07 Novembro 2023
"Não dá para ficar em silêncio diante de tragédias assim como a que está sendo submetido o povo da Palestina. A prática do extermínio agride a humanidade inteira, extrapola as mazelas que a maioria sofre constantemente e assim mesmo vai levando a vida", escreve Cândido Grzybowski, doutor em Sociologia pela Sorbonne, e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, em artigo publicado por seu blog Sentidos e Rumos, 05-11-2023.
Eis o artigo.
Na busca de “Sentidos e Rumos” – tarefa de síntese que me atribui como pensador e ativista nesta fase da vida – cheguei num monumental impasse nestes dias, anunciado na dúvida que está no título da presente postagem. Sei que o ódio e o genocídio são práticas recorrentes na história da humanidade. Não tenho certeza, mas acho que todos os povos tiveram e têm seus momentos de explosão dos ódios e da prática do genocídio. No entanto, nunca duvidei que existe um certo senso comum de que compartimos a mesma humanidade, apesar de sermos obrigados a conviver com intolerâncias, racismos, ódios, violência e assassinatos e extermínios coletivos, de maior ou menos intensidade, como se fosse um modo de conviver. Não preciso ir muito longe neste quesito, pois o Brasil é até uma nação emblemática mundialmente de prática de ódio e genocídio larval escancarado contra as grandes periferias urbanas e rurais, os nossos “guetos”, junto com o quase extermínio dos Povos Originários, ainda hoje lutando pelo seu direito aos territórios usurpados.
A dúvida que me assalta é pelo que está acontecendo na guerra entre o Estado de Israel e o Hamas, entre israelenses e palestinos. Estamos diante de um genocídio transmitido ao vivo diariamente, nos mais diversos canais, que nos tornam testemunhas da mais um caso de odienta barbárie contra um povo inteiro, que somos capazes de produzir. Além da brutalidade do ataque sem nenhuma consideração com os civis, particularmente as crianças mortas junto com suas famílias, a guerra impacta dolorosamente por não termos muito como agir diante disto, além de gritar. Como é possível tal violência exterminadora, ainda mais sendo praticado pelo povo judeu que sofreu o holocausto naquele horrível contexto do nazismo?
Aqui cabe, antes de tudo, um esclarecimento. Não dá para confundir o judaísmo com o sionismo. O judaísmo é uma cosmovisão sobre a origem o Planeta, da vida e da finalidade da humanidade, um modo de ver e praticar a vida em coletividade, uma religião e uma potente cultura, uma das três grandes tradições monoteístas na história. O sionismo, ao contrário, não passa de uma ideologia de poder e uma forma de dominação, que se desenvolveu no seio do povo judeu diante de tudo que sofreu ao longo dos séculos. A seu modo, o sionismo é uma concepção de domínio, racista, excludente e destruidora, nada a ver com a vibrante cultura judia a não ser pelo fato de ser abraçada por grupos de judeus. O bloco na frente do poder estatal em Israel é composto por sionistas assumidos, de uma direita extrema que declara abertamente a intenção do extermínio dos diferentes, no caso os palestinos em particular, mas extensivamente os povos árabes na sua volta, em geral de tradição cultural e religiosa islâmica.
O que assistimos nestes dias, no confronto entre Israel e o povo palestino, é mais uma expressão de política sionista, com hegemonia política, em ação. Com a justificativa de destruir a organização extremista do Hamas e seu ataque surpresa em 7 de outubro, o Estado de Israel, invasor e colonizador, está bombardeando sistematicamente tudo, em especial o “gueto de palestinos” na faixa de Gaza, criada com a colonização brutal do povo palestino e seu território, desde o século passado. Pior ainda, o poder imperial euro-americano é o grande aliado e o fornecedor das armas para tal carnificina! Qualquer resolução no Conselho de Segurança da ONU não passa, devido ao poder de veto de EUA e seus aliados.
Não se trata de considerar legítima a ação do Hamas e de nenhum grupo de ação violenta. Mas é fácil acusar um grupo assim como terrorista e sua forma de agir, sem ver a violenta dominação e o extermínio abominável, imposto por Israel e sua elite estatal ao povo palestino colonizado. Considerar um povo inteiro como culpado por defender o seu direito de viver, com sua cultura e religião, no que foi seu território, é praticar o apartheid como forma de política de Estado. Simplesmente aterrador que isto esteja acontecendo, pois é uma agressão também à maior parte dos povos que compõem o mundo hoje. Basta ver a solidariedade aos palestinos que vem sendo demonstrada nas ruas e nas redes sociais pelo mundo inteiro, até à revelia dos governos de turno nos seus países.
Não é o primeiro genocídio em grande escala a ocorrer. Já houve outros com a mesma intensidade ou até pior. Mas por que a humanidade é incapaz de avançar e saber compartir o Planeta Terra entre todos os povos e de evitar isto? Será que a fabulosa diversidade humana é o problema? Ou a falta de humanidade dos que se consideram superiores e os únicos com direito de tudo dominar segundo a sua força bruta e seus interesses?
Enfim, sinto-me em estado de choque. Nascido em Erechim, no Rio Grande do Sul, de colonos poloneses católicos, quando criança tive a oportunidade de conviver com judeus, que tinham uma grande comunidade em torno ao distrito de Quatro Irmãos, na época. Por sinal, muitos deles falavam polonês, língua familiar para mim também. Mas a questão da perseguição aos judeus e, sobretudo, o extermínio praticado pelo nazistas e fascistas fui compreendendo com o avanço dos meus estudos. Aí comecei a admirar muitos intelectuais judeus de esquerda, de grande envergadura, que tenho como referência nas minhas reflexões e escritos. Mas não conheço em profundidade a grande história do povo judeu. Nem conheço adequadamente a questão palestina em si. Só sei que extermínio não é solução para ninguém, tanto os que são colonizados, exterminados ou expulsos de seu território, como os exterminadores dominantes, por mais que gerações passadas tenham tido que sofrer a diáspora por séculos.
Não existe nenhum povo ou cultura superior. Afinal, o que é ser superior? Ter exército poderoso e arma atômica? Ter o domínio da economia, feita de exploração do trabalho humano de muitos, colonização e extrativismo destruidor, como é o sistema capitalista dos últimos séculos?
Como pensador, analista e ativista, me engajo em busca de transformações democráticas ecossociais, que se assentem em princípios e valores éticos do cuidado, da convivência e do compartilhamento entre todas e todos no Planeta Terra. Isto comungo com muitos grupos civis de ativistas pelo mundo inteiro, movimentos sociais, coalizões, redes e fóruns civis. Mas em nenhum lugar temos o poder estatal efetivo e, ouso dizer, nunca teremos. No entanto, defendemos que só as cidadanias, em sua fantástica diversidade de povos, culturas, visões, tem a legitimidade instituinte e constituinte do poder estatal, como poder mandatado pela cidadania para regular o conjunto da economia, vida social e política, cultural, em nome do interesse comum. Assim, nossa capacidade se baseia na defesa de uma ordem ética, política e humanitária, onde a democracia includente e intensa ainda é a melhor forma de viver. Nossas armas são apenas argumentos em paciente trabalho de educação, diálogo e trocas, debates e disputas de valores e ideias na esfera da sociedade civil, sem violência.
Nossos atos mais impactantes são mobilizações e grandes manifestações nas ruas e espaços públicos, desde os territórios em que vivemos. Bem, consideramos fundamental participar do poder estatal para moldá-lo ao interesse comum. Não cansamos da disputa de ideias e narrativas, tanto afirmativas como as que enfrentam as ideias individualistas, autoritárias, fascistas, de defesa de interesses privados ou de grupos específicos. Temos como lema a liberdade e a igualdade na diversidade de todas e todos, grupos e povos, Norte, Sul, Leste ou Oeste, que formamos a humanidade. Nenhum grupo ou povo é melhor que outro. Ninguém pode reivindicar direitos adquiridos, pois os direitos são definidores da própria condição de compartir humanidade ou não são, não passam de privilégios que acabam legitimando dominações e exclusões.
Sei que esta postagem é um desabafo angustiante. Mas não dá para ficar em silêncio diante de tragédias assim como a que está sendo submetido o povo da palestina. A prática do extermínio agride a humanidade inteira, extrapola as mazelas que a maioria sofre constantemente e assim mesmo vai levando a vida. Aí, neste contexto entre o poderoso Estado de Israel e o despoliado povo palestino, novamente beiramos o abismo da barbárie total de uma parte sobre outra. Será a guerra total a única forma de resolver nossas legítimas e vitais diferenças? Termino afirmando que a vida, toda vida, se sustenta na diversidade! Prezemos, fortaleçamos e defendamos a diversidade, talvez a condição única para a humanidade não se autodestruir com as ideologias excludentes que nos contaminam, destruindo a nós mesmos e o próprio Planeta, nosso “paraíso” no aqui e agora!
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