06 Dezembro 2022
"Duas mulheres - uma idosa amiga do prelado e uma senhora, digamos, muito polêmica - mantêm na mão não apenas os magistrados da corte do Vaticano, manobrando o testemunho decisivo de Perlasca, mas, em última análise, o próprio papa que afirma estar à espera de uma resposta do processo antes de liberar o infeliz cardeal de suspeitas e acusações", escreve a historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado por La Stampa, 02-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sejamos honestos: o Vaticano dá grande satisfação aos leitores de thrillers [suspenses] que há tempo se acostumaram a vê-lo no centro de complicadas histórias criminais. De fato, a realidade está superando em muito a ficção, abrindo cenários que um honesto escritor de romances de mistério jamais ousaria imaginar. Em primeiro lugar pela presença de inquietantes figuras femininas que parecem ter um papel central nos assuntos judiciais do outro lado dos muros leoninos. A ocasião para estas reflexões é dada pelas últimas notícias sobre o longo e conturbado processo contra o cardeal Becciu, na realidade inserido em outro processo relativo à conhecida questão da venda de um edifício de luxo em Londres para o qual teriam sido utilizados aquele que é definido como o dinheiro do papa para os pobres.
Um caso em que Becciu realmente desempenha um papel marginal, tanto que o processo contra ele estava indo muito mal para a promotoria, que via sua investigação desmentida dia após dia por testemunhas e documentos. De forma que, os jornais, depois de terem publicado manchetes sobre o caso no início, já estavam perdendo o interesse por ele, como aliás sempre fazem quando o processo desmente as acusações lançadas pela mídia, ou seja, por eles mesmos. Em suma, os réus estavam se caminhando tranquilamente – ao que tudo sugeria – para a absolvição.
É neste ponto que, no entanto, para reavivar o interesse midiático, são divulgadas novas notícias sobre telefonemas de Becciu ao papa, infelizmente gravados sem o conhecimento do pontífice, além de outras gravações de conversas privadas entre o cardeal e seus familiares em que ele se expressava, digamos com certa liberdade, em relação ao vigário de Cristo na terra. Na verdade, nada realmente relacionado a questões processuais, mas certamente uma discreta propaganda negativa contra Becciu. A divulgação dos telefonemas serve para concentrar novamente a atenção sobre ele, ou seja, sobre o imputado, e para desviar a atenção do longuíssimo depoimento do seu grande acusador, Alberto Perlasca, que mostrava grande dificuldade face às prementes perguntas da defesa. Acima de tudo, algumas das respostas de Perlasca estavam revelando que muitas de suas afirmações – relatadas em um depoimento-chave da promotoria – haviam sido sugeridas de fora, mesmo que o interessado não se lembrasse por quem. Mas eis que chega mais uma reviravolta: explode a bomba das mulheres, até aquele ponto nas sombras. Figuras femininas que ninguém ousaria sequer suspeitar tão decisivas neste universo só de homens.
Então, aqui está a idosa senhora Genoveffa Ciferri, amiga alinhada na total defesa de Perlasca, que, vendo seu protegido agitado e em embaraço, pressionado entre responder perguntas sobre quem o havia insuflado sobre o que dizer e o silêncio, pega a caneta e escreve uma espantosa carta a Diddi, o promotor de justiça do Vaticano (ou seja, o ministério público). Essa é justamente a notícia de ontem.
Depois de ter justificado a revelação que está prestes a fazer pelo seu bom coração e os bons sentimentos que a animam, Ciferri revela que foi ela quem manipulou o amigo prelado, Perlasca justamente, mas a conselho de outra mulher já envolvida em eventos obscuros do Vaticano e processada, a conhecida Francesca Immacolata Chaouqui. Em suma, teria sido Chaouqui, muito próxima dos magistrados, quem sugeriu a Ciferri as respostas que Perlasca, por sua vez, tinha que pronunciar. Ela, portanto, havia pilotado o caso contra Becciu, sempre prometendo em troca a absolvição total de Perlasca tão caro para Ciferri. Esta, na verdade, declara que teve algumas dúvidas sobre o verdadeiro mandante dos conselhos recebidos, e sobretudo confessa o seu constrangimento por ter mentido a Perlasca, dizendo-lhe que as sugestões tinham vindo diretamente do magistrado em vez que de Chaouqui, como ela agora admite. Só recentemente, exasperada com o comportamento um tanto desajeitado de Perlasca durante seu último interrogatório, ela confessaria a verdade a ele: quem a inspirava não era outra senão Chaouqui. Então decide contar essa versão dos fatos em uma carta a Diddi, que o próprio destinatário torna pública. E assim, se já o processo, como tinha se desenrolado, certamente não dava muitas garantias de buscar uma justiça imparcial, agora a situação precipitou.
De fato, descobre-se que as duas mulheres - uma idosa amiga do prelado e uma senhora, digamos, muito polêmica - mantêm na mão não apenas os magistrados da corte do Vaticano, manobrando o testemunho decisivo de Perlasca, mas, em última análise, o próprio papa que afirma estar à espera de uma resposta do processo antes de liberar o infeliz cardeal de suspeitas e acusações. Em suma, Cherchez la femme também funciona atrás dos muros do estado mais patriarcal do mundo? Parece que sim. Mesmo que se substitua o sexo pelo afeto maternal exibido pela idosa senhora Ciferri. Mas talvez, cabe pensar, as duas mulheres também poderiam ser movidas pela satisfação de serem elas, duas mulheres aparentemente excluídas do poder, a movimentar peões tão importantes, chegando mesmo, quem sabe, a influenciar um próximo conclave.
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Francisco, Becciu e o suspense em fim. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU