenção a alguns atributos da gestão de Jair Bolsonaro e confrontá-los ao fenômeno original, para concluir então se existem paralelos e diferenças significativas entre eles. Não custa ressaltar aqui que os casos italiano e alemão, por certo, têm distinções, passaram por “fases” em seu desenvolvimento e incluíram em seus círculos decisórios personagens com posições, por vezes, diferentes (é possível identificar uma retórica anterior à chegada ao poder; a implementação de certas medidas político-econômicas nos primeiros anos daquela experiência; e possíveis mudanças de posicionamentos e de discurso em etapas posteriores).[iv]
De qualquer forma, enquanto na Itália (país de capitalismo retardatário localizado no polo mais avançado da economia mundial), o fascismo, em última instância, estruturaria um Estado autárquico, corporativo, intervencionista e hipertrofiado associado ao grande capital nacional e à burguesia local,[v] no intuito de levar adiante um projeto expansionista e imperialista[vi], no Brasil atual, o que se observa é uma dinâmica contrária, ou seja, uma tendência de continuidade de um processo de desindustrialização, reprimarização e defesa de um Estado mínimo (ou seja, na prática, um “desmonte” do Estado).
Aposta-se na capitalização e na rentabilidade por meio do agronegócio ou da especulação financeira, e buscando preservar o mesmo padrão histórico do país como nação que tem como vetor precípuo a produção de commodities agrícolas e minerais para o mercado externo.[vii]
Sendo assim, em vez de políticas “imperialistas” e “industrializantes”[viii] dos casos tradicionais europeus, a atual administração promove o “entreguismo” e a total subordinação ao imperialismo, facilitando a penetração dos interesses estrangeiros no país, o que resulta em fechamentos de firmas autóctones e ampliação da fatia do mercado interno pelas companhias forâneas (quando muito, nota-se a associação da burguesia interna ao capital internacional, no intuito de remeter seus lucros para o exterior, ou a relação íntima de algumas de suas frações com setores financeiros, reforçando seu caráter “rentista”)[ix].
Isso, por sinal, é um padrão que já vem ocorrendo há um bom tempo e que não é exclusividade do governo de Jair Bolsonaro (a tentativa de destruição de empresas públicas e empreiteiras nacionais, realizada pela Lava Jato, é um exemplo claro desse tipo de procedimento). Percebe-se que não há, nos dias de hoje, um interesse efetivo do Palácio do Planalto em implementar direcionamentos estratégicos ou em conduzir a economia no sentido de sua expansão e projeção mundial.
Muito pelo contrário. Deixa-se o país sem rumo, abandonado à rapina do mercado e permitindo que ele perca sua antiga posição de destaque como economia emergente relevante. O fato de o país sair da sexta colocação alguns anos atrás (2011) para a décima segunda no ranking das maiores economias globais mostra como a tendência promovida na atualidade é muita distinta daquela almejada pelas nações fascistas na primeira metade do século passado.
O que se verifica é o aprofundamento do processo de “desindustrialização” que já vem ocorrendo há anos[x]. E a penetração e concentração cada vez maior do capital estrangeiro em diferentes setores de nossa economia, através de fusões e compras de empresas domésticas[xi]. Ao contrário de se buscar posicionar o Brasil como uma potência emergente, apenas se reforçou sua subordinação ao “Colosso do Norte” e ao projeto de Steve Bannon, de Donald Trump e da alt-right norte-americana de maneira geral. Nesse sentido, até mesmo o suposto “nacionalismo” (uma das premissas básicas do fascismo) defendido pelo atual ocupante do Planalto é de fachada. A imagem de Bolsonaro batendo continência à bandeira dos Estados Unidos é sintomática neste caso.
A relação do fascismo com os trabalhadores também difere ao que se verifica no Brasil de hoje. Se na Itália o fascismo procurou, de um lado, retirar a autonomia do movimento operário “independente” (esmagando organizações de esquerda ou oposicionistas, suprimindo sua capacidade de manobra e atuação), de outro, ele estruturou a seus moldes agremiações impostas de maneira verticalizada, que seguiam a linha propugnada pelo Estado, a partir do controle e disciplinamento estritos, e da implementação do conceito de colaboração de classes.[xii]
Aqueles grêmios, assim, deveriam ser direcionados a um modelo “corporativo”, garantindo maior controle sobre o proletariado (nesse sentido, a Carta del Lavoro italiana, de 1927, é emblemática, já que mostrava como o Estado se propunha a ordenar diferentes aspectos das relações de trabalho).[xiii] No caso do governo de Jair Bolsonaro, por sua vez, o que se pode perceber é uma acentuada desregulamentação laboral, seguindo uma linha que já vinha sendo levada a cabo pelo ex-presidente Michel Temer e os parlamentares de direita no Congresso.
O governo brasileiro, portanto (mesmo que igualmente siga um padrão de conduta autoritário), persegue uma linha bastante diversa nesta área, incentivando a “flexibilização” das relações de trabalho e impulsionando um processo acelerado de uberização, precarização e “empreendedorismo”.
Por aqui não há interesse na constituição de sindicatos “oficiais” que funcionassem como “linhas de transmissão” entre seus membros e as autoridades (aqueles que obrigatoriamente tivessem uma relação íntima e apendicular com o Estado e que fossem monopolizados pelos detentores do poder), mas em trabalhadores individualizados ou autônomos, muitos dos quais, atuando na informalidade (uma política neoliberal que, por sinal, estava sendo implementada em administrações anteriores e que se verifica também em outros países).[xiv]
No plano político, no caso italiano, vale lembrar da abolição da Câmara dos Deputados e a criação da Câmara dos Fasci e das Corporações, com seus membros recrutados pelo Conselho Nacional do PNF e pelo seu homólogo das Corporações[xv]. Jair Bolsonaro, por sua vez, não consegue controlar o Parlamento e as instituições. No caso do Congresso, ele precisa negociar constantemente com o “Centrão” para poder governar, uma prática similar à de outros presidentes que o precederam.
Ou seja, a velha e tradicional dinâmica de transações por cargos e verbas com partidos de direita e com siglas de aluguel, comum a várias administrações passadas, continua a ser usada na atualidade. Nenhuma novidade “fascista”, portanto, mas sim, um modus operandi recorrente na política nacional. O presidente talvez até desejasse ter o controle do Poder Legislativo (ou mesmo, seu fechamento, para governar sozinho, como bem entendesse), mas essa possibilidade ficou apenas em seus devaneios autoritários.
A distância entre a vontade e a realidade é bem grande neste caso. Isso para não falar na inabilidade e incapacidade de Jair Bolsonaro criar seu próprio partido, que poderia até mesmo ter características inspiradas no fascismo (quiçá sua aspiração fosse o da constituição de um “partido armado”). O fato é que ele sequer conseguiu o número mínimo de assinaturas para a criação da chamada “Aliança pelo Brasil” (no final de 2020, só 9% das firmas necessárias foram validadas, uma cifra ínfima).
O presidente também não controla a imprensa corporativa (que está nas mãos da grande burguesia) nem veículos menores, muitas vezes em plataformas digitais. As complicações para um projeto totalitário, neste caso, são múltiplas. Há contradições entre distintas frações da burguesia interna que não permitem que o governante tenha carta branca para agir. Pelo contrário, são esses setores que cada vez mais atacam e criticam o mandatário.
Além disso, temos um sistema federativo, em que governos estaduais e municipais se contrapõem constantemente aos desígnios do Planalto. A autonomia de Bolsonaro, assim, é bastante relativa e limitada. Isso sem contar com os contrapesos institucionais e a atuação de diferentes organismos, como STF, OAB, associações de classe, entidades da sociedade civil, entre outros.
É bom recordar que o fascismo foi também uma tentativa de antagonizar e prevenir o “comunismo” e qualquer possibilidade de revolução proletária. No Brasil atual, por sua vez, não se vislumbra nada semelhante no horizonte próximo. O que se tem é um grande simulacro, discursos vazios, de fachada, que não possuem correspondência ou lastro com a realidade. A utilização de argumentos contra um suposto “marxismo cultural” e a defesa dos valores cristãos e ocidentais servem como cortina de fumaça para um projeto de ataque aos setores populares organizados, movimentos sociais, meio universitário, artistas e intelectuais de forma geral.
Mas atitudes contra ativistas de oposição sempre existiram no país. Foi assim na República Velha, por exemplo, quando, em diferentes momentos, militantes e dirigentes do movimento operário, anarquistas e comunistas eram recorrentemente presos (se fossem “estrangeiros”, podiam ser deportados); greves e manifestações, rompidas com extrema violência; levantes populares ou experiências alternativas de coletividades agrárias (em alguns casos, messiânicas e milenaristas), esmagados; publicações, apreendidas; e o estado de sítio, utilizado quando fosse conveniente.
Medidas autoritárias, repressão e perseguições políticas podem ser encontradas ao longo da história do Brasil, inclusive em períodos ditos “democráticos”. De qualquer forma, o “anticomunismo” por aqui é anterior ao surgimento do fascismo e mesmo da Revolução Russa. Como lembra o historiador Lincoln Secco, “o anticomunismo é um elemento de longa duração e surgiu no Brasil antes de qualquer movimento socialista ou comunista.
No século XIX, a palavra ‘comunismo’ aparecia nos compêndios jurídicos, discursos de deputados e artigos de jornais associada ao crime, à preguiça, à irracionalidade e ao agigantamento do Estado. Decerto, não se tratava de um fenômeno persistente e enraizado na sociedade civil e nas forças armadas. Estas, ainda não estavam constituídas e centralizadas, material e ideologicamente, o que só aconteceria depois de 1930; e a ‘sociedade civil’ e a política eram espaços de uma restrita coterie”.[xvi]
Ainda assim, segundo ele, “a sua particular gênese histórica não contradiz sua validade permanente. Antes exibe um traço estrutural preventivo”[xvii]. Ou seja, o pretexto do “anticomunismo”, como técnica de mobilização política, não é novidade, sendo usado no Brasil há muito tempo, por conservadores e reacionários.
Mesmo em termos de construção ideológica, enquanto o fascismo, pelo menos na concepção de alguns de seus “teóricos” e defensores, era considerado como “anti-individualista” (em outras palavras, insistia em seu caráter de comunidade “corporativa”), o “bolsonarismo” é o oposto, exaltando o “indivíduo” (e o “individualismo”) em contraposição a qualquer tentativa de projeto associativo (neste caso, está mais próximo do liberalismo econômico thatcherista que das experiências italiana e alemã na primeira metade do século XX).
A impressão que se tem, portanto, é a da difusão da ideia da antiga primeira-ministra britânica de que “não existe sociedade, só indivíduos e suas famílias”. Ou seja, um país feito de cidadãos atomizados, fragmentados e ensimesmados em suas casas, isolados e encerrados em seus núcleos familiares (o incentivo ao homeschooling é parte disto),[xviii] que só se uniriam circunstancialmente em determinados espaços coletivos, como os templos religiosos, por exemplo.
O fato é que o “bolsonarismo” não é uma ideologia, mas sim uma expressão política específica personificada neste político, que não formula ideias originais e não tem um arcabouço intelectual sofisticado. Ele representa certas “práticas” e preconceitos de determinada fatia da população, que pode ser caracterizada de maneira mais ampla como um tipo de “lumpesinato”, que não tem lastro cultural ou mesmo econômico significativo.
A base “bolsonarista” é composta por frações de classe incultas, depauperadas, conservadoras e raivosas que não controlam os meios de produção (pelo menos, seu polo dinâmico) nem possuem grandes quantias de capital investidas em setores-chave da economia nacional[xix].
Como afirmou Karl Marx, em seu O 18 de brumário de Luís Bonaparte, sobre uma experiência histórica distinta, o líder francês “se constituiu como chefe do lumpemproletariado, porque é nele que identifica maciçamente os interesses que persegue pessoalmente, reconhecendo, nessa escória, nesse dejeto, nesse refugo de todas as classes, a única classe na qual pode se apoiar incondicionalmente”.[xx]
No caso presente, Jair Bolsonaro se respalda em setores que foram perdendo espaço e privilégios ao longo das últimas décadas. Bolsonaro é um ladrão de galinha na presidência, alguém que passou 28 anos como parlamentar do baixo clero, essencialmente preocupado com assuntos familiares e rachadinhas, ligado a policiais e milicianos, e sem qualquer projeto de nação, mas que, em um momento muito específico, encarnou os interesses de uma parcela significativa da população (muito influenciada pela mídia) que queria ter no poder um representante parecido consigo em termos intelectuais, culturais e políticos, enquanto ao mesmo tempo acabou sendo o candidato viável das elites para afastar o PT e levar a direita de volta ao Planalto.
Por sinal, ele se tornou a opção de uma direita “tradicional” (muito distinta da extrema direita com traços religiosos evangélicos e suburbanos que ele personifica) que acreditava que o mandatário poderia ser um fantoche em suas mãos, mas que logo percebeu que ele tinha o potencial de colocar em risco seus negócios aqui e no exterior.
Como afirmou o dirigente do MST João Pedro Stedile, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, em agosto de 2021, o grupo empresarial contrário a Jair Bolsonaro já era majoritário.[xxi] Os setores mais significativos ligados à indústria e aos bancos, neste caso, lançaram comunicados cada vez mais frequentes contra a instabilidade institucional, a inoperância e a disfuncionalidade do governo (caracterizado pela má condução da pandemia no novo coronavírus, incompetência administrativa, crise no meio ambiente, inflação e desemprego), fatores que prejudicavam a imagem e as relações comerciais no campo internacional e a economia de maneira geral.
Mesmo o agronegócio, na época, estava rachado, com seus elementos mais importantes se posicionando contra o governo: em manifesto divulgando no ano passado, sete associações (que juntas representam 336 companhias, em sua maioria, multinacionais) pediram “paz e tranquilidade para um desenvolvimento efetivo e sustentável do país”, enquanto que no Instituto Pensar Agropecuária (IPA), que reúne os principais líderes do segmento, das 48 associadas, pelo menos 42 sugeriam uma agenda de “sossego para trabalhar”, ou seja, formas polidas de criticar o governo[xxii]. É claro que isto pode mudar, com a volatilidade do momento político e o tradicional perfil conservador deste setor.
O presidente é muito diferente dos verdadeiros “donos do poder” em termos de origem de classe, perfil ideológico e status econômico. Ele não representa diretamente o agronegócio, o sistema bancário, a mídia corporativa ou o setor industrial, mas os pequenos comerciantes, os empresários varejistas, as alas radicalizadas das polícias civil e militar, os milicianos, os grupos neopentecostais, os grileiros de terra, os madeireiros e os garimpeiros, assim como algumas fatias dos trabalhadores precarizados, defensores de armas e de práticas ilícitas, que pretendem ocupar um espaço na política e na economia à força, por meio de atos ilegais, mas que não só não estão no topo da estrutura social como dificilmente chegarão lá.
Mesmo os apoios econômicos do mandatário brasileiro são muito distintos das experiências tradicionais. Como lembra Ernest Mandel, na Alemanha nazista, “o capital total de todas as sociedades alemãs passou de 18,75 bilhões de Reichsmarks (RM) em 1938 (20,6 bilhões de RM em 1933) a mais de 29 bilhões de RM no fim de 1942; durante este mesmo período, o número de sociedades baixou de 5.519 para 5.404; este número reduziu-se a metade em 1938 (10.437 em 1931 e 9.148 em 1933). Neste capital total, a parte pertencente às grandes empresas – aquelas que tinham um capital de mais de 200 milhões de RM – passou de 52,4% em 1933 para 53,6% em 1939 e para 63,9% em 1942”[xxiii].
Ele continua: “O Estado prosseguiu esta concentração de capital pelos mais variados meios. A cartelização forçada, as fusões sob controle dos ‘dirigentes da economia de defesa’ (leaders for defense economy), a organização de ‘associações nacionais’ (Reichsvereinigung) e de câmaras econômicas regionais (Gauwirtschaftskammer) conduziram à forma suprema de fusão entre o capital monopolista e o Estado fascista. A Sociedade Nacional de Ferro e Aço (Reichsvereinigung Eisen und Stahl) era dirigida pelo industrial do Sarre, Dr. Hermann Roechling; a Sociedade Nacional de Fibras Sintéticas era dirigida pelo Dr. H. Vits, das Indústrias Associadas das Fibras, que dirigia também os “grupos nacionais” (Reichsgruppen) e os ‘comitês principais’ (Hauptausschüsse). Oito destes quinze comitês tinham à sua cabeça representantes diretos do grande capital: Mannesmann, August Thyssen Huette (Fundições August Thyssen), Deutsche Waffen und Munitionsfabriken (Indústria Alemã de Armas e Munições), Henschel-Flugzeugwerke (Construções Aeronáuticas Henschel), Auto-Union, Siemens, Wayss & Freytag, Hommelwerke”.[xxiv]
Já Jair Bolsonaro recebe a adesão de empresários como Luciano Hang (Lojas Havan), Salim Mattar Júnior (empresa de aluguel de automóveis Localiza), Flavio Rocha (Riachuelo), Sebastião Bomfim Filho (Lojas Centauro), Edir Macedo (Igreja Universal), Junior Durski (lanchonetes Madero), Edgard Corona (Bio Ritmo), João Appolinário (Polishop) e Washington Cinel (empresa de segurança Gocil).
No agronegócio, por sua vez, seu principal apoiador é Antonio Galvan, presidente da Aprosoja, que tem uma agenda muito particular (já que aparentemente pretende concorrer ao Senado). Ou seja, ele faz barulho e cria polêmicas, mas segundo fontes reconhecidas do meio ruralista, não é representativo de todo o setor[xxv]. A diferença entre os dois casos (o exemplo “histórico” e o atual) é, de fato, explícita.
O desejo pelo enriquecimento individual, a falta total de comprometimento social, o infantilismo mental, a destituição de preparo profissional sólido e a ausência de qualquer projeto nacional são algumas das características de Bolsonaro e de seus seguidores. O presidente e seus filhos, além disso, consideram o Estado como uma extensão de seu meio privado e tentam usá-lo de acordo com seus interesses particulares. Já os verdadeiros “donos do poder”, na prática, não necessitam de Jair Bolsonaro nem mesmo como um arremedo bonapartista. Ele é, para todos os efeitos, dispensável.
Mesmo a origem política e ideológica do atual mandatário e de seus asseclas é muito distinta daquela dos líderes fascistas italianos. Como afirma Emilio Gentile, “os seus dirigentes provinham da esquerda radical e revolucionária, e haviam participado da contestação antiliberal do período giolittiano, do intervencionismo e da guerra”[xxvi]. Por aqui, no entanto, o presidente e seus ministros, tanto os de extração militar quanto civil, têm origem conservadora (e não na esquerda “radical” e “revolucionária”) e sempre foram defensores de políticas econômicas “liberais”.
É possível que Jair Bolsonaro, em termos pessoais, possa ter inclinações ou simpatias por alguns aspectos do fascismo (como demonstram, há anos, seus atos e discursos recorrentes),[xxvii] mas ele provavelmente está menos influenciado pelo Duce e pelo Führer, do que por personagens nefastos, mesquinhos e sádicos de nossa própria história, sobretudo aqueles ligados à ditadura militar.
Ou seja, seus principais exemplos e modelos são indivíduos como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (um conhecido torturador dos “anos de chumbo”) ou o presidente Emílio Garrastazu Médici, figuras menores a nível mundial, que não têm qualquer elaboração intelectual, e que apenas representavam práticas truculentas e autoritárias que o atual mandatário tanto admira.
É verdade que alguns elementos dentro de sua equipe demonstraram apreço pela retórica e estética do fascismo (ou de setores da extrema direita racista), como o ex-secretário de Cultura Roberto Alvim (que em pronunciamento público proferiu um discurso inspirado em Joseph Goebbels) ou o assessor para assuntos internacionais da presidência Filipe Martins (que fez um gesto característico de grupos supremacistas brancos no Senado).
Vale insistir, entretanto, que há que diferenciar a aparência do conteúdo. Posturas reacionárias e violentas, assim como desejos totalitários, podem ser considerados como parte do que se entende como fascismo (e de como agem suas lideranças), ainda que não representem aspectos únicos deste fenômeno (especialmente aqueles ligados ao Estado e seus objetivos).
Estes elementos “comportamentais” reforçam, por certo, a posição de movimentos ou mesmo de grupos específicos (como o autodenominado e desaparecido “300 do Brasil”, por exemplo) como fascistas ou simpatizantes do nazismo, ao dar a estes (e a seus membros) uma “identidade” própria a partir de ações, rituais e simbologias que remetem diretamente aos exemplos clássicos daquela modalidade política.
Essas dimensões isoladas, contudo, não são suficientes para qualificar um Estado nacional (que tem um grau de complexidade muito grande em sua estrutura geral) como fascista.[xxviii] As variáveis históricas, políticas e econômicas são fundamentais nesse caso. Ou seja, é principalmente na própria história do Brasil que se deve procurar as origens e as características da atual administração.
Mesmo alguns aspectos supostamente “teóricos” que existiam no fascismo (por mais frágeis e incoerentes que pudessem ser) não se apresentam no Brasil comandado por Jair Bolsonaro e sua quadrilha. Intelectuais como Marinetti e D’Annunzio ajudaram a criar o fermento do fascismo italiano, juntando ao mesmo tempo a exaltação ao “futurismo”, com seu culto à velocidade, à maquinaria e à indústria moderna com o “passadismo”, as tradições e a herança ancestral decrépita do império romano[xxix].
O resultado foi a elaboração de uma ideologia em boa medida contraditória e autoritária. No contexto brasileiro contemporâneo, por sua vez, personagens como Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo apenas replicavam ofensas e clichês da extrema direita.
Como diria Ernest Mandel, “é um absurdo caracterizar os movimentos autoritários do mundo semicolonial como ‘fascistas’ simplesmente por jurarem fidelidade a um chefe ou porem os seus membros em uniforme. Num país onde a parte mais importante do capital está nas mãos de estrangeiros e onde a sorte da nação é determinada pela dominação do imperialismo estrangeiro, é um contrassenso caracterizar como fascista um movimento da burguesia nacional que procura no seu próprio interesse libertar-se dessa dominação”[xxx].
Para ele, “mais vale evitar ser fascinado pela ameaça inexistente do fascismo, falar menos de neofascismo e trabalhar mais na luta sistemática contra a tendência muito real e muito concreta da burguesia para o ‘Estado forte’, ou seja, para a redução sistemática dos direitos democráticos dos salariados (através de leis de exceção, leis antigreves, multas e penas de prisão pelas greves selvagens, restrições ao direito de manifestação, manipulação capitalista e estatal das mass media, reinstauração da prisão preventiva etc.).
O fundo de verdade na teoria do ‘fascismo rastejante’ é que ele sublinha o perigo de uma aceitação passiva e não política de tais ataques contra os direitos democráticos elementares que só podem aguçar o apetite da classe dominante e levá-la a novos ataques mais duros… E é justamente porque a tarefa principal hoje em dia não é a luta contra o neofascismo impotente, mas sim contra a ameaça real de um ‘Estado forte’, que é importante evitar a confusão nas ideias”[xxxi].
A avaliação de Mandel pode ser útil aqui. É claro essas opiniões foram emitidas na segunda metade do século passado, em um momento distinto, e que se referiam, por certo, a experiências que não necessariamente eram análogas em termos econômicos e ideológicos ao que se entende por “bolsonarismo” (assim como discutia países caracterizados como “semicoloniais”), mas suas asserções, não obstante, reforçam a ideia de “particularidade” das nações periféricas (neste caso, latino-americanas) em relação ao fascismo original ligado ao contexto temporal e geográfico europeu. Muito do que ele afirmou, assim, pode ser aproveitado para se entender o Brasil na atualidade.
6.
Como bem lembra Martin Kitchen, “a palavra ‘fascismo’ sempre esteve sujeita a diferentes definições e recentemente degenerou em um simples termo de abuso. Denunciar como ‘fascistas’ as ditaduras militares da América Latina, os regimes dos países subdesenvolvidos, as práticas da Metropolitan Police Force… bem pode servir como um potente grito de guerra e provocar uma resposta poderosa, mas não faz nada para revelar a verdadeira natureza dos problemas atacados” [xxxii].
Para ele, “não há uma alternativa simples entre teoria e prática na política, as duas devem estar imbricadas. A teoria deve iluminar e guiar a prática, a qual, por sua vez, deve ser correta e provar a teoria. A história das teorias do fascismo dá lamentáveis exemplos do que acontece quando não se estabelece esta relação dialética. Houve momentos nos quais a experiência deu a resposta correta, mas com um atraso fatal que resultou em que esta percepção tivesse um valor prático limitado. Pelo contrário, a etiqueta de ‘fascista’ foi dada a movimentos que não eram de nenhuma maneira fascistas, de tal forma que não foi possível [preparar] uma defesa adequada contra o verdadeiro fascismo”.[xxxiii]
Segundo o mesmo autor, “a teoria precisa reconhecer a imensa complexidade dos movimentos sociais e, por conseguinte, deve ser flexível e multifacetada, para não reduzir algo complexo a uma fórmula sobressimplificada. Quando se levam em conta todas essas considerações, a teoria se converte em uma poderosa arma política, um guia para a ação e um meio de percepção crítica das forças sociais, que possivelmente não sejam evidentes de forma imediata”.[xxxiv] Sendo assim, “a correta tipologia dos movimentos sociais, longe de limitar e inibir a ação política, deveria estender o alcance e a efetividade desta”.[xxxv]
O governo Jair Bolsonaro, por certo, não é “igual” em diversos aspectos às administrações anteriores, mas muitas de suas posições foram gestadas silenciosamente, no meio social, ao longo dos anos, não como um projeto fascista, mas como a culminação das contradições internas levadas a seu ponto exponencial (ainda que várias de suas características sejam similares a experiências políticas passadas, realizadas por setores que sempre estiveram presentes no país).
Tudo é feito de forma explícita, sem pudores ou justificativas mais sofisticadas. Esse conservadorismo, ao longo das décadas, foi canalizado principalmente pelos neopentecostais (que são mais do que apenas Igrejas; tornaram-se, na prática, grupos empresariais poderosos, com um projeto político próprio) e se adaptou bem aos desígnios do novo presidente, que também precisava de seu suporte financeiro e de sua base de fiéis, potenciais eleitores. Um grupo usou o outro, apoiando-se mutuamente para levar adiante seus interesses políticos.
Que fique claro: este é o pior governo que já tivemos desde o período da redemocratização, e um dos piores de nossa história. Ainda que não seja stricto sensu fascista (mesmo com elementos que aparentemente remetem àquela experiência histórica), continua sendo, não obstante, de extrema direita, autoritário, truculento, agressivo, militarizado e conservador nos costumes, com fortes vínculos com grupos religiosos neopentecostais, milicianos e lumpemburguesia interna.
É ultraliberal na economia, privatizante, entreguista e dependente no campo internacional, vendido aos interesses estrangeiros e controlado pelo imperialismo. Promotor do agronegócio (como as administrações anteriores), tem se mostrado cada vez mais também como um inimigo ferrenho do meio ambiente, aliando-se a grileiros de terra, madeireiros, garimpeiros e todos aqueles que promovem atos ilícitos. E demonstra não ter qualquer projeto nacional. É, portanto, contra um governo com essas características e especificidades que devemos lutar com todas as nossas forças, incansavelmente, neste momento.[xxxvi]
[i] S. J. Woolf, Uma introdução, in: Antônio Edmilson Martins Rodrigues (org.), Fascismo (Rio de Janeiro, Livraria Eldorado Tijuca, 1974), p. 37.
[ii] Robert Paxton, Michael Mann e Umberto Eco são alguns dos que apresentam uma grande quantidade de características heterogêneas para definir o fascismo. Ver Robert Paxton, The Anatomy of Fascism (Nova York, Alfred A. Knopf, 2004); Michael Mann, Fascistas (Rio de Janeiro, Record, 2008); e Umberto Eco, O fascismo eterno (Rio de Janeiro, Record, 2018).
[iii] Para diferentes discussões sobre o governo Bolsonaro e o fascismo, ver os dossiês Marxismo21, “O governo Bolsonaro e perspectivas da esquerda”, disponível em: <https://marxismo21.org/o-governo-bolsonaro-e-perspectivas-de-esquerda/>, e Crítica Marxista, “Extrema direita e fascismo hoje”, n. 50, 2020, disponível online.
[iv] As políticas econômicas “ortodoxas” convencionais do ministro das Finanças Alberto de Stefani, por exemplo, foram depois modificadas após Mussolini se consolidar no poder: a intervenção econômica governamental se ampliou e o livre comércio foi substituído pelo protecionismo e por um Estado corporativo. Alguns autores consideram que os principais componentes econômicos do fascismo seriam o planejamento central, pesados subsídios estatais, protecionismo, elevados níveis de nacionalização, altos gastos governamentais e uma estrutura econômica nacional altamente regulada e integrada. Ver, por exemplo, Stanley G. Payne, A History of Fascism 1914-1945 (Madison: University of Wisconsin Press, 1995).
[v] De acordo com Antonio Gramsci, “o sistema que o governo italiano intensificou nestes anos (prosseguindo uma tradição já existente, ainda que em menor escala) parece ser o mais racional e orgânico, pelo menos para um grupo de países: mas que consequências poderá ter? […] O Estado é assim investido de uma função de primeiro plano no sistema capitalista, como empresa (holding estatal) que concentra a poupança a ser posta à disposição da indústria e da atividade privada, como investidor a médio e longo prazos (criação italiana de vários institutos, de crédito mobiliário, de reconstrução industrial etc.; transformação do Banco Comercial, consolidação das Caixas Econômicas, criação de novas formas de poupança postas etc). […] O Estado é assim levado necessariamente a intervir se os investimentos realizados por seu intermédio estão sendo bem administrados e, desse modo, compreende-se pelo menos um aspecto das discussões teóricas sobre o regime corporativo. Mas o simples controle não é suficiente. Com efeito, não se trata apenas de conservar o aparelho produtivo tal como este existe num determinado momento; trata-se de reorganizá-lo a fim de desenvolvê-lo paralelamente ao aumento da população e das necessidades coletivas”. Ver Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, v. 4, temas de cultura, ação católica, americanismo e fordismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), p. 276-277.
[vi] Como lembra Carlos M. Rama, “no ano de 1934, dizia Mussolini: ‘As três quartas partes da economia italiana repousam nos braços do Estado, se eu quisesse instaurar na Itália, o que não é o caso, o capitalismo de Estado, já teria as condições necessárias, suficientes e objetivas para fazê-lo’. O Estado era o dono da maior parte das ações das grandes empresas”. Ver Carlos M. Rama, La ideologia fascista (Madri, Ediciones Jucar, 1979), p. 65. Em 1939, o Instituto para a Reconstrução Industrial (IRI), controlava 75% da produção de ferro gusa e 90% da indústria de construção naval. Segundo Martin Kitchen, por sua vez, o Estado tinha em suas mãos 99% do carvão, 80% do ferro, 65% do aço e 36,8% do transporte. Ver Martin Kitchen, Fascismo (México, Editorial El Manual Moderno, 1979), p. 47.
[vii] Para uma discussão recente sobre esse tema, ver, por exemplo, João Peres, “Na soja, retrato de um Brasil recolonizado”, Outras Palavras, 14 set. 2020; e Regina Farias e Fátima Gondim, “A privataria elétrica ameaça o Amapá e o Brasil”, Outras Palavras, 2 dez. 2020.
[viii] Segundo Edda Saccomani, o fascismo, à luz das teorias da modernização, se caracterizaria, na economia, por “uma industrialização atrasada, mas intensa, promovida desde cima, com notável interferência do Estado a favor da acumulação”. Ver Edda Saccomani, “Fascismo”, in Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (orgs.), Dicionário de política, Vol. 1 (Brasília e São Paulo, Editora Universidade de Brasília e Imprensa Oficial do Estado, 2000), p. 472. Martin Kitchen, por sua vez, afirma que “o Estado fascista deliberadamente se propôs a estimular a produção, mas o fez em uma forma que favoreceu particularmente a grande indústria”. Ver Martin Kitchen, Fascismo (México, Editorial El Manual Moderno, 1979), p. 52.
[ix] Para uma discussão recente sobre esse assunto, ver, por exemplo, Catarina Barbosa, “Empresas dos EUA lideram interesse estrangeiro em concorrências e licitações no país”, Brasil de Fato, 24 abr. 2021.
[x] José Álvaro de Lima Cardoso, “Brasil: os gigantescos desafios na indústria e tecnologia”, Outras Palavras, 22 fev. 2021.
[xi] Este é um processo que vem ocorrendo há anos e que permanece no atual governo. Ver Luiz Bernardo Pericás, “Monopólios, desnacionalização e violência: a questão agrária no Brasil hoje”, Margem Esquerda, n. 29, 2017, p. 64-6; Naiara Albuquerque e Patrick Cruz, “Sueca AAK, de óleos vegetais, acelera seu avanço no Brasil”, Valor Econômico, 8 mar. 2021; Fernanda Pressinott, “Com sócia espanhola, Agrícola Famosa projeta forte expansão”, Valor Econômico, 4 mar. 2021; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, “Notas sobre a estrutura produtiva da agricultura brasileira”, São Paulo, 30 nov. 2020; e Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 26 de abril de 2021.
[xii] Ibidem, p. 94. Emilio Gentile afirma que “o corporativismo deveria disciplinar de modo paritário as relações entre capital e trabalho: em 1926 fora instituído um Ministério das Corporações; no ano seguinte a Carta del Lavoro anunciara os princípios programáticos do sistema corporativo que deveria realizar a ‘organização unitária das forças da produção’ na base da colaboração de classe para o bem-estar da nação; em 1930 foi instituído o Conselho Nacional das Corporações, que foram instituídas em 1934. O fascismo exaltou o sistema corporativo como a mais importante realização do ‘regime’, a ‘terceira via’ entre capitalismo e comunismo, a resposta moderna e eficiente do fascismo à crise da sociedade contemporânea… No mundo do trabalho, o ‘regime’ conseguiu ampliar sua base de consenso, e portanto de autonomia em relação às forças tradicionais, precisamente com a sua política de massa, com todas as instituições, como a Obra Nacional Dopolavoro, que agiam no terreno assistencial, da previdência e da organização do tempo livre e que dependiam diretamente do Estado, do PNF, dos sindicatos. Estas organizações, observou Palmiro Togliatti em 1935, constituíam uma importante ligação entre o fascismo e as massas”. Ver Emilio Gentile, Itália fascista: do partido armado ao Estado totalitário, in: Emilio Gentile e Renzo de Felice, A Itália de Mussolini e a origem do fascismo (São Paulo, Ícone, 1988), p. 40 e 50. Para mais detalhes sobre o fascismo e os sindicatos, ver também Edward R. Tannenbaum, La experiencia fascista: sociedad y cultura en Italia (1922-1945) (Madri, Alianza Editorial, 1975), p. 119-58. Já Edilene Toledo afirma que o historiador Giulio Sapelli considerava, em relação aos sindicatos, que uma certa forma de representação institucional continuou a existir, “embora não fosse uma representação classista. Este autor considera também que nas pequenas e médias empresas o sindicato fascista teve uma função unicamente repressiva. Já nas grandes empresas, como a Fiat, por exemplo, criou-se uma rede de trabalhadores inscritos nos sindicatos fascistas, contra a vontade dos próprios industriais, que tinham a função de recolher as reivindicações e levá-las à mesa de negociações… Ele considera, portanto, que o sindicato fascista tinha uma função social, porque, embora tivesse uma função repressiva, não se comportasse como um sindicato de classe e proibisse a greve, ele era ainda uma instituição que mantinha viva e evidente a separação entre as classes. Apesar de tudo, a ditadura não podia esconder que, de um lado, estava a Confederação dos Industriais e, do outro, a Confederação dos Sindicatos, embora a ideologia do corporativismo fascista quisesse fazer crer que ambos estavam em pé de igualdade”. Ver Edilene Toledo, “Imigração, sindicalismo revolucionário e fascismo na trajetória do militante italiano Edmondo Rossoni”, in Cad. AEL, Vol. 15, No. 27, 2009, p. 161.
