23 Janeiro 2017
A última sexta-feira foi um dia que, com razão, pode ser chamado de histórico, sem medo de abusar dessa palavra que, mais do que qualquer outra, nos permite enquadrar os eventos fundamentais para a humanidade. Com o juramento das 12 horas, horário local, começou, nos Estados Unidos, a presidência de Donald Trump e termina aquela longa expectativa que o mundo está vivendo desde o dia da sua vitória, depois de uma das piores campanhas eleitorais dos Estados Unidos.
A reportagem é de Francesco Gagliano, publicada no sítio Il Sismografo, 20-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O véu de expectativa e de desconhecimento foi removido, Trump agora deverá demonstrar como pretende governar e quais serão as suas primeiras medidas como presidente. As interrogações sobre o futuro dos Estados Unidos e sobre o papel internacional continuam sendo muitas, assim como são muitos que buscam entender como um candidato com muito pouco conhecimento e preparação política, cultural, social e administrativa (que vai além dos interesses pelas suas próprias empresas) conseguiu triunfar.
Embora muitas dessas perguntas continuem pairando sobre as mentes de muitos observadores de todo o mundo, Trump venceu e fez isso graças ao voto compacto nascido da insatisfação da maioria do povo estadunidense.
O magnata de Nova York aproveitou-se dos temores e do instinto de proteção e isolamento dos seus compatriotas para chegar à Casa Branca, e, entre esses votos, também se incluem o de parte dos católicos (52% deles deu-lhe o seu voto), que viram no adversário de Hillary Clinton a alternativa do “mal menor”.
O rebanho seguiu a direção tomada pelos pastores: boa parte do episcopado católico estadunidense viu em Trump uma alternativa à perigosa tendência de favorecer ainda mais a prática do aborto e acolheu as garantias em sentido contrário do presidente recém-eleito.
Sobre a eleição de Trump, sobre aquelas que poderão ser as relações entre a nova presidência e os católicos estadunidenses e, acima de tudo, com a Santa Sé, falamos com Massimo Faggioli, às margens do congresso “O cristianismo no tempo do Papa Francisco”, que foi realizado na sede centro de Roma da Sociedade Dante Alighieri.
Faggioli, historiador e teólogo, é professor titular do Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Villanova University (Filadélfia, EUA). Desde 2008 vive nos Estados Unidos e, portanto, pôde acompanhar em primeira pessoa toda a presidência de Obama e os eventos, inesperados, que lentamente tomaram forma até levar à Casa Branca Donald Trump, 45º presidente dos Estados Unidos da América.
O que podemos esperar da presidência de Trump na relação aos católicos estadunidenses e com a Santa Sé?
É preciso considerar, acima de tudo, como os católicos estadunidenses reagiram à sua candidatura. Para muitos, foi o mal menor em relação com Clinton, para outros, ao contrário, um bom candidato que responde a um certo universo de valores, de um catolicismo “lei e ordem”, bastante nacionalista, protecionista, contra o politicamente correto e contra uma visão universal do catolicismo. O que ele vai fazer e o que vai tentar fazer com certeza é manter a promessa sobre a abolição do aborto e se unir a uma agenda econômica neonacionalista, com proteção dos postos de trabalho nos Estados Unidos, que pode encontrar um certo apoio na Igreja estadunidense.
A parte que não votou nele, ao contrário, está se preparando para uma batalha de longo prazo contra um presidente que veem como uma monstruosidade moral, intelectual e de valores. Portanto, o mundo acadêmico, o mundo das ordens religiosas que são mais progressistas em relação aos bispos e aquele laicato que vai às paróquias e que não se reconhece em Donald Trump.
Quanto ao Vaticano, ainda é cedo para dizer: muito depende de quem será confirmado como secretário de Estado, da escolha do embaixador junto à Santa Sé – que é uma grande incógnita. Há muitos rumores, tanto em Roma quanto nos Estados Unidos, que veem possíveis afinidades entre o eixo Trump-Putin e as exigências da política externa vaticana sobre a Síria e o Oriente Médio – mas, sobre esse ponto, eu sou pessoalmente muito cético. Eu prevejo que a presidência, quer seja Trump ou o seu vice, Pence, que realmente sejam o regente da coisa pública, tentará uma abordagem pragmática com o Vaticano. Há católicos conservadores nos Estados Unidos que estão cientes de que Trump não tem a mínima familiaridade com aquilo que o Vaticano é, e que, portanto, é oportuno um contato um pouco mais pragmático. Essa é a hipótese racional, e Trump continua sendo um candidato que, muitas vezes, desmentiu a hipótese mais racional.
Permaneçamos nos Estados Unidos, mas mudemos de assunto. A partir do seu observatório, parece que está crescendo uma forma de oposição ao pontificado de Francisco?
O caso das dubia dos cardeais sobre algumas passagens da Amoris laetitia trouxe à tona um núcleo duro de conservadorismo, que, nos Estados Unidos, parece ter mais fôlego. Qual é a percepção do Papa Bergoglio a quase quatro anos desde a sua eleição? Existe este fenômeno, e a minha chave de leitura é esta: que a dificuldade de recepção de Francisco nos Estados Unidos, ou a clara oposição a ele, está muito ligada, senão até é uma consequência e expressão diretas de uma falta de recepção do Concílio Vaticano II nos Estados Unidos ao longo dos últimos 30 anos.
A última geração de católicos e de teólogos católicos não estudou a fundo os documentos e a mensagem do Concílio. Muitos não o conhecem, e, para outros, existe uma era pré-Vaticano II e uma era pós-moderna, e o Concílio se situa em uma “terra de ninguém”. Não conhecer o Vaticano II impossibilita compreender o Papa Francisco.
Agora, é claro que essas tentativas das quais você falava são tentativas de deslegitimar a figura do pontífice. As oposições desse mundo nasceram logo depois da sua eleição; já nas primeiras semanas isso estava muito claro. Eu acho que elas se radicalizaram, mas também se circunscreveram, ou seja, estão numericamente mais isoladas e radicalizadas, por serem reflexo de um mundo menor, mais isolado. Creio, por isso, que o papa está vencendo esse desafio, porque quem fala de cisma não sabe do que fala, isto é, se, para alguns, bastam quatro cardeais que não concordam com o ministério do papa para fazer um cisma, então, tudo bem, mas o cisma é uma coisa bem diferente.
No entanto, este é um momento muito delicado, porque os bispos e os cardeais que não concordam com o Papa Francisco se reconhecem com uma certa agenda de Trump: é a rejeição de um catolicismo multicultural, de um catolicismo que evolui, universalista e universal. Nesse sentido, a relação entre catolicismo estadunidense e Trump vai dizer algo também sobre a relação entre catolicismo estadunidense e Papa Francisco. São, obviamente, dois aspectos diferentes, mas com muitos pontos de contato.
As dubia são uma situação inédita, mas eu acho que são um reflexo de um certo isolamento de uma parte do mundo católico que, substancialmente, expressou da forma mais clara possível a rejeição da mensagem do Vaticano II e de tudo aquilo que se segue a partir dele, e o Papa Francisco vem do Vaticano II. Os “inimigos”, porém, não podem rejeitar o Vaticano II, não diretamente. Ao contrário, criticar o papa e alguns pontos da doutrina é politicamente mais fácil. Então, é isso o que eles fazem, mas, no fundo, há uma questão muito maior.
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Que, evidentemente, concluímos nós, ainda deve emergir.
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"Não conhecer o Vaticano II impossibilita compreender o Papa Francisco e o que acontece no catolicismo dos EUA." Entrevista com Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU