03 Julho 2019
Há um ano do triunfo do povo, após uma insurreição popular com votos nas urnas como a que ocorreu em 1 de julho de 2018, e 7 meses de governo, talvez a frase que melhor sintetiza a gestão de Andrés Manuel López Obrador é esta com que inicio esta análise. Um presidente movido por um profundo sentimento se justiça social, que se depara com o desmonte feito pelo modelo neoliberal tem como desafio muito mais que combater a corrupção estrutural no governo federal. E implica, para poder construir algo novo, desmontar o velho Estado neoliberal e colonial. Estado que tem bases muito sólidas.
A análise é de Katu Arkonada, cientista político, em artigo publicado por La Jornada e reproduzido por Portal Vermelho, 02-07-2019. A tradução é de Mariana Serafini.
Mas López Obrador está fazendo algo, é justamente isso, reconstruir a nação. A corrupção não é mais que uma metáfora (significante vazio, diriam alguns) para nomear o modelo neoliberal que semeou o México de pobreza, desigualdade e violência. Estes 12 ou 7 meses podem ser sintetizados em dez pontos chaves que permitem entender um México em processo de transformação, ainda que não seja profunda, nem tão rápida como desejamos:
Sempre a economia. Garantir as condições de vida materiais da população deve ser o principal objetivo de qualquer processo de transformação. Aumentar o salário mínio em 16,2% em seu primeiro mês de governo é só uma forma. No fundo, é a redistribuição, mesmo que seja parcial, da riqueza, via bônus universais. Se os programas sociais conseguem chegar de maneira rápida em milhões de pessoas, como tem acontecido com López Obrador, junto com a reforma trabalhista progressiva que incrementa os direitos da classe trabalhadora, o México pode se reincorporar ao caminho do crescimento e terminar o sexênio [o mandato presidencial é de seis anos no México] com 4% de incremento do PIB, como foi a meta. O crescimento baseado no aumento da demanda interna em curto prazo enquanto se vai reindustrializando o país a médio-largo prazo é a fórmula que já funcionou em outros processos progressistas do continente, e ainda que a direita econômica, política e midiática se assuste, é Keynes e não Marx o modelo a ser seguido.
A aposta econômica vem precedida de uma decisão férrea de austeridade republicana de dar exemplo com a própria práxis, ainda que isso tenha como eixo orientador uma decisão imóvel e errônea, na opinião de muitos, de não endividamento público. Além disso, não existe o refrão de “melhor prevenir que remediar”. Primeiro se detecta a enfermidade/erro, e depois se cura/corrige se for necessário.
Apesar da tentação de dividi-los em dois, não podemos separar estes conceitos. O modelo neoliberal no México só pôde ser implementado mediante a doutrina do choque, à violência mais selvagem que deixou o México todo semeado de valas comuns. E quem as ocupa são sempre os pobres de pele morena. Os programas sociais não devem só permitir respiros às maiorias sociais afogadas pelo neoliberalismo, mas deveriam servir, em médio-longo prazo, para reduzir a implicação de classes populares no esquema de violência promovido pelo narcotráfico e outros grupos de criminosos. Algumas decisões de governo, como o primeiro decreto firmado por López Obrador em 3 de dezembro, para criar a comissão especial sobre o Caso Ayotzinapa, está para além do simbólico. A designação de Omar Gómez Trejo [1] como titular da Unidade Especial de Investigação e Litígio para o caso Ayotzinapa, ratifica que o esclarecimento sobre o desaparecimento dos 43 estudantes, fato que cumpre 5 anos neste 26 de setembro, é uma política de Estado.
Contudo, a doutrina de choque é parte de um tabuleiro de jogo muito mais amplo, onde a economia criminal, que é muito maior que o narcotráfico, tem jogado um papel determinante. A frase de Carlos Fazio “não existe a guerra às drogas, mas a administração dos negócios da economia criminal” sintetiza muito bem m negócio que além de, ou talvez deveria dizer graças a, deixar um saldo de 250 mil mortos e 40 mil pessoas desaparecidas, se supõe que já corresponda a mais de 10% do PIB mexicano.
E ainda que a economia criminal seja mais que o narco, a forma como será enfrentado este problema é chave nesta equação. A anistia para os camponeses cultivadores e colocar sobre a mesa debates sobre a legalização da maconha, ou inclusive da papoula (que implicaria uma guerra com as máfias farmacêuticas legais), são um primeiro passo. Em algum momento será necessário fazer uma negociação, implícita ou explícita, com os grupos a quem foi entregue a soberania territorial em uma boa parte do país.
Na recuperação da soberania territorial a Guarda Nacional terá um papel determinante. Diante de policias locais ou estaduais que em muitos casos estão em conluio com as máfias territoriais, uma nova força de segurança que, a partir de um foco nos Direitos Humanos, restabeleça a soberania e a segurança em amplas partes do território nacional, é fundamental. Provavelmente, a depender de como atue a Guarda Nacional, vão jogar parte do êxito, ou não, no governo de López Obrador ao finalizar o sexênio. Em todo caso, a Guarda Nacional debe servir para fazer cumprir a lei e nunca para reprimir os protestos sociais ou as pessoas migrantes que atravessam o México. É preciso destacar que nenhum ser humano é ilegal. Ilegais são as máficas que transportam os migrantes.
O debate sobre a Guarda Nacional se intensificou à raiz da decisão de enviá-la como presença estatal, e portanto soberana, para a prosa fronteira sul, como parte da negociação com o caprichoso inquilino da Casa Branca. Negociação esta que se entrou podendo perder pouco, ou perder muito, e assim foi possível ganhar tempo. Sabemos que, daqui a novembro de 2020, data da eleição presidencial nos Estados Unidos, o México vai ser submetido aos vai-e-vens, e provavelmente também às chantagens político-eleitorais do vizinho do Norte.
Em algum momento (deve-se eleger bem este momento) será necessário confrontar e não ceder. Não se pode fazer nada no âmbito do novo TLCAN-TMEC [acordo de livre comércio com os EUA e Canadá], tampouco se pode fazer muito na questão dos migrantes (a recente tragédia de Óscar e Valéria, migrantes salvadorenhos afogados pela ânsia de chegar aos Estados Unidos, apesar de estar esperando a petição de asilo no território mexicano e com visto humanitário outorgado pelo governo de López Obrador, é a mais cruel constatação migratória no território mexicano). Ainda que se bem o tráfico de drogas e pessoas vão em direção sul-norte, o tráfico de armas e a lavagem de dinheiro são feitos em direção contrária, e permitem explorar possibilidades para pressionar os EUA.
Apesar de ter repetido mil vezes que a melhor política exterior é uma boa política interior, o papel jogado pelo México na crise da Venezuela, por ação (apresentando o Mecanismo de Montevidéu) ou omissão (deslegitimando com sua ausência no Grupo de Lima), faz com que a política internacional deva ser considerada entre as principais chaves para analisar o governo de López Obrador. O próximo encontro para impulsionar um novo momento progressista, que se celebrará neste mês de julho em Puebla com vários dos principais líderes progressistas do continente, indica que o México será uma referência na nova onda de esquerda e nacional-popular continental.
Todas as ações da política mexicana já miram as especulações sobre 2021, quando se celebram eleições legislativas e se renovam por completo os 500 assentos da Câmara de Deputados. A decisão de López Obrador de ir a uma revogação do mandato, ainda que não possa ser no mesmo dia da eleição, servirá para politizar e converter todo o ano de 2021 em um ano eleitoral. Enquanto que o PES, partido com quem compôs a aliança eleitoral de 2018 já está amortizado, o Morena [Movimento de Renovação Nacional, partido do presidente] tem o desafio de formar novos quadros tanto para a gestão pública, como para um partido esvaziado no governo federal, e o outro aliado, o Partido do Trabalho, tem a tarefa de converter a esquerda da centro-esquerda, renovando sua imagem e discurso para seduzir aos novos eleitores.
A dicotomia chairo-fifí [são dois grupos políticos do México: “chairo” é da esquerda, voltado à promoção de mudanças sociais e a apoiar pautas identitária como a defesa das mulheres, dos indígenas e do meio ambiente; “fifí” é o grupo da direita conservadora que busca manter seus privilégios através da política neoliberal] serve para refletir os privilégios que desfrutaram até o momento as elites política, econômicas e midiáticas mexicanas, e uma minoria privilegiada em um país do G20, mas cheio de pobreza e, sobretudo, desigualdade. Polarizar é a forma de governar de López Obrador, não conhece outra, e não há outra mais efetiva. E funciona. Se não, não se explica por quê sua aprovação está em torno de 70%, muito acima dos 53% que o elegeram em 1 de julho de 2018. As pesquisas, apesar de suas deficiências, são outra forma de ampliar a democracia liberal. E também funciona, por isso Texcoco é um cadáver político, um monumento para recordarmos que a quem agora se opõem a Santa Lucía nunca esteve preocupado com a corrupção, nem a destruição ambiental que seria a obra faraônica das construtoras priistas [ligadas ao PRI, partido que permaneceu décadas no governo].
Para além do óbvio, se algo debe ser destacado destes 12 meses que se passaram desde a vitória de 1 de julho de 2018, e especialmente desde 1 de dezembro [quando López Obrador tomou posse], é a politização do debate público que se deu como pedra angular do processo de transformação. Não há nada mais político que as pessoas não se conformando com votar e deixar nas mãos dos políticos os próximos 3 ou 6 anos. Não há nada mais bonito que as pessoas opinando sobre o que se gasta, ou deveria gastar, o governo. Não há nada mais político que um presidente respondendo aos jornalistas todas as manhas sobre suas ações governamentais.
Para não ser autocomplacente, esta análise será fechada com uma das principais debilidades desta gestão, herança dos governos neoliberais: os numerosos conflitos sociais e ambientais que atravessam o território mexicano. Por isso é necessário que tudo o que tem que ver com os megaprojetos estrela do governo López Obrador, desde a refinaria de Duas Bocas em Tren Maya, passando sobretudo pelo corredor trans-sísmico, seja feito respeitando as leis e os convênios ambientais, assim como com consultas livres, prévias e informando os povos indígenas que habitam estes territórios.
Estas dez chaves desenham uma cartografia do mapa político e social da chamada “quarta transformação”. De toda sua potência, mas também de alguns flancos débeis aos quais é necessário dar atenção, e talvez reforçar o debate e a comunicação em torno deles para contrariar a ofensiva da lupem-comentocracia. O relato da quarta transformação está se construindo em tempo real, por isso é mais fácil que se vejam as costuras comunicativas do projeto. Há grandes avanços destes meses que não foram comunicados bem, tanto no âmbito governamental, como legislativo, onde a maior parte da mudança na Câmara e no Senado conseguiu ser convertida em delitos graves à corrupção, o roubo de combustível, a fraude eleitoral, o feminicídio e às desaparições forçadas.
López Obrador não é Hugo Chávez, como a direita insistiu durante anos. Neste caso se parece ao primeiro Lula, que sem mexer em excesso nos interesses das elites, transformou o Brasil tirando da pobreza mais de 40 milhões de pessoas. Mas também prometeu que na segunda metade do sexênio se farão reformas constitucionais estruturais para ampliar direitos e garantir a justiça social. É uma utopia pensar em uma reforma fiscal progressiva para que paguem mais impostos quem ganha mais e desta maneira aprofundar a quarta transformação, reduzindo a pobreza e a desigualdade?
1 - Gómez Trejo tem colaborado em diversas funções em instâncias como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e nas oficinas de México, Honduras e Guatemala do Alto Comissionado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Veja aqui.
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México. Dez questões chave para entender governo de López Obrador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU