Hipocrisia. Artigo de Carlo Rovelli

Foto: Balkan Photos | Flickr, criação comum.

06 Julho 2022

 

"Não posso deixar de ver como esta parte rica e poderosa do mundo esteja cada vez mais se fechando sobre si mesma em um paroxismo de violência contra o resto do mundo e se esteja transformando em um sepulcro caiado. Amo o Ocidente, mas pela riqueza cultural que presenteou ao mundo inteiro, não por ter se tornado senhor graças à escravidão, exterminando continentes inteiros, depredando tudo e continuando a fazê-lo, não por essa violência e hipocrisia desenfreadas que continuam os horrores do passado", escreve o físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, em artigo publicado em seu Facebook, 03-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Raramente me senti como neste período, tão longe de tudo o que leio nos jornais e vejo na televisão sobre a guerra em curso no Leste Europeu. Poucas vezes me senti tão em desacordo com os discursos dominantes. Talvez era dos tempos de minha adolescência inquieta que eu não me sentia tão afetado e ofendido pelo discurso público ao meu redor.

 

Eu me perguntei por quê. Afinal, muitas vezes estou em discordo com as escolhas políticas e ideológicas dos países em que vivo, mas isso é normal - somos muitos e temos opiniões diferentes, interpretações diferentes do mundo. Também do meu pacifismo, inclusive, será que tenho tanta certeza? Tenho dúvidas, como todos. Então, por que me sinto tão perturbado, incomodado, assustado com o que leio em todos os jornais, e ouço repetir ao infinito na televisão, nos contínuos discursos sobre a guerra?

 

Hoje eu entendi. Entendi isso justamente voltando com o pensamento ao período de minha adolescência, quando tantos anos atrás a juventude de muitos países do mundo começava a se rebelar contra um estado de coisas que lhes parecia errado. Qual era aquele primeiro impulso para a mudança? Não era a injustiça social, não eram os povos massacrados pelo Napalm como os vietnamitas, não era a respeitabilidade, o bom mocismo, o tolo autoritarismo das universidades e das escolas, havia algo mais simples, mais imediato, visceral que feriu a adolescência de meio século atrás e desencadeou as revoltas de muitos garotos e garotas de então: a hipocrisia do mundo adulto.

 

A percepção instintiva pela clareza da juventude de que os ideais ostentados eram sepulcros caiados. Que os nobres valores declarados eram coberturas para um egoísmo mesquinho. Que o moralismo ostentado, a pomposa prosopopeia da escola, a pretensa autoridade das instituições eram disfarces para privilégios, exploração, baixeza e mesquinhez. De repente, aquilo era insuportável para os olhos límpidos de um jovem.

 

Muitos anos se passaram desde então. O mundo me parece infinitamente mais complexo, difícil de decifrar, difícil de julgar, do que me parecia então. A ilusão de que tudo possa ser limpo e honesto no mundo eu a perdi há muito tempo. Mas a explosão da hipocrisia do Ocidente neste último ano é sem igual.

 

De repente, o Ocidente, todos juntos em coro, começou a se cantar como o detentor dos valores, o baluarte da liberdade, o protetor dos povos fracos, o garantidor da legalidade, o guardião da sacralidade da vida humana, a única esperança de um mundo de paz e justiça. Esse canto sobre quão bom e justo é o Ocidente e quão ruins são os estados autocráticos é um coro em uníssono repetido ao infinito por todo artigo de jornal, por todo comentarista de televisão, por todo editorial. A malvadez feroz de Putin é apontada, ostentada, repetida, declamada, infinitamente. Cada bomba que cai na Ucrânia nos repete o quanto a Rússia é má e nós somos bons.

 

Eu ficaria feliz em juntar-me ao coro, se cada vez que condenamos o fato - completamente condenável - de que uma potência militar tenha atacado um país soberano com fúteis pretextos, eu me juntaria ao coro se cada vez o Ocidente acrescentasse "E eu o Ocidente, portanto, comprometo-me a nunca mais fazer algo assim no futuro, como fiz no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, em Granada, em Cuba e muitos outros países. Fizemos isso, mas agora que os russos o fazem, percebemos o quão doloroso é, não faremos isso nunca mais."

 

Eu ficaria feliz em juntar-me ao coro, se toda vez que condenarmos o fato - totalmente condenável - de que as fronteiras das nações não são respeitadas, e a Rússia reconheceu a independência de Donbass, eu me juntaria ao coro se o Ocidente acrescentasse "E eu, Ocidente, portanto, comprometo-me a nunca mais fazer algo assim no futuro, como fiz quando reconheci imediatamente a independência da Eslovênia e da Croácia, mudando as fronteiras da Europa, desencadeando uma sangrenta guerra civil e arrancando terras da Iugoslávia.”

 

Eu ficaria feliz em juntar-me ao coro, se toda vez que condenarmos o fato - totalmente condenável - que Moscou bombardeia Kiev, matando civis inocentes, citando como motivo que Kiev bombardeava o Donbass, eu me juntaria ao coro se o Ocidente acrescentasse “E eu, Ocidente, por isso comprometo-me a nunca mais fazer nada assim no futuro, como fiz quando bombardeei Belgrado, matando mil pessoas, mulheres e crianças inocentes, citando como razão que Belgrado bombardeava o Kosovo”.

 

Eu ficaria feliz em juntar-me ao coro, se cada vez que condenamos o fato - totalmente condenável - de que a Rússia pretende mudar o regime político em Kiev porque esse regime se rebela contra ela, eu me juntaria ao coro se o Ocidente acrescentasse: “E eu, Ocidente, então comprometo-me a nunca mais fazer algo assim no futuro, como fiz quando bombardeei a Líbia, invadi o Iraque, desestabilizei governos do mundo inteiro, do Oriente Médio à América do Sul, do Chile à Argélia, do Egito à Palestina, cada vez que um povo votava em um governo que era pouco favorável aos interesses ocidentais, derrubando governos democraticamente eleitos como na Argélia, no Egito ou na Palestina, para depois apoiar ditaduras como na Arábia Saudita apenas porque convém, mesmo que os sauditas continuem a massacrar os iemenitas.”

 

Eu ficaria feliz em juntar-me ao coro que se comove com os pobres ucranianos, se esse coro também se comovesse pelos iemenitas, sírios, afegãos e todos os outros, com tons de pele ligeiramente diferentes, em vez de deixar de fora todos os outros a apodrecer.

 

E talvez eu discordasse, mas não tão enojado, se simplesmente ouvisse dizer “somos os mais fortes, queremos dominar o mundo com a violência das armas, para defender a nossa riqueza, e vamos dominá-lo. Pelo menos não haveria hipocrisia, pelo menos poderíamos discutir se esta seria uma escolha clarividente ou não, e se não seria mais clarividente amortecer o conflito e buscar colaboração".

 

"Em vez disso, estamos imersos na hipocrisia mais desenfreada. Chegamos a excessos que beiram o surrealismo."

 

Nossos jornais falam sobre a lógica "imperial" da China e da Rússia. A China praticamente não tem um único soldado fora das fronteiras internacionalmente reconhecidas da China. A Rússia os tem apenas a poucos quilômetros de suas fronteiras. Os mais distantes estão na Transnístria, a poucas dezenas de quilômetros de seus exércitos. Os estadunidenses têm cem mil soldados na Europa, têm bases militares na América Central, América do Sul, África, Arábia Saudita, Pacífico, Japão, Coreia e assim por diante, praticamente em todo o mundo. Exceto na Ucrânia, onde, porém, as estavam iniciando. Eles têm porta-aviões no Mar da China. Quem tem uma política imperial? Das costas chinesas se podem ver os navios de guerra estadunidenses, e eu não diria que de Nova York se veem navios de guerra chineses. No entanto, os nossos jornalistas surrealistas conseguem distorcer a realidade até o ponto de falar sobre a lógica imperial da Rússia e da China!

 

Teme-se o uso da bomba atômica. Mas o Ocidente é o único a ter usado a bomba atômica para afirmar com a extrema violência seu incondicional domínio, mesmo com a guerra já vencida, ninguém mais o fez. Diz-se que a China é agressiva. Mas não travou uma única guerra depois da Coreia e do Vietnã, enquanto o Ocidente travou guerras em continuação no mundo inteiro. Quem é o império?

 

O Pentágono publica regularmente listas de seres humanos mortos em todas as partes do mundo por seus drones. Reconhece publicamente que muitas pessoas inocentes são mortas por engano. O New York Times chega ao horror de escrever um longo artigo denunciando o fato de que os pobres soldados estadunidenses que operam esses drones remotamente não têm apoio psicológico suficiente para suportar o duro trabalho e o estresse de muitas vezes ter que matar inocentes! O escândalo, para a espalhafatosa imprensa dos donos do mundo, não é que sejam mortos inocentes, é que os soldados que os matam não têm apoio psicológico adequado!

 

Nem mesmo o Império Assírio, lembrado na antiguidade por sua violência, jamais chegou a semelhante arrogância e desprezo pelo resto da humanidade! Mas nossos jornalistas ignoram alegremente que todas as semanas no mundo alguém é morto por drones estadunidenses e lembram com indignação uma pessoa morta pelos russos anos atrás em Londres... Como os russos são horríveis! E assim por diante...

 

A Rússia também se permitiu cometer uma versão em tons menores dos horrores que o Ocidente continua a cometer. O Iraque e o Afeganistão não tinham feito mal a ninguém: o Ocidente os invadiu e causou muitas centenas de milhares de mortes nas duas guerras. E se permite bancar a alma cândida com a Rússia?

 

Que o faça prometendo não invadir mais nenhum país, não se envolver mais em nenhuma guerra, não querer dominar o mundo com a violência. Então eu também me juntarei ao coro de condenação dos maus russos.

 

Ouvimos o absurdo. Os estadunidenses invocar o tribunal internacional de justiça, que sempre obstruíram e ao qual não aderiram. Invocar a legalidade internacional, quando suas últimas guerras foram condenadas pelas Nações Unidas e eles fizeram de tudo para desautorizá-las, inclusive não pagar sua cota.

 

Eu amo os EUA. Morei lá dez anos. Eu os conheço. Eu os admiro. Conheço seus esplendores e horrores. O brilhantismo de suas universidades, a vitalidade de sua economia, a infame miséria dos guetos negros e dos guetos brancos, suas prisões onde mantêm quase um estadunidense em cada cem, a violência inconcebível para nós europeus de suas ruas. Também amo a Europa, onde nasci. Sempre amei aquela que me parecia ser a tolerância e a cautela herdadas da devastação da Guerra Mundial.

 

Mas não posso deixar de ver como esta parte rica e poderosa do mundo esteja cada vez mais se fechando sobre si mesma em um paroxismo de violência contra o resto do mundo e se esteja transformando em um sepulcro caiado. Amo o Ocidente, mas pela riqueza cultural que presenteou ao mundo inteiro, não por ter se tornado senhor graças à escravidão, exterminando continentes inteiros, depredando tudo e continuando a fazê-lo, não por essa violência e hipocrisia desenfreadas que continuam os horrores do passado.

 

Também amo a China e a Índia, onde também vi misérias e esplendores. É estúpido discutir sobre quem é melhor, como se todos tivéssemos que fazer a mesma coisa, como se alguém devesse necessariamente vencer os outros e impor seu modo de ser aos outros. O problema com o mundo não é quem deve comandar, que sistema político devemos adotar todos uniformemente. O problema do mundo é como conviver, tolerar-se, respeitar-se, colaborar.

 

O mundo tem vários bilhões de habitantes. A maioria deles está fora do Ocidente. Estão na China, Índia, Rússia, Brasil, no resto da América do Sul, África, Ásia. São a maioria da humanidade. Eles não têm mais simpatia pelo Ocidente. Têm cada vez menos. Não participam das sanções contra a Rússia, muitos se recusaram até mesmo a votar a condenação da Rússia na ONU, apesar do fato de que a Rússia fosse obviamente condenável. Não porque sejam maus, porque amem a violência ou tenham motivos sinistros. Mas porque veem a desenfreada hipocrisia do Ocidente, que enche o mundo com seus exércitos, sente-se livre para massacrar e depois banca a alma cândida se outro se comportar mal.

 

O mundo, em sua grande maioria, gostaria que os problemas comuns da humanidade, aquecimento global, pandemias, pobreza, fossem enfrentados em comum, com decisões tomadas em comum. Ele gostaria que as Nações Unidas importassem mais. O Ocidente bloqueia essa colaboração, sente-se no direito de comandar, porque tem as armas do seu lado, a violência do seu lado.

 

Agora o Ocidente se sente inquieto porque a China está ficando rica, por isso a provoca, a cutuca, a acusa de tudo que possa ser acusável (e que existe: atire a primeira pedra quem não tem culpa).

 

O Ocidente busca o confronto com a China. Gostaria de humilhá-la militarmente antes que cresça demais e isso se torne impossível. A classe dominante ocidental está nos levando para a Terceira Guerra Mundial. Os problemas da Ucrânia poderiam ser resolvidos como no final o Ocidente queria resolver a Iugoslávia: uma guerra civil que se arrasta há tempo, com intervenções militares externas, que levou a uma separação em partes diferentes. Mas o Ocidente não quer uma solução, quer prejudicar a Rússia. E continua a repetir isso.

 

Na televisão desfilam os rostos felizes das reuniões dos líderes ocidentais, felizes com seus porta-aviões, suas bombas atômicas, suas incontáveis armas, trilhões de euros usados para fabricar armas, com as quais se poderiam resolver os problemas do mundo, e em vez disso são usados para fortalecer um domínio violento sobre o mundo.

 

E tudo isso colorido com belas palavras: democracia, liberdade, respeito pelas nações, paz, respeito pela legalidade internacional, respeito pela lei. Atrás, como zumbis, repórteres e colunistas o repetem. Sepulcros caiados. Na esteira do sangue de milhões de mortos dilacerados nas últimas décadas por nossas bombas. De Hiroshima a Cabul. E eles continuarão.

 

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