18 Março 2024
Os dois anos de agressão bélica russa contra a Ucrânia (24 de fevereiro de 2022) motivaram muitos comentários políticos, mas também religiosos.
O comentário é de Lorenzo Prezzi, publicado por Settimana News, 12-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja Anglicana escreveu: “A guerra na Ucrânia diz respeito não apenas ao futuro da integridade territorial e da soberania da Ucrânia, mas também a todo o quadro estratégico da Europa pós-Guerra Fria e, mais em geral, à forma futura da ordem internacional liberal baseada nos valores que prevaleceram desde 1945”.
A comissão dos episcopados europeus (Comece), por meio das palavras de seu presidente, Dom Mariano Crociata, observou: “A ameaça mais grave nesta fase, e cada vez mais perigosa com o passar do tempo, é o costume, o cansaço, o hábito em relação a uma guerra que muitos esperam que fique limitada às regiões onde ela se desenrola na ilusão de poder continuar tranquilos”.
Não faltou voz das Igrejas ucranianas, divididas canonicamente (entre a Igreja autocéfala de Epifânio e a Igreja não autocéfala de Onofre) e confessionalmente (entre ortodoxos e católicos).
Em uma homilia de 24 de fevereiro, o primaz Onofre sublinhou a surpreendente unidade do país na resposta à invasão militar russa, lamentando, no entanto, a política eclesiástica do governo que, há um ano, penaliza a presença de sua Igreja.
Epifânio, por sua vez, não se expressou com palavras, mas decidiu, junto com seu Sínodo, eliminar do santoral uma das figuras mais caras ao patriarca russo, a saber, Alexandre de Novgorod (Nevsky).
O texto mais refletido e argumentado foi a carta pastoral da Igreja Greco-Católica que, com seus quatro milhões de fiéis e sua inatacável coerência durante as perseguições soviéticas, representa muitas vezes a voz cristã mais confiável.
“Carta pastoral sobre a guerra e a paz justa no contexto das novas ideologias”: esse é seu título. O início contém uma citação de Jeremias: “Livrai os oprimidos das mãos do opressor” (23,3). Após dois anos de guerra ou, melhor, de 10 anos desde a ocupação da Crimeia e do Donbass (2014), há a necessidade de perseverar na luta, enquanto o apoio internacional, embora presente, carece de “compreensão da profundidade e da gravidade dos eventos com a esperança de uma solução fácil para o conflito”.
A argumentação se desenvolve em sete partes, 67 pontos e cerca de 20 páginas.
As partes: 1) “Causas e fontes da atual guerra da Rússia contra a Ucrânia”; 2) “Do ‘mundo russo’ ao ‘racismo’, o caminho de degradação do Estado agressor”; 3) “Resistência não violenta”; 4) “Guerra de defesa e legítima defesa”; 5) “Neutralidade em tempos de guerra”; 6) “Objetivo de legítima defesa e de uma paz justa”; 7) “Conclusões”.
A agressão russa é herdeira dos regimes totalitários do século passado, da tirania com seu desprezo pela liberdade. Regimes fortalecidos pela capacidade técnica de controlar o comportamento social, dando ao indivíduo a ilusão de um espaço de liberdade que, na realidade, é condicionado pela lealdade ao poder.
A Alemanha de Hitler foi derrotada, e o povo alemão reconquistou a democracia. Não foi assim com a Rússia. Foram necessários 40 anos de Guerra Fria para o colapso do regime de Moscou.
A Ucrânia, independente desde 1991, vale-se de algumas forças positivas para sua identidade nacional. Entre elas, está a Igreja Greco-Católica, que, junto com outras, desenvolve a sociedade civil, o que se tornou evidente na “Revolução Laranja” de 2004 e na “Revolução da Dignidade” de 2014.
O erro do Ocidente foi o de não prosseguir imediatamente a “descomunização” do sistema oriental, apostando na força natural da economia de mercado e ignorando os venenos antilibertários que usavam os resultados econômicos e científicos para construir um novo conflito. “O totalitarismo soviético não só evitou sua Nuremberg, mas a comunidade internacional também não desenvolveu os mecanismos para identificar rapidamente a ameaça e responder a uma possível repetição da tragédia do século XX.”
Em sua nova roupagem, a tirania russa podia abandonar as formas mais graves da brutalidade e, sobretudo, abrir mão progressivamente da ideologia dos textos “sagrados” em favor de um niilismo cujo objetivo é a corrupção, a desumanização, a cegueira moral.
Neste ponto, o que importa é a força, o culto ao líder, o militarismo, a fim de implementar a superioridade da nação. Seu resultado é uma consciência de casta compartilhada. A palavra apropriada é “racismo”.
Desprovido de referências doutrinais, o novo poder totalitário pode usar a tecnologia a seu favor. A revolução digital e a “pós-verdade” permitem-lhe assumir uma forma híbrida e pós-moderna.
Mas sua raiz profunda está ancorada na herança colonizadora da Rússia, do Império Russo. Seu corolário é a “completa destruição do Estado ucraniano e da identidade ucraniana como tal”.
Os apelos ao compromisso que às vezes surgem na comunidade internacional mostram uma fraca compreensão dos fatos e tornam-se irrealistas, senão imorais.
Um militarismo imperial cego encontrou sua “visão” graças à Igreja Ortodoxa Russa, que, por meio da concepção do “mundo russo” (Russkij Mir), cultivou uma verdadeira ideologia genocida das outras identidades. Fruto venenoso da liderança ortodoxa, a ideologia do “mundo russo” minou profundamente a credibilidade do cristianismo.
Agora muitos entendem isso, mas foi necessária uma agressão militar para perceber a pretensão de uma agressão bélica injustificável que se tingia de messianismo. Não por acaso, 350 teólogos ortodoxos denunciaram a agressão como desprovida de qualquer justificação, um novo cesaropapismo. “No fim, essa doutrina pseudocristã degradou-se em uma completa ideologia do racismo, com seu culto ao líder e aos mortos, um passado mitificado, o corporativismo típico do fascismo, a censura total, as teorias da conspiração, a propaganda centralizada e uma guerra que visa à destruição de outra nação.” Depois da “santa Rússia” e da “terceira Roma”, estamos na “guerra metafísica”.
Quem paga a conta é o diálogo ecumênico, forçado a se tornar “diálogo a todo o custo”, em vez de “diálogo na verdade”. Resultado coerente de um relativismo ético que já não distingue mais a verdade da mentira.
Existe na história da Igreja uma corrente de resistência não violenta que aceita morrer em vez de recorrer à violência. Na tradição ucraniana, foi o caso dos príncipes Boris e Gleb.
No século XX, diante do fantasma da guerra nuclear, reapareceram movimentos pacifistas ancorados na benevolente lucidez dos textos do Concílio Vaticano II e do próprio Catecismo da Igreja Católica. “Essa tradição de resistência não violenta tornou-se uma parte importante da experiência espiritual da humanidade, mas não pode ser considerada a única enraizada em uma justificação evangélica.”
As Escrituras e a tradição não abolem o dever do Estado de proteger a vida e a liberdade de seus cidadãos. Existe um uso legítimo da força, que é diferente da violência cega e injustificada. Até o apelo ao perdão pode tornar-se ambíguo quando significa se submeter ao mal.
Sem verdade, o pacifismo ideológico significa consentir com o mal. “O agressor, de fato, chega à conclusão de que sua violência se torna um direito”, e a lei do mais forte substitui o direito internacional. Exatamente o que aconteceu às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Em 1994, a Ucrânia concordou, no memorando de Budapeste, em renunciar às armas nucleares com base em garantias asseguradas pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha. Se hoje se admite que esse gesto de responsabilidade e de confiança não seja honrado, justifica-se que o acesso às armas nucleares seja a única garantia da segurança dos Estados. E se ignora o grito das vítimas inocentes de massacres indiscriminados perpetrados pelos russos nos territórios ucranianos.
A oposição à agressão armada faz parte da doutrina eclesial da guerra justa. Para defender o próximo e a própria sobrevivência, é necessário opor-se à agressão armada.
Na consciência dos povos, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, toda agressão contra a integridade territorial e à independência política de um Estado é considerada ilegal e imoral. João XXIII, os textos conciliares e o Catecismo da Igreja Católica, embora com muitas cautelas, também legitimam a defesa armada contra o agressor injusto.
O Papa Francisco adverte contra uma interpretação ampla demais da legitimidade da defesa e “talvez indique a necessidade de desenvolver critérios ainda mais claros e precisos para uma legítima defesa que impeçam que o agressor se finja de vítima”.
A neutralidade pode ser escolhida para evitar o agravamento do conflito, mas ela também apresenta ambiguidades traiçoeiras. Pode se tornar a traição dos próprios valores e princípios, a negação da necessária solidariedade à família das nações. Em suma, transformar-se em um apoio passivo à injustiça do crime. “A agressão contra a Ucrânia não é uma luta por um território disputado: é um ataque ao direito internacional e um crime contra a paz.”
Agressor e agredido não podem ser tratados de forma simétrica. Aqui se abre a delicada relação entre a Igreja Greco-Católica e a diplomacia do Vaticano. Em relação ao Vaticano, o texto fala de uma neutralidade positiva que não se limita a observar, mas tenta facilitar o diálogo entre as partes em conflito. Há, portanto, uma neutralidade negativa e uma neutralidade positiva. Mas os bispos especificam ainda mais entre neutralidade moral e neutralidade diplomática.
A Santa Sé, além de facilitar os diálogos, não confunde agressor e agredido, não se limita a uma diplomacia formal, mas alimenta a diplomacia moral e seus princípios inalienáveis. O bispo de Roma conjuga a linguagem da fé, reconhecendo o mal onde ele se esconde, mas não renuncia às palavras de verdade da denúncia.
A defesa legítima visa a uma paz justa. É justa aquela paz que é conforme ao direito e às leis, mas que visa à misericórdia e à reconciliação. Tem pouco a ver com a proposta sugerida de uma “paz mínima”: abandonar os territórios conquistados pelos russos e pôr uma pedra em cima. Uma paz justa significa a restauração do direito internacional, da integridade territorial, a condenação dos responsáveis pelos crimes de guerra, assim como a cura das feridas do conflito em vista a relações renovadas com a Rússia. A perspectiva de uma paz justa é aquela que parte das vítimas.
A Igreja, mãe e mestra, também é um lugar da profecia para consolar os agredidos, submetidos a provações duríssimas. Os cristãos do mundo devem se dar conta de que o que está em jogo não é um conflito territorial, mas sim os fundamentos da civilização.
Os novos meios de informação devem ser utilizados para impedir o relativismo moral de quem se recusa a ver as atrocidades cometidas pelos russos, reféns da “pós-verdade”. “‘Não permitam que os fortes destruam o homem’ é o apelo da Igreja de Kiev à consciência do cristão para o maior desenvolvimento do ensino social da Igreja.” Sem a paz de Deus e o vínculo moral do Decálogo, o desenvolvimento da atual guerra de agressão com o uso de armas nucleares poderia ser o túmulo da convivência humana.
O texto dos bispos alcança pontos altos de grande intensidade quando reconhece a raiz de casta e de raça da relação da ideologia russa com o povo ucraniano, considerado indigno de sua própria identidade e material amorfo a ser explorado pelo renovado império de Moscou.
Isso ocorre quando denuncia a incapacidade do Ocidente de ver os elementos de perigo para o equilíbrio mundial que cresceram gradualmente ao longo das décadas da política do Kremlin. Uma obtusidade ligada à diminuição da tensão moral e a um crescente relativismo ético.
A denúncia do compromisso da Igreja Russa foi particularmente contundente. Prisioneira do etnofiletismo, de forçar o Evangelho em uma gaiola étnica e em um projeto político, a Igreja de Moscou põe em risco a credibilidade de todo o cristianismo.
É de grande delicadeza a defesa do papel do papado e da ação da Santa Sé em um contexto local tentado pela rebelião e pela denúncia devido às supostas ambiguidades da posição de Francisco.
Há também perguntas que permanecem em aberto. A denúncia legítima da Rússia pode ignorar a linha de fratura que marca historicamente o território ucraniano e sua função como elo de choque com a civilização eslava? Será sensato não distinguir a atual liderança da Igreja Russa no que diz respeito a seu testemunho secular de martírio, de espiritualidade e de reflexão teológica? Como não notar, no texto, a ausência do difícil complexo de relações entre confissões cristãs e dentro delas (o cisma intraortodoxo)? Não como uma simples narração dos fatos, mas como capacidade de projeto para o futuro?
O redesenho dos equilíbrios mundiais tem protagonistas (China, Índia, Brasil etc.) que denunciam insuficiências que já não são mais toleráveis nos equilíbrios atuais. A multiplicação das perguntas atesta, porém, a profundidade da reflexão e do testemunho dos bispos da Igreja Greco-Católica.
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Greco-católicos ucranianos: denúncia, discernimento e orientação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU