Tragédia brasileira e riscos para a Casa Comum. Entrevista especial com Romi Bencke

A destruição da biodiversidade e as consequências da proliferação do novo coronavírus fazem com que o Brasil se torne um “potencial perigo para os demais países”, diz a secretária-geral do Conic

Foto: Márcio James | Secom

Por: Patricia Fachin | 04 Mai 2021

 

"Igrejas desempenham papéis importantes na sociedade, e muitos grupos vinculados a diferentes igrejas têm dado sustentação a esta política destrutiva", diz a pastora Romi Bencke ao comentar a conjuntura nacional e os efeitos gerados pelas políticas adotadas pelo presidente Jair Bolsonaro, com apoio de setores cristãos. Como uma voz dissonante em contraposição a outros grupos religiosos que apoiam e sustentam o governo Bolsonaro em seus pronunciamentos à comunidade cristã, Romi chama atenção para a necessidade de "reunir expressões cristãs que compreendem e assumem a sua responsabilidade social como resposta ao Evangelho. Pensar nossa atuação diaconal e pastoral exige que compreendamos de maneira profunda a realidade e seus desafios. Para isso, precisamos dialogar com as diferentes áreas de conhecimento", afirma.

 

Segundo ela, o presidente se aproxima "com habilidade" de alguns setores cristãos. A postura dele, pontua, "é uma prática antiga, que é a de identificar em setores religiosos uma espécie de 'curral' eleitoral. Ele realiza um discurso conservador, e garante alguns privilégios para se manter no poder. No entanto, destaco, esta não é uma prática única e exclusiva do atual presidente. Ela se repete sempre que há eleições. É uma prática assumida por todos os partidos". E acrescenta: "Vejo que em um debate sobre a reforma do sistema político, um grande desafio é pensar a relação entre igrejas e partidos políticos”. Para fazer frente à "desconfiguração da mensagem cristã" em curso, Romi sugere o investimento em “formação teológica crítica e aberta para interagir com a sociedade moderna. Não se entregando ao discurso fácil de prosperidade e de combate ao inimigo nem à divisão simplória da humanidade entre bem e mal".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Romi Bencke comenta alguns dos temas do "Seminário Internacional Tragédia brasileira: Risco para a Casa Comum?", que será realizado nesta semana, entre os dias 4 e 6 de maio, das 10h às 12h30. Na avaliação dela, a atual conjuntura brasileira representa "dois riscos potenciais" para a humanidade. "O primeiro é a destruição da nossa biodiversidade que ocorre pela monocultura, uso intensivo de veneno, mineração e derrubada de florestas. Os impactos da destruição ambiental não atingem somente o Brasil, mas o planeta como um todo, pois o que chamamos de vida é um sistema interdependente. Outro risco é a atual pandemia da Covid-19 e as novas cepas identificadas em nosso país. Se não levarmos a sério os alertas da comunidade científica sobre as consequências da não contenção da proliferação do novo coronavírus, nos tornaremos um potencial perigo para os demais países, em especial para os países que fazem fronteira com o Brasil", destaca.

 

O evento é promovido pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz - CBJP, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - Conic, Coordenadoria Ecumênica de Serviço - CESE, Fundação Luterana de Diaconia - FLD, FEACT-BRASIL, Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB/Pastorais Sociais, #RespiraBrasil, com apoio do ISER, PAD, CRB e REPAM Brasil. As palestras serão transmitidas pelo Facebook do Conic, pelo Canal do Youtube da Comissão Brasileira Justiça e Paz e pelas redes sociais dos promotores do evento. 

 

No IHU, o evento será transmitido pela página eletrônica do Instituto, no Faceebok do IHU, no Canal do IHU no YouTube. Também é possível participar através do Facebook do Centro de Promoção de Agentes de Transformação - CEPAT.

 

Romi Bencke (Foto: Agência Ecumênica de Comunicação)

 

Romi Bencke é pastora luterana, secretária-geral do Conic e integrante do Grupo de Referência da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político. 

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que é e em que consiste, no seu entendimento, a "tragédia brasileira" hoje e como enfrentá-la?

Romi Bencke - Compreendo que a "tragédia brasileira" é consequência de um longo processo histórico que estrutura as desigualdades brasileiras. No entanto, como estamos impossibilitados de realizar uma avaliação histórica de longo prazo, localizaria a atual "tragédia brasileira" como resultado direto provocado pela ruptura democrática ocorrida em 2016 e da Operação Lava Jato. Ambas foram essenciais para o resultado das eleições de 2018. É necessário levar em conta o atual processo de desestruturação do Estado brasileiro, que atinge políticas públicas essenciais, como, por exemplo, o Sistema Único de Saúde e a educação pública. A pandemia da Covid-19, que contabiliza mais de 400 mil óbitos, precisa ser creditada a todas as forças e alianças econômicas, políticas e religiosas que contribuíram para que o atual projeto político-econômico esteja em curso.

 

 

IHU On-Line - O "Seminário Internacional Tragédia brasileira; Risco para a Casa Comum?", promovido pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - Conic e pela Comissão de Justiça e Paz, propõe uma discussão sobre racismo, desigualdades sociais, templo e mercado, fundamentalismo religioso, sociobiodiversidade, povos ameaçados. Como todas essas questões se relacionam hoje no Brasil?

Romi Bencke - Todas estas questões estão muito relacionadas quando refletimos sobre o discurso ideológico que dá sustentação ao projeto bolsonarista, que está alicerçado em um neoliberalismo extremamente violento e destrutivo. Para levar adiante esta política de destruição e convencer mentes e corações de que para o Brasil ter sucesso é necessário destruir, lançam mão da guerra cultural que mobiliza discursos religiosos fundamentalistas, em especial de matriz cristã, reforçam a ideia da eliminação do inimigo. Este inimigo é tudo o que atrapalha a economia neoliberal: a biodiversidade, os povos originários e tradicionais, direitos humanos etc.

 

 


 

IHU On-Line - A conjuntura nacional apresenta riscos para o conjunto da humanidade? Quais?

Romi Bencke - Sim, no processo de preparação do Seminário identificamos dois riscos potenciais. O primeiro é a destruição da nossa biodiversidade, que ocorre pela monocultura, uso intensivo de veneno, mineração e derrubada de florestas. Os impactos da destruição ambiental não atingem somente o Brasil, mas o planeta como um todo, pois o que chamamos de vida é um sistema interdependente. Outro risco é a atual pandemia da Covid-19 e as novas cepas identificadas em nosso país. Se não levarmos a sério os alertas da comunidade científica sobre as consequências da não contenção da proliferação do novo coronavírus, nos tornaremos um potencial perigo para os demais países, em especial para os países que fazem fronteira com o Brasil.

 

 

IHU On-Line - Qual é a importância de discutir essas questões a partir da interlocução entre igrejas e organizações baseadas na fé e de defesa dos direitos humanos e da sociobiodiversidade?

Romi Bencke - Igrejas desempenham papéis importantes na sociedade, e muitos grupos vinculados a diferentes igrejas têm dado sustentação a esta política destrutiva. É necessário reunir expressões cristãs que compreendem e assumem a sua responsabilidade social como resposta ao Evangelho. Pensar nossa atuação diaconal e pastoral exige que compreendamos de maneira profunda a realidade e seus desafios. Para isso, precisamos dialogar com as diferentes áreas de conhecimento.

 

 

IHU On-Line - Que contribuições singulares as instituições religiosas podem dar a este debate, particularmente, num contexto de fundamentalismo religioso e de instrumentalização da religião?

Romi Bencke - Primeiro, afirmando a importância da ciência, segundo, contribuindo para a formação do pensamento crítico e não cair no comodismo e na futilidade de hermenêuticas bíblicas simplórias.

 

IHU On-Line - Quais são os riscos da instrumentalização da religião?

Romi Bencke - O aumento das violências em suas múltiplas formas: racismo, misoginia, exclusivismos e xenofobias.

 

 

IHU On-Line - Recentemente, a senhora mencionou, numa entrevista, que vários movimentos evangélicos são contrários ao presidente Jair Bolsonaro porque ele desconfigura a essência da mensagem cristã. Como a senhora analisa, de um lado, a aproximação do presidente a setores cristãos e seus pronunciamentos dirigidos aos "cristãos" e, de outro lado, a interação desses setores com o presidente?

Romi Bencke - Sim, existem vários movimentos evangélicos que se articulam e se posicionam contrários ao projeto político bolsonarista. Estes movimentos são formados, em sua maioria, por mulheres evangélicas e juventudes periféricas. São pessoas que desejam manter uma identidade confessional, mas que não concordam com as alianças político-partidárias que são realizadas por algumas igrejas. Estas pessoas mantêm sua identidade evangélica, pentecostal, mas se reúnem em grupos autônomos. Não são grupos grandes, mas que contribuem muito para teologias críticas.

Sobre a aproximação do presidente com parte de setores cristãos, avalio que é uma prática que ele realiza com habilidade, mas é uma prática antiga, que é a de identificar em setores religiosos uma espécie de "curral" eleitoral. Ele realiza um discurso conservador, e garante alguns privilégios para se manter no poder. No entanto, destaco, esta não é uma prática única e exclusiva do atual presidente. Ela se repete sempre que há eleições. É uma prática assumida por todos os partidos. Vejo que em um debate sobre a reforma do sistema político, um grande desafio é pensar a relação entre igrejas e partidos políticos.

 

 

IHU On-Line - Como as igrejas cristãs podem responder a essa desconfiguração da mensagem cristã?

Romi Bencke - Com muita autocrítica e investindo em formação teológica crítica e aberta para interagir com a sociedade moderna. Não se entregando ao discurso fácil de prosperidade e de combate ao inimigo nem à divisão simplória da humanidade entre bem e mal.

 

 

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