15 Setembro 2021
A escritora Edith Bruck fala do poeta judeu húngaro falecido nos campos de concentração e citado no último domingo pelo Papa Francisco em Budapest. “Ele se expressava com força e sensibilidade incomuns. Por isso o regime o queria mudo”.
A reportagem é de Stefania Fallasca, publicada por Avvenire, 14-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Penso também com emoção nas numerosas figuras de amigos de Deus que irradiaram a sua luz nas noites do mundo”. Em Budapeste, em meio a uma Europa cada vez mais desmemoriada, onde meio milhão de judeus foram deportados durante a noite do totalitarismo da barbárie nazista, o Papa Francisco quis homenageá-los com a obra de um grande poeta húngaro: Miklós Radnóti, “cuja brilhante carreira - disse o Papa aos representantes do Conselho Ecumênico de Igrejas e de algumas comunidades judaicas da Hungria - foi rompida pelo ódio cego daqueles que, só por ele ser de origem judaica, primeiro o impediram de ensinar e depois o roubaram da família”.
Sentada no sofá branco de sua casa romana, a poucos passos da Piazza di Spagna, naquela mesma sala que recebeu o Papa Francisco em fevereiro passado, Edith Bruck escuta em silêncio o que o Papa diz nesta viagem ao seu país de origem e sobre o poeta de suas próprias raízes judaicas. Por seu Pane perduto como testemunha do Holocausto, Edith Bruck recebeu recentemente o prêmio Viareggio e é tradutora de Miklós Radnóti para o italiano de uma coletânea de versos. Com a sabedoria de seus noventa anos, novamente escuta o que o Papa continua a dizer sobre este seu irmão poeta húngaro: “No mais escuro e depravado abismo da humanidade, continuou a escrever poesias, até à sua morte. O seu Taccuino di Bor é a única coletânea poética que sobreviveu ao Holocausto: testemunha a força de acreditar no calor do amor no frio do campo de concentração e de iluminar as trevas do ódio com a luz da fé”. Em seguida, mostra-me o volume que reúne poemas de Radnóti traduzidos para o italiano há mais de dez anos, para o qual escolheu este título retirado dos versos incisivos do poeta: Os macacos me entenderiam.
E começa a contar: “No final de junho de 1946, na margem do rio Rábca, perto da cidade húngara de Abda, na fronteira com a Áustria, foi reaberta uma vala comum na qual haviam sido jogados os corpos de vários deportados, mortos no local com um tiro na nuca. Na capa de chuva de um dos cadáveres, foi encontrado um poema, graças ao qual Radnóti, nascido em Budapeste em 1909, foi identificado. A bala pôs fim à sua dramática existência quando ele já estava exausto pelas marchas entre os vários campos de trabalhos forçados na Romênia, Sérvia e Hungria. Era 9 de novembro de 1944. Ele tinha 35 anos. Esses foram os últimos versos que foram encontradas em seu bolso. Descrevem a morte de um companheiro, um violinista, deixando-nos a imaginar, imediatamente a seguir, o seu próprio fim”. Vou lê-los: "Desabei ao lado dele, o corpo dele estava virado / já rijo, como uma corda que se rompe. / Uma bala na nuca. Você também vai acabar assim / sussurrava para mim mesmo / fica deitado tranquilo. / Agora da paciência floresce a morte". E depois uma frase em alemão: 'Der springt noch auf', soou acima de mim, / E lama misturada com sangue grudaram-se em meu ouvido."
“O que é impressionante é a frase em alemão e não em nossa língua materna”, observa Edith Bruck. Por quê? “Porque a matá-lo junto com outros homens que não eram mais úteis para os trabalhos forçados no campo de Bor não foram os SS alemães, mas os fascistas húngaros. Acho que Radnóti quis negar a si mesmo a verdade e escreveu aquela ordem em alemão porque não conseguia admitir ter sido morto por um filho da sua amada pátria”. Edith Bruck fala sobre sua 'mente alada', que nem as humilhações extremas, nem os trabalhos desumanos jamais conseguiram dobrar sua humanidade, clareza e liberdade interior.
“Desde as suas primeiras composições, Radnóti - explica - exprime-se com uma força e uma sensibilidade invulgares e o regime o queria mudo. Em um de seus primeiros poemas, ele acaba sendo julgado por insultar a religião; não a dele, é ressaltado. É dirigido a um Cristo que perdoa a nossa humanidade, que se sente atraído pelo homem. Estes são os versos incriminados: ‘Tenho vinte e dois anos. Assim devia parecer também Cristo no outono com a minha mesma idade; ele ainda não tinha barba, era loiro e as garotas / sonhavam com ele à noite’. O processo foi outro trauma para ele”. Pode-se falar da sua conversão ... “Sim, Radnòti em 1943, um ano antes do seu assassinato, se converte ao catolicismo, penso que este seja quase o ponto de chegada de um seu percurso natural. É uma conversão que certamente não lhe garante nenhum privilégio. Como todos os judeus, de fato, ele está sujeito às leis raciais, que o privam do que ele mais ama, além da poesia: o ensino”.
O Papa Francisco citou alguns poemas do Taccuino di Bor: “’Prisioneiro, perdi a medida de toda esperança’ (Taccuino di Bor, Carta à esposa); ‘E você, como você vive? A sua voz encontra eco neste momento?’ (Taccuino di Bor, Prima Ecloga)”, e depois comentou:” O poeta fez uma pergunta, que ressoa também para nós hoje”.
Quais versículos você escolheria entre aqueles que traduziu? Desviando o olhar pela janela, encara a árvore que viu crescer e finalmente retoma: "A arte de traduzir é quase um milagre, assim como o que acontece ao poeta é um milagre ... acredito que talvez seja sempre a poesia que nos escolhe. Seguindo Radnòti fui escolhida pelas poesias de seu amigo e contemporâneo Átila Josef, outro grande poeta húngaro que se suicidou aos 32 anos, que para mim não passavam de orações ou daquelas dele, de Radnòti, que não tocaram o meu coração, mas a alma. O seu canto não pode ser feito prisioneiro de nenhuma língua, é uma mensagem universal, um aviso ao homem para não continuar com as barbáries que se sucederam desde que o homem é homem: se este é um homem.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Miklós Radnóti, uma luz no abismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU