Dowbor vê o ocaso do capitalismo (1)

Capitalismo | Foto: unsplash

02 Setembro 2022

 

Em livro no prelo, economista sustenta: exploração já não se dá como descrita por Marx. Um tecno-rentismo captura a riqueza dos 99% sem investir ou gerar trabalho. Mas é destrutivo, multiplica crises e abre brecha para novo projeto emancipatório.

 

A resenha é de Antonio Martins, jornalista, sobre o livro Resgatar a função social da economia, de Ladislau Dowbor, publicado conjuntamente pela Editora Elefante e Outras Palavras. O texto é publicado por Outras Palavras, 30-08-2022.

 

Resgatar a função social da economia: uma questão de dignidade humana

 

Eis o texto.

 

Em seus últimos anos de vida, o sociólogo Immanuel Wallerstein, que morreu em 2019, anteviu o colapso do capitalismo. Autor da teoria dos sistemas-mundo, ele percebeu que a ordem eurocêntrica estava submetida a tensões às quais não resistiria – e julgou que, ao desabar, ela tornaria insustentáveis as lógicas do capital. Numa série de ensaios curtos, porém muito provocadores, Wallerstein, contudo, advertiu: não comemorem cedo demais. O sistema que se instalará sobre os escombros do atual, considerou, pode ser muito mais explorador, hierárquico e devastador da natureza que o atual. O contrário também é possível… As lutas sociais e políticas é que decidirão o desfecho.

 

O livro mais recente do economista Ladislau Dowbor, que começa a circular nos próximos dias, vislumbra esta mesma transição incerta, mas a aborda a partir de outro ponto de vista: o das relações econômicas e políticas. Suas hipóteses centrais são igualmente instigantes. O capitalismo está morrendo, diz o autor, porque seu modo de expropriar a riqueza social deixa de ser hegemônico. A indústria já não é o centro da criação de valor. Por isso, a exploração não pode ter como mecanismo principal a mais-valia extraída dos trabalhadores. E à medida em que este processo declinou, emergiu um outro: o rentismo contemporâneo. Por meio de uma série de mecanismos, uma elite cada vez mais reduzida captura a riqueza social sem investir, empregar ou produzir.

 

As consequências são devastadoras. Em todo o Ocidente, a desigualdade disparou a ponto de 26 bilionários concentrarem mais riqueza que metade da humanidade. Parcelas cada vez mais vastas da população estão desempregadas, precarizadas ou desalentadas. A fome está de volta. As patentes bloqueiam o acesso das populações até mesmo às vacinas. Corporações sem rosto devastam a natureza e zombam do colapso climático sem sofrer danos. O novo sistema, mostra Ladislau, pode de fato despertar saudades do “velho” capitalismo.

 

Mas as engrenagens do novo horror são frágeis e vulneráveis. Apesar dos imensos avanços da tecnologia, as economias não crescem. Mesmo empanturrados de riquezas, os mercados financeiros permanecem sujeitos a crises prolongadas e potencialmente devastadoras. A instabilidade espraia-se para a política: as maiorias já não se sentem representadas pelos velhos sistemas partidários, que haviam garantido por décadas a coesão social e a legitimidade do sistema. Avançam tanto o rancor fascista quanto alternativas que propõem a superação do capitalismo.

 

O tempo delas pode ter chegado, sugere o livro de Ladislau Dowbor – intitulado Resgatar a função social da Economia. O fator principal para produção de riquezas não é mais a fábrica, mas o conhecimento. Trata-se de um bem não-rival – que pode ser reproduzido e compartilhado ao infinito, sem que seus detentores percam nada com isso. O último capítulo da obra propõe elementos para um projeto que permita distribuir a riqueza social, estabelecer nova relação com a natureza e transformar a política, nas condições do século XXI. Implica transformar a moeda e as finanças. Estabelecer a Renda Básica. Desprivatizar. Lançar um vastíssimo programa de investimentos públicos, suficiente para desmercantilizar Saúde, Educação e Habitação, além de renovar a infraestrutura e iniciar a conversão energética. Assegurar trabalho com direitos aos que desejem engajar-se nestas tarefas. Estabelecer a democracia participativa como mecanismo essencial de governo.

 

Aqui, a obra torna-se particularmente necessária ao Brasil contemporâneo. Ela mostra que a tendência ao fascismo pode ser revertida, desde que a esquerda não ceda à tentação de salvar uma ordem em social em declínio. Ela precisa, ao contrário, se dar conta do enorme trabalho – político e teórico – que tem pela frente. Tornou-se possível, arrisca Ladislau, pensar uma sociedade fundada não mais sobre a competição e a exploração, mas em dinâmicas cooperativas. Mas as propostas para tanto diferem dos projetos socialistas do passado. A base material da produção de riquezas mudou radicalmente. Por isso, a ideia de superar as lógicas do capital tornou-se mais válida que nunca – mas os programas para realizá-la precisam ser totalmente repensados.

 

Crise da antiga forma de capturar a riqueza social. Emergência do rentismo contemporâneo. Devastação social e ambiental resultantes. Tendência a crises econômicas e políticas constantes. A alternativa da Colaboração. O livro de Ladislau é um guia para enxergar e começar de estudar o declínio do capitalismo, os riscos já visíveis de emergir um sistema ainda pior e as bases para construir, por meio da política, outra saída para a crise civilizatória. A seguir, uma breve antecipação de suas hipóteses principais.

 

I. A tecnologia e as políticas que produzem o rentismo contemporâneo

 

As teorias que marcaram o pensamento humano persistem por longo período, mesmo depois de se alterarem as realidades objetivas que elas descreviam. Desenvolvida por Marx, a ideia de que a mais-valia é extraída no processo de produção dos bens materiais — em especial na indústria — formou a esquerda por um século e meio. A partir dela, definiram-se projetos (como a estatização dos meios de produção), estratégias, visões sobre o “sujeito revolucionário” crucial (a classe operária), estruturas organizativas. Ladislau argumenta que esta forma de exploração do trabalho já não é a principal. Não significa que tenha desaparecido – mas, sim, que as classes dominantes encontraram outros mecanismos, no momento mais efetivos, de capturar a riqueza social.

 

 

A mudança relaciona-se a outra descoberta de Marx, já no campo da filosofia política: a dialética entre as forças produtivas da sociedade e as relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si. Estas últimas formam, na teoria marxista, “a estrutura econômica da sociedade”. Perduram por longas épocas. Estabeleceram, ao longo da História, distintas dinâmicas de opressão de uma pequena classe dominante sobre as maiorias. São, por exemplo, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo. Já as forças produtivas – trabalho, tecnologia, fábricas, ferramentas, matérias-primas etc – estão em incessante transformação. Em determinados momentos, seu desenvolvimento avança tanto que as velhas relações de produção não são capazes de contê-las. Neste ponto, a estrutura econômica entra em xeque e, segundo Marx, “abre-se uma época de revolução social[1]”.

 

Como estas ideias realizam-se nas condições concretas de nosso tempo? A revolução tecnológica das últimas décadas sacudiu e transformou as forças produtivas em todos os setores da atividade humana – e não cessa de fazê-lo. Ladislau aponta, em outro livro recente[2], suas marcas principais. É possível resumi-las assim, empregando essencialmente as palavras do autor.

 

A base produtiva da humanidade está se deslocando de maneira radical e muito acelerada. (…) O conhecimento transformou-se no principal fator de produção. (…) A máquina continua importante, mas hoje o ser humano programa a sua operação. O que ele gera, fundamentalmente, são tecnologias, design, o chamado “imaterial”. Não é apenas a robótica, que penetra de forma acelerada em inúmeros setores. Surgem aplicações científicas inovadoras em praticamente todas as áreas: energia, transportes, medicina, educação, cultura, geração de novos materiais (…) Além disso, pela primeira vez todas as unidades de informação – letras, números, sons, imagens – podem ser digitalizadas. É possível receber, armazenar, tratar e articular volumes praticamente ilimitados de conhecimento. E a conectividade planetária permite tornar esse fator de produção disponível instantaneamente, em qualquer ponto do planeta.

 

Há algo muito especial nesta transformação. A centralidade do conhecimento e do imaterial abre, em teoria, espaço para uma socialização inédita da riqueza. Ladislau prossegue: “O principal fator de produção na economia contemporânea não é escasso. Não tem seu estoque reduzido pelo uso – pelo contrário, pode ser multiplicado indefinidamente”. Esta característica abala os alicerces da ideia de propriedade privada e, em especial, a lógica de competição e exploração onipresente no capitalismo.

 

Ocorre, porém, que esta mudança de época transcorreu, até o momento, em meio a condições políticas singulares. As forças que desejam superar o capitalismo foram batidas pela esclerose e posterior derrocada do “socialismo real”. A potência libertadora da produção baseada no conhecimento e no imaterial foi sequestrada pelas velhas lógicas. As classes dominantes já não podem extrair o mais-valor do trabalho como antes – porque a fábrica e as máquinas perderam protagonismo. Mas, em meio à emergência da ordem neoliberal, fazem-no ressuscitando e atualizando o velho rentismo – ou seja, a extração improdutiva da riqueza social, por meio de mecanismos de intermediação. Por isso, autores como Cédric Durand e Ellen Brown a veem como uma espécie de tecnofeudalismo.

 

Ladislau aponta com precisão cirúrgica o caráter predatório das relações sociais que derivam deste paradoxo.

 

Na fase anterior, o capitalista, para enriquecer, precisava pelo menos produzir e gerar empregos, e inclusive pagar impostos, o que enriquecia a sociedade. Na fase que se inaugura no final dos anos 1970, o capitalista descobre que os mecanismos financeiros podem garantir enriquecimento com muito menos esforço, e sem tantos constrangimentos. (…)

 

Em seu livo anterior, O capitalismo se desloca, ele já havia chamado atenção para a irracionalidade do processo:

 

Em vez de produzir mais para ganhar mais, o capitalismo passa a buscar formas artificiais de gerar escassez para ganhar dinheiro e combater os processos decentralizados e colaborativos de multiplicação da riqueza. O sistema inverte os valores. Proibir o livre acesso ao livro ou ao filme que poderiam ser acessados online tornou-se fundamental.

 

Mas quais as formas concretas por meio dos quais esta criação artificial de escassez se realiza — e permite concentrar tantas riquezas? É o que veremos a seguir.

 

(continua)

 

Notas:

 

[1] Ler, a este respeito o prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política.

[2] O Capitalismo se Desloca, Edições Sesc, 2021, Capítulo I.

 

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