[xiii] Segundo Fred Weston, “na Itália sob Mussolini, formalmente falando, havia ‘sindicatos’. Contudo, eram sindicatos atrelados ao Estado, isto é, instrumentos do Estado. […] De acordo com as estatísticas de 1935, os sindicatos fascistas (incluindo 1.659.000 trabalhadores industriais) tinham 4.042.000 filiados. Havia também 83.000 filiados na Associação Fascista dos Professores; 110.000 filiados na Associação Fascista dos Funcionários Públicos; 99.000 na Associação Fascista dos Ferroviários; 48.000 na Associação dos Trabalhadores dos Correios, e várias outras organizações que reuniam trabalhadores em clubes e associações de ‘ajuda mútua’. No total, as organizações fascistas reivindicavam 12 milhões de filiados, dos quais 1.096.000 eram filiados diretamente ao próprio Partido Fascista. […] Como parte desse processo, o regime promulgou uma lei sobre os sindicatos em setembro de 1934. Esta lei ‘reconhecia’ os sindicatos e lhes dava a incumbência de negociar e de concluir contratos de trabalho. Antes desta lei todos os funcionários dos ‘sindicatos’ eram nomeados a partir de cima, agora eram ‘eleitos’ através das assembleias dos filiados. Esta foi uma concessão necessária, porque o regime necessitava dar aos trabalhadores o sentimento de que esses ‘sindicatos’ lhes pertenciam”. Ver Fred Weston, “Os sindicatos na Itália fascista”, in Esquerda Marxista, https://www.marxismo.org.br/os-sindicatos-na-italia-fascista/.
[xiv] De acordo com o Ponto Newsletter, “desde o início, tem se dito que a pandemia poderia ser usada para produzir medidas autoritárias, tomadas na calada da noite e sem discussão. Foi literalmente o que Congresso fez, aprovando a MP da carteira Verde e Amarela na madrugada de quarta (15), em votação à distância. Como uma pequena reforma trabalhista, trabalhadores entre 18 e 29 anos ou acima de 55 anos, desempregados há pelo menos 12 meses, e trabalhadores rurais poderão ser contratados por até um salário mínimo e meio e, em caso de demissão, receberão apenas 30% do FGTS, em vez dos 40% válidos para os demais contratos de trabalho. As empresas poderão contratar 25% dos trabalhadores por esta modalidade, o que, segundo o Dieese, deve promover o achatamento da média salarial de inúmeras categorias. As empresas terão isenção total da contribuição previdenciária e das alíquotas do Sistema S. Por outro lado, já como resultado de outra MP, mais de um milhão de trabalhadores tiveram seus salários e jornadas reduzidos ou contratos suspensos. A MP 936 permite negociações individuais para reduzir jornadas e salários em até 70% por três meses para trabalhadores com carteira assinada e que recebem até R$ 3.135 ou que tenham ensino superior e ganham mais de R$ 12,2 mil”. Ver Ponto Newsletter, 17 abr. 2020. Ver também Congresso em Foco, “Governo promove revogaço de normas trabalhistas”, UOL, 22 out. 2020; Adalberto Cardoso e Thiago Brandão Peres, “A estreita relação entre o trabalho informal e a covid”, Outras Palavras, 30 nov. 2020; e Eduardo Rodrigues e Lorenna Rodrigues, “Guedes defende ‘flexibilizar’ legislação trabalhista para atender invisíveis”, O Estado de S.Paulo, 8 dez. 2020. Como lembra Marcos Del Roio, a partir das ideias de Antonio Gramsci, o fascismo italiano foi uma revolução passiva, que restaurou o poder das classes dominantes erigindo o predomínio do capital financeiro e fazendo avançar as forças produtivas, incluindo a qualificação dos trabalhadores e ainda a concessão de alguns direitos sociais dentro de um Estado corporativista, enquanto no Brasil atual, ocorre um processo destrutivo do Estado e da economia que deve comprometer a capacidade interna de decisão política do governo. Ver Marcos Del Roio, “A terceira fase do neoliberalismo”, in https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2019/12/Del-Roio-A-terceira-fase-do-neoliberalismo.pdf.
[xv] Emilio Gentile, “Itália fascista: do partido armado ao Estado totalitário”, cit., p. 52.
[xvi] Lincoln F. Secco, “O anticomunismo preventivo”, Maria Antonia, v. I, n. 55, 2020. Disponível em: https://gmarx.fflch.usp.br/boletim55.
[xvii] Idem.
[xviii] Ver, por exemplo, Salomão Ximenes e Fernanda Moura, “Homeschooling prova que Bolsonaro tem projeto para a educação”, in https://noticias.uol.com.br/colunas/coluna-entendendo-bolsonaro/2021/05/31/homeschooling-prova-que-bolsonaro-tem-projeto-para-a-educacao.htm.
[xix] Luiz Bernardo Pericás, “Dois anos de desgoverno: as bases sociais do bolsonarismo”, A Terra é Redonda, 22 abr. 2021. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/dois-anos-de-desgoverno-as-bases-sociais-do-bolsonarismo>. Acesso em: 10 ago. 2021.
[xx] Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 91.
[xxi] Ver José Eduardo Bernardes, “Brasileiros passam fome porque não têm renda, não por falta de produção, diz Stedile”, in Brasil de Fato, 30 de agosto de 2021, https://www.brasildefato.com.br/2021/08/30/brasileiros-passam-fome-porque-nao-tem-renda-nao-por-falta-de-producao-diz-stedile.
[xxii] Ver Viviane Taguchi, “Por que o agro rachou?”, in https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/agronegocio-produtividade-racha-politico/#cover.
[xxiii] Ernest Mandel, Sobre o fascismo (Lisboa, Edições Antídoto, 1976), p. 59-60.
[xxiv] Idem.
[xxv] Ver Viviane Taguchi, “Por que o agro rachou?”, in https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/agronegocio-produtividade-racha-politico/#cover.
[xxvi] Emilio Gentile, “Itália fascista: do partido armado ao Estado totalitário”, cit, p. 24.
[xxvii] Um sloganconstantemente utilizado por Bolsonaro é “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, possivelmente inspirado no verso “Deutschland über alles” (“A Alemanha acima de tudo”), que pode ser encontrado na canção “Das Lied der Deutschen” (A canção dos alemães), usada pelos nazistas. O presidente também utiliza uma retórica racista, anticomunista e promove desfiles de motocicletas para imitar Mussolini. Ou seja, na “aparência”, é possível encontrar elementos usados por Bolsonaro que se assemelham àqueles promovidos pelo fascismo histórico.
[xxviii] Nesse sentido, Atilio Borón comenta que “caracterizar o novo governo de Jair Bolsonaro como ‘fascista’ se tornou um lugar comum. Isto, a meu ver, constitui um erro grave. O fascismo não deriva das características de um líder político, por mais que em testes de personalidade – ou nas atitudes da vida cotidiana, como no caso de Bolsonaro – se comprove um esmagador predomínio de atitudes reacionárias, fanáticas, sexistas, xenofóbicas e racistas. […] Descartada essa visão, há aqueles que insistem que a presença de movimentos ou inclusive partidos políticos de clara inspiração fascista inevitavelmente marcarão de modo indelével o governo de Bolsonaro. Outro erro: tampouco são eles que definem a natureza profunda de uma forma estatal como o fascismo. No primeiro peronismo dos anos 40, assim como no varguismo brasileiro, pululavam nos círculos próximos ao poder várias organizações e personagens fascistas ou fascistóides. Mas nem o peronismo nem o varguismo construíram um Estado fascista. O peronismo clássico foi, usando a conceitualização gramsciana, um caso de ‘cesarismo progressivo’, e só observadores muito bitolados puderam caracterizá-lo como fascista devido à presença de grupos e pessoas vinculadas a essa ideologia. Eles eram fascistas, mas o governo do Perón não foi. Voltando à nossa época: Donald Trump é um fascista, falando de sua personalidade, mas o governo dos Estados Unidos não é./ A partir da perspectiva do materialismo histórico, o fascismo não é definido por personalidades nem grupos. É uma forma excepcional do Estado capitalista, com características absolutamente únicas e irrepetíveis, que irrompeu quando seu modo ideal de dominação, a democracia burguesa, enfrentou uma gravíssima crise no período entre a Primeira e a Segunda Guerra mundiais. Por isso dizemos que é uma ‘categoria histórica’ e que já não pode ser reproduzida porque as condições que tornaram possível seu surgimento desapareceram para sempre”. Ver Atilio Borón, “Caracterizar o governo de Jair Bolsonaro como ‘fascista’ é um erro grave”, in Brasil de Fato, https://www.brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-caracterizar-o-governo-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-grave/.
[xxix] De acordo com o jornalista peruano José Carlos Mariátegui, “na ordem exterior, o futurismo se declarava imperialista, conquistador, guerreiro. Aspirava uma anacrônica restauração da Roma Imperial. Na ordem interna, se declarava antissocialista e anticlerical. Seu programa, em suma, não era revolucionário, mas reacionário. Não era futurista, mas passadista. Concepção de literatos, se inspirava somente em razões estéticas… O futurismo é um dos ingredientes espirituais e históricos do fascismo. A propósito de D’Annunzio, disse que o fascismo é d’annunziano. O futurismo, por sua vez, é uma face do d’annunzianismo. Melhor dito, d’annunzianismo e marinettismo são aspectos solidários do mesmo fenômeno”. Ver José Carlos Mariátegui, “Marinetti e o futurismo”. In: José Carlos Mariátegui, As origens do fascismo (organização, tradução, prefácio e notas, Luiz Bernardo Pericás,São Paulo, Alameda, 2010), p. 237 e 239.
[xxx] Ernest Mandel, Sobre o fascismo, cit., p. 70.
[xxxi] Ibidem, p. 72, 74-5.
[xxxii] Martin Kitchen, Fascismo (México, Editorial El Manual Moderno, 1979), p. 1.
[xxxiii] Idem.
[xxxiv] Ibidem, p. 2.
[xxxv] Idem.
[xxxvi] Versão do artigo publicado originalmente em Margem Esquerda, No. 37, segundo semestre de 2021, p. 84-101 e no livro de Luiz Bernardo Pericás, Milton Pinheiro e Antonio Carlos Mazzeo (orgs.). Neofascismo, autocracia e bonapartismo no Brasil. São Paulo: Instituto Caio Prado Júnior, 2022, p. 143-161.