As Igrejas, as bombas e as teologias: quem favoreceu a agressão da Rússia contra a Ucrânia? Artigo de Lorenzo Prezzi

Foto: Mike Finn | Flickr CC

15 Março 2022

 

"É difícil entender por que manter abertos os canais de diálogo ecumênico pode servir para a paz ou como uma profunda pertença religiosa pode constituir a garantia do laicismo civil. É fácil imaginar que, uma vez deposto o poder de Putin e redesenhados os vértices eclesiais, seria necessário recorrer à corrente quente da fé para reconstruir, junto com as instituições, um tecido civil que impeça a explosão da Rússia", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Domani, 13-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

 

A agressão da Rússia contra a Ucrânia já causou milhares de mortes, feridos e destruição. Mais de 2 milhões de refugiados. Neste mar de violência, existe uma responsabilidade também das Igrejas cristãs?

Se é verdade que uma guerra se reporta a decisões políticas e militares específicas e deve ser narrada com base em muitas atenções (história, geografia, técnica, sociedade, cultura etc.), é possível reconhecer nas Igrejas e nas suas teologias elementos que favoreceram ou não impediram a eclosão do conflito?

No caso da Rússia e da Ucrânia, a questão é dirigida em particular às Igrejas Ortodoxas de Moscou e Kiev. A resposta é, ao mesmo tempo, dolorosa e positiva. Em particular em relação à liderança da Igreja russa.

Pode-se distinguir três níveis em que se sedimentam elementos de corresponsabilidade na guerra: a teologia domundo russo” elaborada pelas elites eclesiásticas moscovitas; o cisma eslavo-helênico iniciado com o reconhecimento da autocefalia ucraniana em 2018-2019; a doutrina tradicional dasinfonia” que rege a relação entre igrejas e impérios, entre igrejas e estados.

 

Russkj mir

 

O “mundo russo” (Russkj mir) é uma corrente de pensamento teológico e orientações pastorais que retorna em evidência com a eleição de Kirill como patriarca de todas as Rússias (2009). Cresce após algumas décadas tumultuadas e difíceis que acompanharam a implosão da União Soviética e o nascimento ou renascimento dos estados anteriores à Revolução de Outubro (1915).

O patriarcado de Moscou se descobre administrando uma transição que vê sua autoridade eclesial questionada pelas instâncias nacionais. Para manter a unidade das Igrejas tentadas por uma plena autonomia, enfatiza-se não só a pertença eclesial (o rito comum, a hierarquia partilhada, as longas décadas de convivência), mas também a unidade do destino e do testemunho do batismo da 'Rus cujo milênio foi comemorado em 1988.

A memória histórica mistura o presente e o “mundo russo”, utiliza vieses místico-salvíficos fortemente gravados nas devoções e no pensamento popular compartilhado. O culto do czar Nicolau II, assassinado pelos bolcheviques em 1918, se derrama sobre os novos poderosos e sobre o novo czar. Putin chega ao poder em 2012 em um contexto de vazio ideológico e de grande fragilidade internacional da Rússia. Precisa fundamentar a força do poder adquirido com uma corrente de pensamento capaz de justificá-la e sustentá-la.

A humilhação sofrida pela Rússia com a implosão do império soviético impõe não apenas a necessidade de ordem, mas também aquela de resgate da honra nacional. Saldam-se, assim, a orientação religiosa e o pensamento político, embora pertencentes a duas exigências distintas.

Como observou J.-F. Colosimo, “para Vladimir Putin, a religião serve à ordem social e à moral familiar. Em contrapartida, a Igreja e seu patriarca acrescentam um discurso religioso à ideologia vigente. Mas é uma troca desigual, porque Putin continua sendo o chefe, enquanto Kirill se comporta como uma espécie de ministro do culto e, como todo ministro de Putin, deve mostrar submissão”.

Kiev é o berço original do Império russo, durante muitos séculos o centro religioso da 'Rus. Perder a Ucrânia significa ferir qualquer possibilidade de renascimento. As operações militares lançadas na Moldávia em 1992, replicadas na Geórgia em 2008 e testadas na Crimeia (Ucrânia) em 2014 respondem ao desejo de reconquista da dimensão imperial do poder do novo czar. Em sintonia com a liderança eclesiástica.

Perante a agressão atual ao conjunto da Ucrânia, entende-se que Kirill fala de um confronto entre a Rússia mítica e as “forças do mal” (homilia de 27 de fevereiro), entre o exército russo e a corrupção ocidental emblemática reconhecida nos desfiles de homossexuais (6 de março) e, finalmente, identificando as forças opostas a Putin com o Maligno.

Diante de toda a liderança eclesial Kirill em 9 de março afirma: o demônio, “o inimigo da humanidade ... lança uma mentira nas relações entre nossos povos ('vocês não são irmãos' ndr) e com base nessa mentira se desenvolve um conflito”. Tudo destinado a enfraquecer a Rússia.

Não faltam as (poucas) vozes críticas como a de 300 padres e diáconos, de Sergey Chapnin (ex-responsável da revista oficial do patriarcado) e do teólogo C. Hovorum: “O Kremlin não está dentro de uma simples lógica de expansão territorial. A guerra na Ucrânia é de outra natureza.

É realizada em nome de uma missão especial de unificação religiosa, de proteção de uma espécie de terra santa contra o Ocidente. Contra os países ocidentais julgados hereges, maus e mentirosos, sendo católicos e protestantes. É sobretudo uma lógica de expansão da ‘civilização ortodoxa’, que é o nó fundamental que os teólogos ortodoxos terão que desconstruir”.

 

O cisma

 

O segundo nível, que tem menor carga justificativa para o conflito, é o início do cisma intraortodoxo entre a linhagem eslava e helênica, entre Moscou e Constantinopla. O fracasso parcial do grande concílio de Creta (2016) - quatro das 14 Igrejas históricas faltaram ao encontro, e entre elas, a Igreja russa - convence Bartolomeu de Constantinopla da vontade moscovita de assumir para si a centralidade da ortodoxia mundial em razão de seu poder (150 milhões de fiéis em 250) e o leva a conceder a autocefalia aos dissidentes ortodoxos ucranianos.

A autocefalia ou a autonomia de uma igreja local não era um problema nos primeiros séculos da igreja se uma igreja local mostrasse ter as condições de plena subsistência. Mas com o século XIX mistura-se com os impulsos nacionais e aparece hoje como a plena identidade de uma Igreja.

A decisão de Bartolomeu, que “força” os cânones da tradição ortodoxa e é vistosamente apoiada pelos Estados Unidos, provoca Kirill (amplamente apoiado pelo governo), que responde com fúria: tira a comunhão eucarística (ato de ruptura) com Constantinopla e as Igrejas que o seguiram (Alexandra, Chipre, Grécia), inventa um exarcado para a África (contra Alexandria), patrocina dissidentes na Grécia e Chipre, deslegitima sistematicamente a “primazia” de Bartolomeu.

O rompimento se expande rapidamente nas comunidades ortodoxas da diáspora no Ocidente e favorece a concentração de cada Igreja sobre si mesma. Encontra consenso em particular na Igreja sérvia, enquanto os outros estão na espera.

Velhas e novas feridas se reabrem. Acontece que a Faculdade Teológica de Friburgo (Suíça) suspende a cátedra do Metropolita Hilarion (o número dois na hierarquia russa), que os líderes dos católicos e protestantes franceses, portadores de uma carta para Putin, encontram fisicamente a porta fechada da maior igreja ortodoxa de Paris e que no Conselho Ecumênico de Igrejas, a maior instituição representativa das Igrejas cristãs, se propõe a suspensão da Igreja Russa dos núcleos diretores.

Na Ucrânia, a Igreja pró-russa se posiciona contra a invasão, aproximando-se das outras Igrejas em nome da defesa da pátria. Mas, anteriormente, o confronto entre as duas Igrejas Ortodoxas e na sociedade ucraniana se concentrava contra e a favor da Rússia. Uma tensão que favoreceu o conflito.

 

A sinfonia

 

O terceiro nível, o das relações entre Estados e Igrejas, não influenciou o conflito de forma ativa. A referência à “sinfonia” é relevante para o caso russo-ucraniano devido à ausência de uma doutrina e prática que preveja e atravesse o eventual conflito entre a comunidade eclesial e a comunidade política.

No caso de um governo compatível, a “sinfonia” garante a colaboração, mas no caso de um governo ou de decisões não compatíveis, torna problemática a ignição de uma profecia crítica.

Assim é definida em dois distintos e diferentes textos recentes de doutrina social do lado russo e do lado helênico.

“Sua substância (da ‘sinfonia’) é a colaboração mútua, o apoio mútuo e a responsabilidade mútua, sem intrusão de uma parte na esfera de competência da outra ... O Estado nas relações sinfônicas com a Igreja busca nela seu apoio espiritual, pede para si orações e bênçãos para as atividades destinadas a alcançar os objetivos que servem ao bem-estar dos cidadãos, e a Igreja recebe assistência do Estado na criação de condições propícias à pregação e à nutrição espiritual de seus filhos, que também são cidadãos do estado” (Os Fundamentos do Pensamento Social da Igreja Ortodoxa Russa).

“Ainda hoje o princípio da ‘sinfonia’ pode continuar a guiar a Igreja nos seus esforços de colaboração com os governos, para o bem comum e a luta contra a injustiça. No entanto, não pode ser invocada como justificação para impor a ortodoxia religiosa ou para promover a Igreja como força política” (Rumo a um ethos social da Igreja Ortodoxa).

 

Eclesiologia de comunhão

 

A complexa compactação entre plano simbólico-religioso e político-militar dificulta a leitura das mídias ocidentais, marcadas por alto profissionalismo, mas também por uma grande ignorância teológica. Além disso, comum também no âmbito político e diplomático.

Isso favorece a identificação imediata entre Igreja e governo, a caracterização superficial em sentido antimoderno das comunidades religiosas e a impossibilidade de perceber as profundas diferenças (e, portanto, possíveis distâncias e alianças) entre as diferentes tradições confessionais.

É difícil entender por que manter abertos os canais de diálogo ecumênico pode servir para a paz ou como uma profunda pertença religiosa pode constituir a garantia do laicismo civil. É fácil imaginar que, uma vez deposto o poder de Putin e redesenhados os vértices eclesiais, seria necessário recorrer à corrente quente da fé para reconstruir, junto com as instituições, um tecido civil que impeça a explosão da Rússia. Uma conclusão ainda mais séria do que a atual, dramática, guerra.

“É claro que, neste contexto, apenas uma teologia purificada de todo maniqueísmo e uma eclesiologia de comunhão permitirá à Igreja Ortodoxa russa livrar-se do seu discurso imperialista. A Igreja Ortodoxa ucraniana (a referência é à Igreja autocéfala ndr) representa uma fonte de esperança... Os esforços empreendidos (para sair do círculo vicioso de uma eclesiologia política ndr) pela Igreja greco-católica ucraniana e pela Igreja Ortodoxa ucraniana devem ser encorajados. Eles possuem uma das principais chaves para a futura reconciliação entre a Rússia e a Ucrânia” (Antoine Arjakosky, historiador).

 

 

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