05 Janeiro 2023
Os supostos defensores do papa emérito, e com ele de um modelo ultraconservador de Igreja, redobrarão seus ataques contra Bergoglio, que Bento XVI tentou, sem sucesso, deter, desde sua aposentadoria. Haverá um cisma anti-bergogliano quando Ratzinger estiver morto?
O comentário é de Jesús Bastante, publicado por Religión Digital, 04-01-2023.
"Há apenas um Papa, e seu nome é Francisco". De forma contundente, Joseph Ratzinger respondeu em 2018, por carta, às teses do cardeal Walter Brandmuller, um dos quatro cardeais que chegaram a ameaçar declarar o Papa Francisco 'ilegítimo' por sua abertura à comunhão para divorciados recasados, e por abrir o debate sobre a possibilidade de consagrar padres casados ('viri probati') em recantos que, como a Amazônia, não tinham padres.
O movimento de Brandmuller, secundado por outros cardeais como o americano Burke (um dos mais próximos colaboradores eclesiásticos de Donald Trump), o italiano Carlo Cafarra e Joachim Meisner, ficou conhecido como movimento 'Dubia', devido ao documento enviado pelos quatro a Francisco no qual eles exigiram que ele se retratasse dessas decisões, ou o declarariam incapaz de continuar a liderar a Igreja Católica.
Dos quatro cardeais anti-Francisco (Carlo Cafarra, Joachim Meisner, Raymond L. Burke e Walter Brandmüller), apenas os dois últimos ainda estão de pé. E muito ativo. Há alguns meses, Brandmüller voltou a pedir uma mudança nos regulamentos do Vaticano para a eleição do Papa para 'impedir' um 'Bergoglio II', instando que apenas os cardeais romanos (da Cúria) interviessem em um hipotético conclave.
Eles não são os únicos, nem mesmo os mais poderosos, entre os inimigos do Papa Francisco. A lista é conhecida de todos: Müller, o todo-poderoso ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; Robert Sarah, ex-prefeito da Congregação para o Culto e um dos protagonistas do maior embaraço entre os opositores a Bergoglio; o espanhol Rouco Varela; ou o ex-núncio nos Estados Unidos, Carlo María Viganò... são apenas alguns dos nomes de um movimento, mais poderoso do que parece, que busca reverter as reformas implementadas por Francisco na última década e que, apesar de seu ímpeto, sempre encontraram as portas fechadas para qualquer apoio direto de Bento XVI.
Também não se trata apenas de eclesiásticos: muitos dos políticos que hoje desfilam pela capela funerária de Ratzinger, de Mateo Salvini a Viktor Orban, passando por Giorgia Meloni, e outros que não vieram a Roma, como Steve Bannon ou Santiago Abascal, são opositores declarados do 'cidadão Bergoglio', como o líder da extrema-direita espanhola costuma chamar o Papa.
Ratzinger nunca encorajou, pelo menos em público, qualquer estratégia que pudesse ser interpretada como apoio aos inimigos de Francisco. O que acontecerá agora, que o contrapeso moral de Ratzinger não existe? Especialistas do Vaticano preveem que os críticos de Francisco entrarão em "guerra total" contra o papa argentino. O primeiro a fazê-lo é o secretário pessoal de Bento XVI, Georg Gänswein, que já anunciou a publicação de suas 'Memórias' nas quais esclarecerá escândalos como Vatileaks, abusos sexuais ou o 'caso Emanuela Orlandi', e que atacará a "calúnia" contra o Papa emérito.
Numa das muitas entrevistas que Gänswein concedeu nestes dias, destaca-se a concedida ao semanário Die Tagespost, em que o secretário de Bento XVI assegura que o Papa emérito leu o decreto Traditionis custodes "com dor no coração", com o que Bergoglio pôs fim às missas em latim e de costas para o povo, reaberto por seu predecessor em 2007. "(Bento) não teve vontade de tirar este tesouro do povo", denunciou o secretário do falecido Papa.
As 'Memórias' de Gänswein se apresentam, assim, como a primeira rodada de um novo combate no qual, seguramente, reaparecerão personagens como o ex-núncio Viganò, que acusou o Papa Francisco de desviar o olhar do caso, dos abusos do ex-Cardeal McCarrick, líder da Igreja americana durante o pontificado de João Paulo II e Bento XVI, e que foi expulso do colégio cardinalício por Bergoglio.
Espera-se também que os ataques sejam redobrados pelo ambiente do também deposto cardeal Becciu, protagonista de um macrojulgamento por desvio de fundos vaticanos para a criação de uma diplomacia paralela e pela famosa venda do palácio londrino. Becciu foi um dos primeiros a reivindicar a figura de Bento XVI e sua nomeação como Doutor da Igreja, algo em que concordou com o cardeal Rouco Varela e o ex-prefeito Müller.
Ambos foram dois dos protagonistas da 'homenagem' (alguns dizem ultraconservadora) organizada em outubro passado pela Associação Católica de Propagandistas do CEU. Durante o simpósio (que também contou com a participação de outros bispos claramente antifrancisquistas, como Reig Pla ou José Ignacio Munilla), o cardeal alemão destacou que "as questões centrais da Igreja não devem ser as mudanças climáticas ou a política de imigração, mas o Evangelho de Jesus", no que foi interpretado como um duro golpe nos eixos programáticos do pontificado de Francisco, muito menos centrados no litúrgico ou na moralidade das atitudes do que na misericórdia e na abertura aos distantes e sofredores.
“O Concílio Vaticano II foi a centelha para a ruptura da Igreja”, sublinhou Müller naquele fórum, que sublinhou que “a Igreja não é um programa para estabelecer uma sociedade capitalista liberal ou social-comunista, nem para criar uma nova ordem mundial em 2030”.
Outro dos grandes opositores do atual pontificado, colaborador próximo de Bento XVI e considerado pelos ultraconservadores como um possível 'papável' no caso de um hipotético conclave é o cardeal guineense Robert Sarah. Ex-prefeito do Culto Divino, foi um dos responsáveis pelo retorno à liturgia tradicional, abençoado por Ratzinger e, que desde o início do pontificado de Francisco se manifestou contrário às aberturas do argentino aos casais homossexuais, aos divorciados recasados e a uma nova olhar para a sexualidade e controle de natalidade.
Em janeiro de 2020, ainda prefeita, Sarah anunciou a publicação de 'Do fundo de nossos corações', escrito 'a quatro mãos' junto com Ratzinger, e no qual o Papa foi diretamente pressionado a não cogitar a possibilidade de ordenar homens casados.
O escândalo foi desfeito em poucas horas, quando o secretário Gänswein -considerado pelas esferas vaticanas como o verdadeiro mandante da trama- teve que se apresentar e, em nota oficial, exigir que a autoria do Papa emérito fosse retirada do o volume, assegurando que Ratzinger "nunca aprovou nenhum projeto de livro com dupla assinatura".
Gaenswein, em comunicado oficial, destacou que "o papa emérito sabia que o cardeal estava preparando um livro e lhe enviou seu texto sobre o sacerdócio, autorizando-o a usá-lo como quisesse", mas que "não havia aprovado nenhum livro com dupla assinatura nem tinha visto a capa. Depois de alguns meses, Sarah foi dispensada do cargo de prefeita, e Gänswein retirou-se do cargo de prefeito da Casa Pontifícia (responsável pela agenda do Papa), com a desculpa de cuidar exclusivamente do pontífice emérito.
Com a morte de Ratzinger, ninguém duvida que Gänswein não voltará ao serviço direto de Bergoglio. Entretanto, da Santa Sé há um esforço especial para destacar os “muitos encontros, públicos e privados, entre o Papa Francisco e o Papa Emérito Bento XVI”, sempre “marcados por grande cordialidade, oração comum, afeto e respeito mútuo”. O site oficial da Santa Sé, Vatican News, dedica uma extensa reportagem para resgatar todas as vezes em que Francisco visitou ou ligou para Bento XVI desde sua renúncia até sua morte. Talvez tentando colocar o curativo antes da ferida. Ou, com certeza, sabendo que, uma vez morto Ratzinger, os mesmos 'lobos' que cercaram o pastor que decidiu renunciar há uma década, atacarão impiedosamente seu sucessor. Parece que tem uma corda por um tempo.
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A morte de Ratzinger enterra o 'cisma' contra Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU