18 Dezembro 2023
O procedimento, que tem como centro o prédio da Sloane Avenue teve início em julho de 2021. O Papa Francisco já retirou da Secretaria de Estado os fundos que ela geria de forma autônoma.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Repubblica, 15-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Foi um processo, mas não só isso: aquele que termina depois de dois anos e meio amanhã no Vaticano foi também o “teste de resistência” jurisdicional para um pequeno Estado que ainda está aprendendo a dosar a invocação da misericórdia e a repressão da corrupção, o fim do poder temporal e as exigências da vida de um Estado; foi a epifania dos conflitos desencadeados pela reforma das finanças programada pelo Papa Francisco; e foi o palco que exibiu uma demonstração de incompetência e opacidade que fica registado, independentemente da sentença, como um alerta sobre como a Igreja não deveria gerir o dinheiro.
No centro do processo está o prédio da Sloane Avenue 60, no exclusivo bairro de Chelsea, em Londres, um antigo edifício da Harrods que a Secretaria de Estado decide adquirir em 2014, a título de investimento, com a participação no fundo Athena Global do financista Raffaele Mincione. Os negócios são menos vantajosos do que o previsto e a Santa Sé recorre ao corretor Gianluigi Torzi, que – traiçoeiramente? – mantém o controle do prédio graças a um pacote de 1000 ações que venderá a preço altíssimo. No espaço de poucos anos a empreitada custou à Santa Sé 350 milhões de dólares e, entre comissões, hipotecas, lucros cessantes, bem como uma desvalorização pelo Brexit, provoca prejuízos, segundo a acusação, de 217 milhões. Um buraco igual a um terço dos fundos da Secretaria de Estado. Ao dano econômico soma-se o de reputação, já que para aquela caixa também conflui o Óbolo de São Pedro, ou seja, as esmolas que todos os anos os fiéis de todo o mundo enviam ao Papa. Tanto que em 2022 o prédio é revendido por 186 milhões de libras (233 milhões de dólares): para alguns, um erro, a perda teria sido amortizada ao longo do tempo, mas mantê-lo constituiria agora um dano de imagem insustentável. Poucos duvidam que houve uma fraude, mas quem se beneficiou? O Vaticano foi vítima ou cúmplice?
Um processo extraordinário se abre em julho de 2021: é a primeira vez, como disse Bergoglio, que “a panela é destampada por dentro”. De fato, as investigações foram desencadeadas pelo Instituto para as Obras de Religião. Quando o novo Substituto, Monsenhor Edgar Pena Parra, que tenta desarmar a bomba que herdou (“Una Via sacra”), o IOR – em particular o diretor geral, Gianfranco Mammi, muito ouvido pelo Papa - primeiro concorda com um empréstimo para ficar com cem por cento do imóvel, depois o nega. E, apesar das garantias da autoridade financeira, denuncia o caso ao gabinete de auditoria (uma espécie de Tribunal de Contas) e à magistratura do Estado Pontifício.
Nunca houve tantos réus (dez, entre homens do Vaticano e pessoal externos) e nunca aconteceu de haver um cardeal entre eles: Giovanni Angelo Becciu, Substituto para os Assuntos Gerais – o homem-máquina da Secretaria de Estado – na época em que foi decidido o investimento. Investigado (além de destituído de suas funções e "suspenso", no aguardo do juízo, nos direitos ligados à dignidade cardinalícia) porque Francisco, de quem foi colaborador próximo durante anos, modificou as normas que excluíam que um "príncipe do Igreja" pudesse ser julgado por um juiz ordinário. Quando apenas poucos anos atrás o tribunal investigou a reforma da cobertura do Cardeal Tarcisio Bertone o cardeal nem sequer foi ouvido como testemunha, hoje a acusação pede 7 anos e 3 meses de reclusão para Becciu.
O megaprocesso, porém, mostrou falhas desde o começo impugnadas pelas defesas. Dois capítulos do livro de reclamações. Num estado em que os poderes legislativo, executivo e judiciário são chefiados pelo Papa, os advogados contestaram o fato de Francisco ter intervindo tranquilamente, depois das investigações já terem começado, para ampliar as escutas telefônicas e outros instrumentos de investigação. Além disso, o sistema acusatório do "promotor da justiça" Alessandro Diddi – na Itália, advogado do foro de Roma – tropeçou. Um homem que tinha uma responsabilidade não pequena no investimento, Monsenhor Alberto Perlasca, não investigado, foi a testemunha principal. O "memorial" que ele entregou aos investigadores resultou ter sido solicitado por duas mulheres, Genoveffa Ciferri e Francesca Immacolata Chaouqui - esta última protagonista do segundo caso “Vatileaks”– não relacionadas ao processo.
É improvável que toda a série de acusações contra os vários réus (peculato, corrupção, extorsão, lavagem de dinheiro e autolavagem, fraude, abuso de poder, apropriação indébita...) passará pelo escrutínio do colégio de jurados, até mesmo as partes civis já estão convencidas disso.
Agora será Giuseppe Pignatone - uma longa carreira de procurador na Itália, magistrado que julga no Vaticano - para decidir se Becciu foi vítima de um "teorema", como afirmam seus advogados, ou se "deixou os mercadores entrarem no templo", como disse Paola Severino, advogada de parte civil da Secretaria de Estado. Se, após 85 audiências, existe prova da prática de crime ou apenas da inadequação de determinadas decisões; se existe fraude ou tudo se resumir a "má gestão”.
Certamente, em quase dois anos e meio de debate, Pignatone garantiu a todas as partes, deixando tanto à acusação como às partes civis e à defesa, a possibilidade de expor os seus argumentos de forma detalhada, sem apressar nem os prazos nem os direitos das partes. Longe de se colocar ao lado do promotor da justiça - com quem, aliás, já se confrontou no tribunal italiano para o julgamento da "máfia capital", quando Pignatone era procurador e Diddi defensor de Salvatore Buzzi– o presidente do tribunal, de fato, o cutucou várias vezes com uma pitada de humor e o conteve-se em alguns excessos verbais, e durante os interrogatórios fez frequentemente perguntas cruciais de esclarecimento aos arguidos e às testemunhas. Embora o sistema judiciário do pequeno Estado pontifícia seja, em suma, singular e em evolução, o processo realizado sobre o prédio da Sloane Avenue foi, afinal, um verdadeiro processo.
O que é certo é que o buraco no balanço é enorme; que é o Substituto, e não o Secretário de Estado ou o Papa, o homem-chave das decisões de investimento; e que na negociação a Secretaria de Estado não contou com um advogado competente nem fez uma adequada due diligence. Problemas que surgiram no contexto da reforma das finanças, iniciada por Bento XVI e acelerada por Francisco, que viu diversas vezes, nos últimos anos, os diferentes atores - IOR, Secretaria de Estado, autoridade financeira, Secretaria da Economia - combater entre si uma batalha que ecoou na sala do processo.
Durante as investigações, descobriu-se então que o Cardeal Becciu, considerando-se perdido, tentou pressionar o Papa para que o defendesse, chegando ao ponto de gravar uma ligação privada sem o conhecimento de Francisco. O cardeal também fez duas ofertas para recomprar o prédio de Londres, quando o Vaticano decidiu desfazer-se dele, que mais tarde resultaram vir de testas de ferro que pretendiam esconder as perdas. Descobriu-se também - duas linhas distintas de investigação - que para construir um forno social o cardeal enviou 125 mil euros da Secretaria de Estado para uma cooperativa da sua diocese, Ozieri na Sardenha, presidida por seu irmão (há quase cinco mil dioceses no mundo); e que pagou generosamente a uma senhora da Sardenha, Cecília Marogna, amiga da família Becciu, encarregada, por mandato do Papa, de atuar, graças a supostas competências de inteligência, para libertar uma freira sequestrada em Mali.
O processo revelou um ambiente de opacidade, incompetência, decisões arbitrárias, falta de prestações e controles, redes de relações pessoais que substituíram aquelas institucionais. E que já convenceram Francisco a tomar medidas draconianas.
O Papa já transferiu os fundos da Secretaria de Estado à Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA); assim pôs fim a uma autonomia de caixa criada por Paulo VI - que tinha pouca confiança no IOR do Monsenhor Paul Casimir Marcinkus - e fortemente contestada, nos últimos anos, pelo Cardeal George Pell bem como pelo IOR e pela própria Apsa. Francisco introduziu, entre ele e as dotações “por fora”, o filtro de uma comissão para os assuntos reservados. O Papa promulgou também tanto um código de compras destinado a “combater as fraudes, o clientelismo e a corrupção”, como diretrizes para os investimentos, que agora são cuidadosamente avaliados pela Secretaria da Economia. Decisões políticas tomadas na medida para evitar que uma negociação como àquela do prédio de Londres volte a ocorrer: seja qual for o veredicto do processo.
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Caso Becciu, cai a cortina sobre um espetáculo de opacidade e incompetência nas finanças do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU