18 Setembro 2020
“Ser uma Igreja Católica no mundo global hoje significa escolhas difíceis. O que a Santa Sé e o papado podem fazer é limitado, e agir com responsabilidade significa que não há soluções fáceis ou simples”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano, professor da Villanova University, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 17-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, confirmou em 14 de setembro que há intenção, por parte da Santa Sé, de renovar seu acordo de dois anos com o governo chinês sobre a nomeação de bispos católicos no país comunista.
Parolin falou com jornalistas em um evento de homenagem ao falecido cardeal Achille Silvestrini, um arquiteto da estratégia do Vaticano durante o final da era da Guerra Fria da Ostpolitik, ou se engajando em um diálogo com as autoridades comunistas do Leste Europeu.
O acordo China-Vaticano, assinado em setembro de 2018, é o sucesso diplomático mais importante do pontificado do papa Francisco e do mandato de Parolin como secretário de Estado. As negociações bilaterais para sua renovação estão em andamento; suas repercussões e o interesse que despertam são muito maiores do que em outras negociações diplomáticas secretas envolvendo a Santa Sé, dado o risco de um novo tipo de Guerra Fria entre a China e os Estados Unidos.
E, é claro, em certas partes da Igreja nos EUA, a perspectiva da renovação do acordo causou consternação entre os proponentes de uma cosmovisão centrada nos EUA e um catolicismo centrado nos EUA.
Entre os críticos mais proeminentes está George Weigel, que escreveu um artigo de opinião em 31 de agosto para o The Washington Post – apenas o último de uma série de seus artigos nos últimos anos contra a abertura da Santa Sé à China. Este artigo é importante, à sua maneira, porque mostra os pressupostos históricos e teológicos falhos que norteiam Weigel.
A primeira suposição errônea é que o precedente histórico para o acordo China-Vaticano, a Ostpolitik, foi um fracasso. Weigel escreve: “A fracassada Ostpolitik do Vaticano na Europa Central e Oriental durante as décadas de 1960 e 1970 teve sucesso apenas em desabilitar e desmoralizar as comunidades católicas locais, enquanto o próprio Vaticano foi profundamente penetrado pelos serviços de inteligência comunistas”.
Este é um tema regularmente recorrente para Weigel, e se tornou comum em círculos intelectuais católicos conservadores nos Estados Unidos e recentemente também na Europa Oriental – parte da rejeição do mundo pós-Guerra Fria agora sendo favorecido por antiliberais naquela parte do continente (Isso foi descrito recentemente por Anne Applebaum em seu livro “Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism”.)
O que a interpretação ideológica que Weigel faz da história recente da igreja falha em reconhecer são os sucessos da Ostpolitik. Por exemplo, as autoridades comunistas deram permissão aos cardeais poloneses para participarem dos dois conclaves de 1978, com o segundo elegendo o cardeal polonês Karol Wojtyla como João Paulo II.
Os acordos de Helsinque de 1975 foram outra grande conquista da Ostpolitik do Vaticano. Eles ajudaram a fornecer uma base sólida de legitimidade para o serviço diplomático da Santa Sé, que às vezes era visto como algo remanescente do tempo dos Estados Pontifícios.
O Princípio VII dos Acordos de Helsinque afirma o “respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença” e afirma que “os Estados participantes reconhecem o significado universal dos direitos humanos e liberdades fundamentais, cujo respeito é um fator essencial da paz, justiça e bem-estar”.
Os acordos mostraram-se úteis para proteger as formas de dissidência na Europa Oriental e estabeleceram as bases para a consequente atividade diplomática do pontificado de João Paulo II: uma grande dádiva da Ostpolitik do Vaticano que Weigel considera um fracasso.
A segunda suposição errônea é que a política de Francisco e Parolin em relação à China pode ser comparada a outras aberturas diplomáticas do Vaticano em relação aos países comunistas no século XX. Há uma série de distinções que precisam ser feitas aqui.
O regime chinês contemporâneo é mais sobre hegemonia no mundo do que sobre comunismo: é mais sobre uma ideia da China ressurgindo como seu antigo eu imperial e dinástico (como era séculos antes do nascimento de Cristo) do que sobre o presidente Mao.
O objetivo da Ostpolitik era a sobrevivência da Igreja Católica na Europa, o berço histórico do Cristianismo, enquanto o acordo China-Vaticano ocorre em um novo cenário global onde o Cristianismo é na maioria dos países uma minoria em um mundo de diferenças religiosas, culturais e políticas.
Não se trata da Europa e do hemisfério ocidental, mas da Igreja Católica global no mundo global. Nesse sentido, a Polônia pós-Segunda Guerra Mundial de Wojtyla é uma comparação totalmente enganosa. Uma comparação mais adequada é, por exemplo, a posição da Igreja Católica na Índia ou na Indonésia hoje ou, melhor ainda, na China nos séculos XVII e XVIII.
É interessante traçar um paralelo entre religião e economia. Como o sinólogo italiano Francesco Sisci escreveu recentemente no Asia Times: “A Guerra Fria anterior foi fácil. A questão eram negócios ou não: o Ocidente e sua frente eram pró-negócios. A URSS e seus aliados acreditavam que os negócios eram a mãe de todos males. Seguiu-se a política. [...] A atual Guerra Fria é mais sutil, e não se trata de negócios ou não. É sobre que tipo de negócios com quais políticas”.
O mesmo pode ser dito da religião. A China de Xi Jinping não é sobre a ideologia ateísta oficial dos regimes comunistas do Leste Europeu pós-Segunda Guerra Mundial. Hoje, na China de Xi, a religião pode prosperar, mas apenas enquanto não desafiar a política e ajudar a política.
A terceira suposição falha diz respeito ao que entendemos por Vaticano e papado. Weigel escreveu que “o único poder que o Vaticano tem na política global do século XXI é a autoridade moral que vem com a defesa direta dos direitos humanos para todos”.
Isso é apenas parcialmente verdade. Neste mês, os católicos comemoram o 150º aniversário daquele dramático setembro de 1870: a declaração da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I, a tomada de Roma pelos italianos e o colapso dos Estados papais e a eventual interrupção do concílio.
Uma das duras lições aprendidas pela Santa Sé desde 1870 é que a diplomacia papal tem que contar com o exercício da autoridade moral papal mais do que com os habituais instrumentos tangíveis do poder estatal.
Por outro lado, o território inexplorado da atual ruptura da ordem internacional e as consequências que essa ruptura causa na paisagem das religiões globais hoje tornam mais visível a singularidade da Santa Sé no tratamento das questões internacionais.
Em outras palavras, a autoridade moral do papado é diferente de outras igrejas, também porque alguns instrumentos do poder do Estado são um aspecto fundamental da atividade da Santa Sé - pense nas missões diplomáticas da Santa Sé em quase todos os países do mundo, as missões diplomáticas credenciadas junto à Santa Sé, o status de observador permanente na ONU e a assinatura do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares.
Como o sinólogo Michel Chambon escreveu em fevereiro de 2018, antes do acordo China-Vaticano ser anunciado: “quando jornalistas e outros ativistas enquadram este encontro [entre o Vaticano e a China] como uma questão apenas de moralidade, eles de fato menosprezam o aspecto legal de tal, mais ou menos conscientemente, eles negam insidiosamente o direito da Santa Sé e, portanto, do próprio Santo Padre, de permanecer como uma entidade soberana. A seus olhos, o papa deveria ser apenas um líder moral dizendo ao mundo sobre o que é 'o bem'. Esta abordagem é altamente problemática, e aqueles que são católicos deveriam questioná-la cuidadosamente”.
Por um breve período de tempo em 2014, ensinei em Hong Kong, onde ainda tenho amigos. É angustiante ver o que está acontecendo e pode acontecer àquela cidade e à igreja ali, bem como saber o que está acontecendo às minorias étnicas e religiosas em outras partes da China.
Mas, como escrevi no jornal chinês Global Times em fevereiro de 2018, o que deve ser considerado é o quadro histórico de longo prazo da atividade internacional da Santa Sé e o objetivo pastoral de sua atividade diplomática.
Ser uma Igreja Católica no mundo global hoje significa escolhas difíceis. O que a Santa Sé e o papado podem fazer é limitado, e agir com responsabilidade significa que não há soluções fáceis ou simples.
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Não há soluções fáceis: uma resposta à crítica de Weigel ao acordo China-Vaticano. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU