“Desde Hitler, sabemos que a ideologia não é só ideologia”. Entrevista com Slavoj Žižek

Fonte: Wikimedia Commons

24 Fevereiro 2023

Ele é a estrela da filosofia, e seu método - em que Marx e a psicanálise de Lacan se misturam com os exemplos de séries, filmes e romances populares, sejam eles Matrix, Os Invasores de Corpos, a ópera Parsifal ou a série de detetives Castle - criou uma escola. O esloveno Slavoj Žižek (Ljubljana, 1949), um histrião de discurso imparável e sempre brilhante, diretor internacional do Instituto Birbeck para as Humanidades, da Universidade de Londres, publica na Espanha Hegel y el cerebro conectado (Paidós), uma reflexão sobre a futuro da condição humana, em um momento em que Elon Musk quer conectar cérebros a computadores, e Incontinencia del vacío (Anagrama), sobre filosofia, diferença sexual e crítica da economia política. Žižek conversou por videoconferência com La Vanguardia.

A entrevista é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, 23-02-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Covid, guerra, crise climática, populismo... As crises que vivemos estão relacionadas?

Todas são momentos da expansiva reprodução do capitalismo global atual. Não quero utilizar a palavra neoliberalismo porque concordo com meu amigo Yanis Varoufakis em que o capitalismo de hoje é menos neoliberal do que pensamos, está mais próximo do neofeudalismo. Algumas megacorporações privatizam campos inteiros de bens comuns. Agora, no Twitter, Elon Musk decide.

Antes da pandemia, a linha oficial era a de que os impostos não podiam subir, não podíamos gastar muito, seria uma catástrofe econômica. Você tem noção de quanto dinheiro foi impresso para controlar os efeitos da pandemia? Não confie nos dogmas neoliberais. E se imprimimos tanto para a covid e para a guerra, também podemos imprimir para a saúde.

Não estou dizendo que devemos abolir o capitalismo, ele é muito produtivo. Contudo, em uma situação de guerra, aquecimento, epidemias, é possível. A crise sanitária no Reino Unido já significa urgências atendidas em 20 horas ou mais. A catástrofe está aqui. E o Estado deve intervir brutalmente. Em uma guerra, você não pode esperar que o mercado lhe traga as armas.

Eu diria que, até certo ponto, o capitalismo está abolindo a si mesmo, em uma direção que não pode ser justificada com o que chamam de racionalidade de mercado. Talvez Elon Musk tenha inventado alguma coisa, mas antes do erro do Twitter juntou 300 bilhões de dólares, mais do que o PIB de muitos países. Não é possível dizer que essa riqueza reflete a sua criatividade. O mercado sozinho funciona mal.

De qualquer forma, nos últimos dois anos, as políticas econômicas já quebraram muitos tabus.

O teórico social-democrata alemão Streeck disse que o problema é que, hoje, o capitalismo está se desintegrando, mas não no sentido marxista, mas sim em algo que pode ser pior. O razoável é reforçar o que Peter Sloterdijk chama de democracia social objetiva: que a educação gratuita e a saúde universal façam parte da ordem constitucional, independente de quem estiver mandando.

Para isso, o próximo passo necessário é controlar os enormes fluxos de dinheiro que circulam livremente. Ao mesmo tempo, precisamos de novas formas de globalização real. Para uma megacrise ecológica, só convém uma resposta coordenada ou retornaremos a uma versão pior do capitalismo, com pequenos bolsões de riqueza cercados de pobreza e caos.

Cooperar parece difícil diante de uma guerra fria com a China e com a Rússia invadindo a Ucrânia.

É uma catástrofe, mas não é apenas um conflito entre a Rússia, a China e o Ocidente liberal. Há uma fissura que atravessa todos os países. Lembre-se dos apoios de Putin no Ocidente, Le Pen, suas relações com Trump.

O capitalismo liberal está em crise há duas décadas, desde o 11 de Setembro. Wang Huning, autor próximo a Xi Jinping, escreveu um livro fantástico: America Against America. Ele diz que admira o dinamismo dos Estados Unidos, mas que viu nele uma catástrofe social.

Hoje, temos dois tipos de capitalismo, autoritário e populista, contra a democracia liberal padrão, e é um conflito global. Há alguns meses, Trump disse que se o povo é traído pelas elites, tem o direito de tomar o poder com violência. Isso significa que também nos aproximamos, no Ocidente, de alguma forma de guerra civil. E o que mais me preocupa é o destino do sul global. Não subestime o impacto da propaganda russa lá.

Quando Putin diz que está lutando pela alma da Rússia, a ideologia é real ou uma mera desculpa?

Muitos realistas dizem que toda essa loucura religiosa ortodoxa é apenas para conquistar um pedaço da Ucrânia. É uma visão ingênua. Desde Hitler, sabemos que a ideologia não é só ideologia. O antissemitismo podia ser uma desculpa para a expansão, mas milhões foram sacrificados. A estratégia russa é conseguir mais do que um pedaço da Ucrânia. Putin repetiu, há um dia, que é um regime neonazista. Como tolerá-lo? Lutam para reconstruir alguma forma de império.

Outro perigo que denuncia é o autoritarismo digital.

A liberdade que os meios de comunicação digitais nos dão é uma falsa liberdade, tudo é controlado por algoritmos que nos empurram para certas direções. O horror para mim é que, nos bons velhos dias do totalitarismo, ao menos sabíamos que éramos controlados. Agora, o horrível é que, onde se pensa que é livre, somos controlados, regulados e manipulados. A não liberdade mais horrível é aquela que você experimenta como liberdade.

Elon Musk fala em conectar cérebros a computadores. Seremos semideuses ou servos?

Se for bem-sucedido, perderemos o que usualmente designamos como liberdade humana. Não só controlaremos máquinas, também seremos controlados. E, ao final, os meios de comunicação digitais fazem parte de certa realidade. Yuval Harari disse que o perigo imediato é que os computadores não nos controlarão diretamente, mas que existirão pessoas que controlarão os computadores e outras que serão controladas por eles. A luta social permanece aí.

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