24 Abril 2019
“O projeto pós-capitalista está fundado na crença de que, de maneira inerente a esses efeitos tecnológicos, existe um questionamento das relações sociais existentes em uma economia de mercado e, a longo prazo, a possibilidade de um novo tipo de sistema que possa funcionar sem o mercado e para além da escassez”, diz Paul Mason, renomado jornalista e ensaísta britânico, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Abril/2019. A tradução é do Cepat.
Alguém que viajasse no tempo, a partir dos anos da juventude dos avós dessas pessoas, poderia se perguntar: quando termina a hora do almoço? Isso nunca acaba, porque para muitas pessoas interconectadas, na realidade, isso nunca começa. No mundo desenvolvido, grandes porções da realidade urbana são vistas como uma sessão contínua de Woodstock, embora o que realmente esteja acontecendo seja a desvalorização do capital.
Certamente, em algum lugar nos limites de uma cidade grande há sempre um distrito financeiro onde um regimento de pessoas, vestido de maneira uniforme, realiza atividades semelhantes a trabalhar de forma frenética e, em suas poucas horas de lazer, sobe na esteira da academia para que a adrenalina nunca acabe.
Mas, apenas 20 anos após o lançamento da banda larga e da telecomunicação 3G, a informação ressoa em todas as áreas da vida social: a fronteira entre trabalho e lazer se tornou confusa, e a conexão entre trabalho e salários enfraqueceu. A relação entre a produção de bens e serviços e a acumulação de capital é menos óbvia.
Se um economista ortodoxo é questionado sobre o que está acontecendo, poderia responder "consumo" ou "tempo de lazer". A tese do pós-capitalismo repousa na ideia de que há algo mais do que isso. As redes digitais, que os economistas schumpeterianos supuseram dar lugar a uma nova e dinâmica era do capitalismo, começaram a desintegrar os padrões tradicionais em quatro formas facilmente identificáveis.
Em primeiro lugar, há o efeito de custo marginal zero, pelo qual o custo de produção de bens de informação, em condições de livre mercado e concorrência, tende a cair para zero. Como resultado, os custos de produção de fabricação e serviços também caem.
Em segundo lugar, existe o potencial para uma automação decisiva do trabalho físico: 47% dos empregos ou 43% das tarefas, dependendo da pesquisa.
O terceiro é o efeito de rede, que as empresas de tecnologia recebem como "rendimentos crescentes de escala". Em larga escala, as redes criam externalidades positivas, nas quais os direitos de propriedade sobre a utilidade produzida não são predeterminados por uma divisão entre trabalhador e empregador no estilo de fábrica.
Por último, há o potencial de democratização da informação em si. Uma falha descoberta à noite em um software pode ser corrigida em cada passo desse programa até a manhã seguinte. Você pode descobrir um erro na Wikipédia e corrigi-lo instantaneamente com a ajuda da sabedoria da multidão.
Um novo tipo de sistema
O projeto pós-capitalista está fundado na crença de que, de maneira inerente a esses efeitos tecnológicos, existe um questionamento das relações sociais existentes em uma economia de mercado e, a longo prazo, a possibilidade de um novo tipo de sistema que possa funcionar sem o mercado e para além da escassez.
No entanto, nos últimos 20 anos, como um mecanismo de sobrevivência, o mercado reagiu criando distorções semipermanentes que, segundo os economistas neoclássicos, deveriam ser temporárias.
Em resposta ao efeito de derrubada dos preços que provoca os bens informacionais, foram construídos monopólios mais poderosos, que jamais tinham sido vistos. Sete das dez maiores empresas globais, de acordo com sua capitalização de mercado, são monopólios tecnológicos, evadem impostos, sufocam a concorrência comprando empresas rivais e constroem tecnologias interoperáveis com "jardins murados" para maximizar suas próprias receitas às custas de fornecedores, clientes e do Estado (por meio de evasão fiscal).
Devido as máquinas de informação poderem substituir os seres humanos mais rapidamente do que podem criar novos empregos qualificados, milhões de empregos mal remunerados foram criados, cuja existência não é necessária. Em vez de concentrar o trabalho em períodos curtos, a fim de maximizar a produtividade, a indefinição da divisão entre trabalho e lazer foi incentivada, enquanto se tolera que as atividades de consumo (planejamento de férias, organização de uma saída, envio de mensagens para amigos) se realizem durante o horário de trabalho, porque isso maximiza o consumo e a produção de dados pessoais.
Em resposta aos efeitos de rede, surgiu um novo modelo, o monopólio de plataformas, que atrai capital offshore, bilhões que não podem ser gastos produtivamente em outro lugar. Todo o modelo de negócios dessas empresas consiste em cobrar aluguéis econômicos e - como os demais - sufocar a concorrência. No caso de aplicativos de mobilidade sob demanda, o tradicional serviço de táxi e o governo da cidade.
Para responder aos efeitos democratizantes da tecnologia da informação, enormes e crescentes assimetrias foram geradas.
Nem a competição, nem a regulamentação foram capazes de frear o processo quádruplo de consolidação e esclerose. Características como monopólio, subemprego, procura de renda e assimetria de informação, que os economistas tradicionais assumiram como temporários, começaram a aparecer como exigências permanentes do setor privado do século XXI. Em vez de uma Quarta Revolução Industrial, foi criado um infocapitalismo parasitário e disfuncional, cujos lucros monopolistas e comportamento anticoncorrencial são tão inerentes ao sistema que é impossível questioná-los.
Formas embrionárias
Na cidade medieval, as formas embrionárias da sociedade burguesa eram de fato invisíveis. Se imaginarmos a cidade de Paris do século XIV, na época da revolta de Étienne Marcel, o poder estava em grandes residências dos senhores feudais da província, no mosteiro, em inúmeras igrejas e nas universidades. Juntos, eles formaram um mecanismo para gerenciar e validar a riqueza produzida pelas propriedades rurais. As atividades bancárias transnacionais eram, na verdade, um serviço secreto, que se baseava em ordens religiosas de depósito e contratos de prazo complexo para contornar a proibição da usura. A própria burguesia se recusou a apoiar a tentativa de Marcel de impor a lei ao rei por causa da estranheza do conceito.
Mas do ponto de vista vantajoso que representa saber em que se transformou o capitalismo, podemos ver as guildas, protobancos, redes de comércio transnacional e pensamento científico na universidade medieval como uma espécie de "capitalismo em estado embrionário."
Se voltarmos à cena em Barcelona, as mudanças microscópicas da vida cotidiana agora têm um significado diferente. O tempo livre é o produto do subemprego. Para manter as pessoas a serviço do capital pagando juros, aplicativos e comércio eletrônico, você precisa ter um emprego, cartão de crédito e celular, não importa o quão pobre seja. Os jovens subempregados, pobres e superinformados são o avatar tanto do problema, quanto da possibilidade da solução.
As pessoas sobrevivem à criação do que David Graeber chama de "trabalhos de merda", obscurecendo a distinção entre trabalho e lazer e vivendo frugalmente, porque enquanto os monopólios recebem preços altos por seus bens, o efeito custo zero marginal permite que se viva pagando pouco pelo básico. A maioria das pessoas usa software livre ou muito barato, mesmo sem saber. Além disso, os monopólios oferecem serviços de informação em troca do direito de explorar nossos dados pessoais. A vida está passando entre os serviços de monopólio em busca de aluguel: Uber, Airbnb, Tinder.
Pode-se ver o mesmo tipo de vida em qualquer cidade grande, mas eu escolhi Barcelona, porque, juntamente com Amsterdã e algumas outras que se autodenominam “cidades sem medo” e estão sob a hegemonia da esquerda, tem no momento líderes políticos que entendem o potencial de uma economia baseada no software livre, na simetria da informação e na abolição dos monopólios e a renda econômica.
Com Ada Colau, que chegou à Prefeitura após liderar um movimento pelo direito à moradia, a cidade designou 22 empregados e 16 milhões de euros, ao longo de quatro anos, para promover a economia social, solidária e cooperativa. Hackers, ativistas imobiliários e ambientalistas são autoridades e ocupam posições tecnocráticas de posição.
A cidade usou seu orçamento anual de compras de um bilhão de euros para forçar os fornecedores externos a aceitar o princípio de que a informação é um bem comum e que não deve ser explorada a custo zero pelos gigantes tecnológicos. Promovendo conscientemente formas alternativas de propriedade e favorecendo as cooperativas tecnológicas locais sobre as multinacionais, a cidade possui atualmente mais de 4.800 empresas cooperativas registradas.
Parece tão pouco espetacular e frágil como era o capitalismo em meio ao esplendor do feudalismo tardio. A tarefa de transformá-lo em algo realmente grande requer, em primeiro lugar, uma revolução na intervenção governamental, pela qual o Estado oriente conscientemente a criação de um setor da economia que seja colaborativo, livre para usar e não mercantil.
Em segundo lugar, esses modelos de negócios alternativos devem evoluir para expandir, de modo que suas melhores práticas possam ser convertidas em soluções automáticas para empresas emergentes.
O terceiro ponto é que deve haver acesso ao financiamento, embora de maneira diferente do encontrado no mundo das empresas tecnológicas emergentes.
Finalmente, uma revolução nas atitudes humanas é necessária.
Há uma grande passagem em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, onde Max Weber descreve o ponto de decolagem do capital industrial. Um jovem de uma das famílias dedicadas ao trabalho doméstico no negócio têxtil tratou com rigor os trabalhadores em suas cabanas, buscou economias de escala e eliminou todos os intermediários. Como resultado, a vida idílica dos fiadores e tecelões rurais se desintegrou. Weber conclui: "Em casos semelhantes, a afluência de dinheiro novo não foi a causa dessa revolução, mas foi devido ao novo espírito, o 'espírito do capitalismo' que havia se infiltrado".
Caso sejam observadas com atenção suficiente as atitudes dos jovens criados em um mundo totalmente digital, também se vê um novo espírito em operação.
A burguesia falaria de irresponsabilidade. As grandes marcas chamam isso de "prosumo". Se alguém se senta em um prédio ocupado em um espaço de trabalho colaborativo ou em um laboratório de artes financiado pelo Estado em uma dessas cidades, poderá ver que, ao contrário, são bastante conscientes, e isso se trata da decisão de viver "apesar” das premissas implícitas da economia tradicional.
Até a década de 2010, embora as economias cooperativas e "solidárias" haviam se proliferado como uma contracultura nos países ricos, poucos haviam pensado em sustentar que o Estado deveria promover esse novo modo de vida econômica. No entanto, assim como no início do capitalismo industrial, isto é exatamente o que é necessário: um projeto para regular o capitalismo de tal modo que, ao invés de sufocá-lo, ajude aos modelos de negócio emergentes colaborativos, sem fins lucrativos e não financeirizados.
Na próxima colaboração, examinarei o que Estados e cidades começaram a fazer para promover a transição. Vou argumentar que, como no caso da transição do feudalismo para o capitalismo, o projeto não pode ser exclusivamente legal ou regulatório, mas deve mudar a maneira como pensamos sobre o tempo, a cultura, a escassez e abundância.
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O novo espírito do pós-capitalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU