18 Fevereiro 2020
Hoje marca o fim do Congresso sobre Segurança, evento anual realizado em Munique, onde líderes da área da segurança e política externa se reúnem. Ironicamente, o Estado que pode ter causado o maior impacto não possui um exército permanente e certamente tem muito pouca capacidade de segurança: o Vaticano.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 16-02-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na sexta-feira, 14 de fevereiro, o Vaticano e o governo chinês anunciaram que, às margens do evento de Munique, o arcebispo britânico Paul Gallagher, equivalente a um ministro das Relações Exteriores do Vaticano, se reuniu com o ministro das Relações Exteriores chinês Wang Yi, da China. O fato marcou o contato de mais alto nível entre os dois lados desde a tomada comunista da China em 1949.
Ironicamente, esse encontro ocorreu quase setenta anos após a expulsão, em 1951, do Mons. Antonio Riberi (que depois seria feito cardeal). Riberi era o último núncio (ou embaixador) apostólico na China. Ele foi expulso depois de reagir negativamente à insistência da China comunista por uma autonomia da Igreja Católica no país, dizendo: “Qualquer Igreja Católica assim chamada independente (...) é simplesmente uma igreja cismática, e não a verdadeira e única Igreja Católica”.
De acordo com os poucos detalhes divulgados publicamente, Gallagher e Wang discutiram os desenvolvimentos ocorridos desde um acordo histórico de 2018 relativo à nomeação de bispos na China, bem como sobre os esforços no combate ao coronavírus. A breve nota do Vaticano diz que os dois lados esperavam “intensificar a cooperação internacional para promover a coabitação civil e a paz no mundo”.
No começo da semana, o Papa Francisco rezou pelos afetados pelo coronavírus em sua Audiência Geral de quarta-feira, expressando uma proximidade com o povo chinês, e convidou os fiéis a orarem “pelos nossos irmãos chineses que sofrem desta doença cruel” do coronavírus.
Honestamente, o conteúdo do encontro de sexta-feira entre Gallagher e Wang é certamente menos significativo do que o fato de ele ter acontecido, visto que marca mais um passo em direção à eventual retomada das relações diplomáticas completas entre Roma e Pequim.
Para dizer o mínimo, o esforço do Vaticano para normalizar a sua relação com a China é controverso. O Cardeal Joseph Zen, de Hong Kong, que recentemente recebeu o Prêmio “Wei Jingsheng” de Defensor da Democracia Chinesa da presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, por sua defesa incansável dos direitos humanos e da liberdade religiosa no pais asiático, objetou dizendo que o Vaticano está essencialmente entregando gerações de católicos chineses que pagaram com sangue, durante décadas, por sua lealdade a Roma e pela indisposição deles de se submeter ao controle estatal.
Zen e outros também afirmam que, desde o acordo provisório de 2008, que teria dado à China um papel significativo na escolha de novos bispos católicos – é preciso dizer “teria dado” porque, até o momento, nem o Vaticano nem a China divulgou o texto do acordo –, ações de repressão a católicos e outras minorias religiosas acabaram se intensificando mais ainda.
No entanto, tem sido a política do Vaticano desde a época de São Paulo VI fazer todo o possível para reatar as relações com a China, considerando esta retomada algo essencial tanto para promover a vida católica normal no país quanto para o papel diplomático mais amplo do Vaticano como voz da consciência nos assuntos internacionais.
Na linguagem que ficou famosa pelo cientista político americano Joseph Nye, o Vaticano é, sem dúvida, o poder brando proeminente do mundo, ou seja, um ator global que depende da diplomacia, cultura e história para levar adiante a sua pauta, ao invés do poder político, econômico e militar. É uma importante religião mundial que também goza do status de um Estado soberano e faz uso do seu próprio corpo diplomático, havendo poucas dúvidas de que o papa – qualquer papa – ocupa o maior púlpito entre os líderes espirituais do planeta.
Enquanto isso, a China já rivaliza com os Estados Unidos como a maior potência do mundo, e alguns especialistas empregam o termo o “século chinês” para referir a ideia de que o século XXI está destinado a testemunhar a ascensão da China.
Dadas essas realidades, o Vaticano considerou o estabelecimento de relações normais com a China como o summum bonum de sua atividade diplomática por décadas, muito antes da chegada do supostamente dissidente Papa Francisco. A convicção é a de que não apenas os fiéis chineses se beneficiarão ao longo do tempo, podendo organizar a vida pastoral normalmente, mas também que o Vaticano conseguirá gradualmente atrair a China para um papel mais construtivo entre a comunidade das nações.
Se algo do tipo soa ingênuo, talvez é porque o seja. No entanto, é uma pergunta pertinente que um outro ator ocidental pode querer se fazer, especialmente agora. O presidente dos EUA, Donald Trump, fez da hostilidade para com a China um elemento básico de sua retórica, apesar de um novo acordo comercial; o Reino Unido está envolto pela dinâmica do Brexit; a França é dominada por escândalos políticos; e a Alemanha parece preparada para pelo menos um ano inteiro de caos em torno do fim da era Angela Merkel. Quanto à Itália, bem ... é a Itália.
O diagnóstico do Vaticano pode ser que, especialmente agora, importa que um parceiro estável, capaz de ter a visão de longo prazo das coisas, possa envolver a China a partir de dentro da estrutura de contatos diplomáticos regulares. O que quer que se pense aqui, há tempos isto é o que se passa Roma, e hoje mais do que nunca.
Conclusão: a imagem de sexta-feira, de um prelado do Vaticano e de uma autoridade chinesa de alto escalão provavelmente não será a última imagem que veremos, o que sugere uma nova era nas relações de poder brando e duro.
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Com o Vaticano e a China, os poderes brando e duro colidem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU