04 Janeiro 2023
"Agora Francisco, a quem também não faltam elementos de continuidade com seus antecessores, poderá jogar em campo aberto, sem a limitação imposta pela coabitação com o papa emérito. O que também obrigará seus adversários a assumirem a partir de agora o ônus da disputa sem mais poder se agarrar às vestes do idoso teólogo", escreve Francesco Peloso, jornalista, em artigo publicado por Domani, 03-01-2023. A tradução é Luisa Rabolini.
Entre as consequências do desaparecimento de Bento XVI deveria estar, pelo menos no papel, uma aproximação do momento em que o Papa Francisco poderia seguir o caminho trilhado pelo seu antecessor. Bergoglio, já atrapalhado por várias complicações físicas e problemas de saúde, poderia renunciar. Também porque ele não tem mais o problema da eventual convivência com um outro papa emérito e um terceiro papa reinante. Um cenário que poderia gerar confusão entre os fiéis e tirar credibilidade à instituição.
Francisco já anunciou que, em caso de renúncia, se retirará para viver no palácio de Latrão, portanto em Roma, mas fora do Vaticano, e se identificará como bispo emérito de Roma e não papa emérito. No entanto, o pontífice argentino também poderia ser tentado por outra opção: a de continuar, ainda que por tempo limitado, a governar a Igreja sem mais a sombra de seu antecessor.
Porque de fato Ratzinger foi um ponto de referência, com a sua mera presença, para uma vasta área de nostálgicos tradicionalistas que contestavam as aberturas e o modelo de igreja promovido pelo Papa Francisco. O papa emérito também havia se tornado o símbolo de uma oposição a Bergoglio. Não só pelo seu papel de guardião e defensor da tradição, mas também por ter sido durante muito tempo o braço direito e muitas vezes o inspirador de João Paulo II.
Agora Francisco, a quem também não faltam elementos de continuidade com seus antecessores, poderá jogar em campo aberto, sem a limitação imposta pela coabitação com o papa emérito. O que também obrigará seus adversários a assumirem a partir de agora o ônus da disputa sem mais poder se agarrar às vestes do idoso teólogo.
Entre os cardeais que mais veementemente se opuseram a Bergoglio desde o início de seu pontificado, encontramos o alemão Gerhard Ludwig Müller, até 2017 prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé nomeado em 2012 por Bento XVI, e o estadunidense ultratradicionalista e pró-Trumpiano, Raymond Leo Burke, a quem Ratzinger nomeou como cardeal em 2010.
Por outro lado, a conferência episcopal onde a oposição a Francisco é mais forte é a dos Estados Unidos (posição, porém, não compartilhada por toda a Igreja estadunidense). No entanto, há algum tempo Francisco vem nomeando várias personalidades próximas ao seu magistério como cardeais nos EUA, por isso, entre aqueles que estão na trincheira oposta, destaca-se em particular o moderado cardeal Timothy Dolan, arcebispo de Nova York, muito sensível às questões do movimento pró-vida e às pautas do Partido Republicano.
Na América Latina, a oposição ao Papa Francisco é mais sutil, quase fora do radar, pelo menos entre os cardeais. Afinal, é uma área à qual Bergoglio dedica muita atenção específica.
Talvez entre os cardeais da área latino-americana mais ligados ao período Wojtyla-Ratzinger, sem ser explicitamente categorizado como adversário de Francisco, está o arcebispo de São Paulo no Brasil, Pedro Odilo Scherer.
Na África, fazendo oposição resoluta e aberta ao papa argentino, tentando até usar o papa emérito em função anti-Begoglio, havia o cardeal guineense Robert Sarah, até fevereiro de 2021 na liderança da Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos.
Além disso, se o pontificado de Francisco durar pelo menos até o final de 2023, mais 11 cardeais deixarão as fileiras dos grandes eleitores do Conclave ao completarem 80 anos. O número total de cardeais eleitores, no final deste ano, cairá, portanto, dos atuais 125 para 114, número que caberá ao papa decidir se ajustar ou deixar inalterado.
A Itália está destinada, ao longo de 2023, a perder 5 cardeais eleitores, caindo de 18 para 13. O primeiro a completar 80 anos, em 14 de janeiro, será o ex-arcebispo de Gênova e ex-presidente da CEI, Angelo Bagnasco. Quem sabe se a morte de Bento XVI não ajudará a igreja italiana a sair das águas pantanosas em que se encontra há muito tempo. Claro, se os bispos italianos quiserem recuperar um pouco do peso perdido no próximo conclave, terão que dar alguns sinais de vida mais fortes do que os vislumbrados até agora. Embora o novo presidente da CEI, o arcebispo de Bolonha Matteo Zuppi, tenha tentado movimentar um pouco a cena.
No que diz respeito ao papa, será necessário ver se ele pretende retomar nas mãos aquela que foi uma intuição no início de seu pontificado, ou seja, a renúncia da Santa Sé a se expressar sobre todos os aspectos e problema aberto de vida pública ou na igreja em todos os cantos do mundo.
Na exortação apostólica Evangelii gaudium de novembro de 2013, que ele mesmo definiu como programática do pontificado, Bergoglio afirmava: “Não creio que se deva esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e o mundo. Não é oportuno que o papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se prospectam em seus territórios. Nesse sentido, sinto a necessidade de proceder a uma saudável ‘descentralização’”.
O conceito foi reafirmado em Amoris laetitia, documento do papa que encerrou os dois sínodos sobre a família realizados em 2014 e 2015. “Lembrando que o tempo é maior que o espaço – escreveu Francisco – desejo reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas com intervenções do magistério". “Naturalmente – acrescentou – é necessária uma unidade de doutrina e prática na Igreja, mas isso não impede que existam diferentes maneiras de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que dela derivam”.
Nos últimos anos, desde o Sínodo sobre a Amazônia até o da Igreja alemã, apareceram fortes propostas para modificar a vida eclesial em matéria de celibato obrigatório, papel das mulheres e dos leigos, acolhimento de casais homossexuais. Até agora, no entanto, prevaleceu em Francisco mais o medo do cisma tradicionalista do que a coragem de mudar pelo menos sobre algumas das questões levantadas.
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A morte de Ratzinger coloca Bergoglio em uma encruzilhada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU