12 Setembro 2022
O prestigioso psicanalista e escritor argentino Jorge Alemán exilou-se na Espanha em 1976, em plena ditadura argentina, e quando o país ibérico acabava de iniciar a transição para a democracia, após quase quarenta anos do regime ditatorial de Francisco Franco, que morreu em 20 de novembro de 1975. Na época, Alemán tinha 25 anos. Desde então, vive em Madri.
Autor de numerosos livros que dão conta de um pensamento que une psicanálise, filosofia e política, além de livros de poesia, durante a segunda metade dos anos 70 fez parte da vanguarda da psicanálise lacaniana na Espanha e é um dos intelectuais mais consultados. Mas ele nunca se esqueceu de sua terra. Por isso, quando perguntado sobre até que ponto sua teoria pode explicar o que a sociedade argentina está vivendo, Alemán consegue traçar um panorama agudo e lúcido tanto do discurso capitalista que Jacques Lacan abordou, quanto do discurso de ódio no presente argentino.
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 08-09-2022. A tradução é do Cepat.
Em que aspectos se cumprem as características do discurso capitalista de que falava Lacan nestes tempos?
Em todos os aspectos. É a minha tese. Há uma homologia estrutural entre o discurso capitalista e o neoliberalismo. O neoliberalismo é o triunfo, em termos heideggerianos, da técnica. É a ideia de formatar o cérebro através das estruturas cognitivas, das nanotecnologias e das redes de computadores. É administrar o cérebro como se fosse uma empresa. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo tenta passar a culpa por toda a violência do sistema para o sujeito; isto é, o próprio sujeito é culpado de todas as circunstâncias adversas que ele tem que viver neste mundo.
A ideia é que cada sujeito considere sua liberdade em termos de custo-benefício. Tudo isso foi previamente afirmado por Lacan quando escreveu o discurso capitalista. Ele falou da rejeição do amor; ou seja, esta espécie de gestão da alma que existe agora com os termos empatia, autoestima e resiliência que, na realidade, são termos que tentam treinar os sujeitos para suportar qualquer coisa ou para que a única realidade desses sujeitos seja o seu narcisismo.
Lacan também anunciou nesse discurso o mais-gozo, um termo muito problemático. Não se encontra apenas na classe dominante, mas também desempenha seu papel nos setores explorados e oprimidos. Basta ver quando se diz que há muitos setores da população em diferentes partes do mundo que votam contra seus próprios interesses. Se a estrutura do discurso capitalista fosse lida como devia, ver-se-ia que eles não estão votando contra seus próprios interesses. Mas os interesses dos sujeitos não são seus interesses vitais, não são os interesses do princípio do prazer, não são interesses homeostáticos. Eles estão em um além. São interesses ligados ao gozo.
E quando você coloca os interesses ligados ao gozo, tudo se torna muito mais problemático. Entende-se por que em uma favela há trocas de armas e marcas de todos os tipos. Finalmente, há um mercado. As exigências e os imperativos de desempenho continuam a operar no coração mesmo da pobreza.
“Há muito medo de que tudo fique pior do que está”, você disse a esse cronista em 2017, quando Mauricio Macri já era presidente. Diante dos acontecimentos ocorridos nos últimos tempos, sua análise teve um caráter inegável de previsão.
Sim, piorou muito. O mundo está muito pior. Ou seja, em consequência dos efeitos de destruição no discurso capitalista dos pontos de ancoragem, surgiu um tipo de subjetividade que não tem onde se amarrar, que flutua, como diria Lacan; que não tem um horizonte político onde se incluir. E o receptáculo de tudo isso tem sido a extrema direita. Não devemos confundi-la com as extremas direitas históricas. A extrema direita é uma agenda, não um partido político. E é esse híbrido de neoliberalismo e estrutura que se dispõe a fazer a destruição de todos os laços sociais, do sujeito, e transformar tudo em uma espécie de performance e treinamento para quem pode entrar no mercado ou para quem fica de fora.
E como analisa a partir da teoria psicanalítica os discursos de ódio e por que eles pegam em alguns sujeitos dessa maneira?
Se a pessoa não tem nenhum legado simbólico, se o horizonte histórico em que ela pode se reconhecer foi destruído, as pulsões de morte e as pulsões de destruição estão em todos os sujeitos. E se o sujeito é capturado de tal maneira que ele não tem mais história e a única coisa que ele ouve é o que está se movendo no presente absoluto e o que está se movendo está constantemente chamando à destruição e ao ódio de quem quer reintroduzir o campo transformador do popular, bem, há muito tempo o neoliberalismo entendeu que não vai se legitimar pelas instituições, que tem que ser legitimado pelo ódio. Se você olhar como o neoliberalismo funciona dos Estados Unidos à Europa, observará que não buscam a legitimidade nas organizações institucionais, mas que a presença do ódio é constitutiva do neoliberalismo.
E o tipo de rejeição que ocorreu com o kirchnerismo é muito semelhante a uma rejeição que se espalha pelo mundo? A pergunta é porque na Argentina costuma-se falar de uma semelhança entre 1955 e o tempo presente em termos desse tipo de discurso.
Obviamente, a Argentina tem suas peculiaridades. Primeiro, há o ódio clássico ao peronismo. Em segundo lugar, há o ódio ao feminino, encarnado na figura de Cristina, quando o feminino assume uma vocação política de transformação e de levar o campo popular ao poder. Isso se torna insuportável para muitos sujeitos, como o cara que buscava seu “minuto de glória”. Este sujeito que outro dia procurou o seu “minuto de glória” é fruto do seu ódio e da intersecção desse ódio com todos os aparelhos mediáticos que promovem, que não têm outra consistência senão o ódio que promovem.
Chegou-se ao limite de que muitos sujeitos rejeitam a vice-presidente até por causa de sua voz. Como os discursos de ódio se configuram no nível individual?
Então. O ódio acaba sendo não algo direcionado a apenas uma forma de pensar. O ódio se dirige ao ser. Esse é o poder que o ódio às vezes tem sobre o amor: o ódio se dirige à própria existência. Então, a voz, os gestos, o corpo, o jeito de se mover, tudo isso alimenta o ódio.
E de que maneira você acha que se pode analisar a ideologia na formação psíquica? Ou talvez o psíquico seja o criador da ideologia?
A grande contribuição da esquerda lacaniana – e trabalhei isso no meu último livro, Ideologia – é a relação muito problemática, mas relação ao fim, entre a ideologia e o fantasma. A ideologia tem a ver com a reprodução das relações sociais de produção; isto é, com a exploração e a opressão, mas o fantasma empresta à ideologia uma superfície de inscrição. Por exemplo, o que estávamos vendo neste sujeito outro dia. Esse sujeito, por qualquer motivo, realiza-se através de um ato violento que nele visa alcançar seu “minuto de glória”. Isso não é algo meramente ideológico, é também de ordem fantasmática.
O grande mérito de Althusser é que, ao ler Lacan e escrever sobre os aparelhos ideológicos do Estado, inscreveu o problema do estágio do espelho; isto é, o das identificações dentro da ideologia. Portanto, se você vê um imigrante na Europa que vota na extrema direita, diz-se: “Mas como pode ir contra os seus interesses?” Volto a insistir neste ponto: depende de quais identificações você tem, porque quando a história desaparece, as identificações se tornam muito fortes.
Freud dizia que uma mente saudável é aquela que não nega a realidade, mas se esforça para transformá-la. Se aplicado ao coletivo, em que aspectos esta é uma sociedade doentia e como pode ser transformada?
Os acontecimentos vão dizê-lo, porque a sociedade está realmente muito doente. Há muitos lugares no mundo, por exemplo, aqui na Espanha, onde a coalizão formada pelo PSOE, Izquierda Unida e Podemos fez as coisas com muito bom senso, levando em conta a pandemia, a guerra e o tempo que lhe tocou governar. E é provável que perca a eleição. Por quê? Do outro lado tem essa direita desinibida que propõe que não vai pagar a luz, que já afirmou na época que a quarentena era uma imposição. Devemos ter em mente que ficamos do lado dos argumentos, do lado das restrições, do lado do “devemos renunciar pelo bem comum”, e a direita está em processo de desinibição para que sejam posteriormente distribuídos por todas as partes. Enquanto isso, a fratura do social torna-se cada vez mais profunda e a desigualdade aumenta. No gozo proposto pela extrema direita está o aumento da desigualdade.
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“A presença do ódio é constitutiva do neoliberalismo.” Entrevista com Jorge Alemán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU