Por: Jonas Jorge da Silva | 19 Setembro 2023
“A ecologia pode nos oferecer horizontes interessantes de transformação que não necessariamente dependem de um sujeito político, mas de uma ecologia de práticas diversas que apostem muito mais na diversidade do que na homogeneização que está presente na política extrativista, das monoculturas”, enfatizou a antropóloga Alana Moraes, na manhã de 16 de setembro, em debate [online] intitulado Classes sociais e ecologia: para onde vão as esquerdas?.
Em sua análise, “a fecundação entre políticas ecológicas e políticas revolucionárias é possível e pode apresentar horizontes de transformação muito mais interessantes do que aqueles que estão colocados, hoje, para pensarmos sobre a catástrofe ambiental”.
Alana Moraes é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Também é mestre pelo programa de Sociologia e Antropologia da UFRJ e possui graduação em Ciências Sociais pela mesma instituição. Realiza pós-doutorado no Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia da UFRJ, o IBICT-UFRJ. Além disso, é pesquisadora do Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento - Pimentalab, da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, e da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade – LAVITS, onde desenvolve ações de pesquisa e de extensão.
Alana Moraes, na atividade "Classes sociais e ecologia: para onde vão as esquerdas?"
O tema abordado se insere na série de debates [online] Habitabilidade da Terra: fraturas, emergências e releituras, que busca aprofundar as temáticas socioambientais a partir de uma leitura transdisciplinar das condições atuais da vida no planeta, o rompimento de velhos paradigmas e a construção de novas abordagens e compreensões do modo humano de estar no mundo.
A iniciativa do CEPAT conta com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá - UEM, Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB, Centro Nacional de Fé e Política Dom Hélder Câmara - CEFEP e Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida - OLMA.
Para Alana Moraes, a relação entre esquerdas e ecologia está marcada por dois fracassos históricos importantes, durante o século XX. De um lado, o movimento ecológico não conseguiu garantir uma mobilização e adesão social à altura dos problemas advindos ou acelerados a partir da Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, o uso massificado de combustíveis fósseis, a concentração urbana e a ampliação do consumo de bens materiais e circulação de mercadorias, entre outros. Por outro lado, na cultura política de tradição socialista, marxista, também não houve capacidade para incorporar de forma seriamente comprometida o problema da catástrofe ecológica.
Esses dois grandes fracassos se refletem na atual emergência mundial, que aponta para projeções preocupantes quanto à habitabilidade da Terra, acarretando problemas muito diversos e interconectados, como, por exemplo, o aumento da temperatura dos oceanos, as secas, as tragédias socioambientais no norte e no sul global, as novas cepas virais com a expansão da fronteira agrícola, os deslocamentos forçados de populações, as violações de direitos dos povos da Terra, entre outros.
O século XX não produziu um sujeito coletivo e uma perspectiva de ação coletiva capazes de enfrentar os problemas socioambientais, que só se agravaram. Hoje, muitos questionam sobre qual sujeito coletivo será capaz de dar conta desse desafio histórico. Para o pensador Bruno Latour, esse novo sujeito coletivo são os terranos que enfrentam aqueles que, inclusive, já possuem planos de abandonar a Terra e colonizar Marte. Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, esse sujeito coletivo se concretiza nos povos indígenas.
Segundo Alana Moraes, na obra Memorando sobre a nova classe ecológica, Bruno Latour e Nikolaj Schultz buscam juntar ecologia e marxismo na noção de classe ecológica. Ela é importante porque se constitui a partir do conflito, de um “nós” contra eles, que cultivam interesses divergentes. Neste “nós” se faz presente um movimento de transformação histórica.
Contudo, o grande problema hoje é que a certeza da catástrofe parece mais paralisar a ação do que produzir algum movimento. Latour e Schultz estão cientes de que não há um alinhamento evidente entre as representações de mundo, as energias a ser desencadeadas e os valores a ser defendidos. Trata-se de uma crise de mundos que vem revelando dissensos e conflitos inconciliáveis nos modos de habitar a Terra.
Nesse enfrentamento das políticas extrativistas ou neoextrativistas contra os povos e ecossistemas da Terra, Alana Moraes sublinhou que “os antigos antagonismos da luta de classe parecem não funcionar tanto porque o mundo moderno, industrial, com seus modos de produção, que faz emergir a classe operária, com seu paradigma produtivista, seu modo de fazer circular pessoas e mercadorias e seu modo de se apropriar da terra, revela-se o motor da destruição planetária. O colapso climático é também o colapso do mundo industrial produzido e gestado durante o século XX”.
Sendo assim, caem por terra a concepção de que a modernização e o progresso seriam o caminho para a superação da pobreza e que o desenvolvimento das forças produtivas conduziria a classe operária à emancipação. De certo modo, a Guerra Fria simbolizou um pouco dessas disputas entre socialistas e capitalistas para ver quem pode produzir mais, quem tem maior capacidade técnica de exploração da terra, gestão de pessoas e recursos. Para Alana Moraes, “do ponto de vista das infraestruturas materiais que produzem a vida na relação com o mundo, os dois polos [capitalistas e socialistas] tinham a mesma matriz de modernização e expansão do mundo industrial produtivista”.
Portanto, no cerne do fracasso do movimento ecológico e das esquerdas socialistas está a separação moderna entre questões ambientais e questões sociais, que coloca de um lado os humanos e do outro a natureza.
Nessa direção, segundo Alana Moraes, em sua trajetória histórica, “as esquerdas socialistas não conseguiam perceber a mensagem fundamental de uma das principais fábulas dos escritos de Marx, aquela que conta sobre o início do capitalismo, que é o seu texto sobre o roubo de lenha, quando relata esse momento em que pessoas mais pobres, camponeses que se relacionavam com a terra, passam a ser proibidas de se relacionar com seus ecossistemas, com os bosques em que habitavam, onde conseguiam lenha, onde podiam ter uma relação com o mundo natural, que era uma relação de bastante reciprocidade. Então, é um momento em que elas vão perder suas autonomias. Seus modos de vida vão ser deteriorados e, assim, só podem se tornar operárias. O capitalismo só foi possível, portanto, a partir do momento em que deteriora essa relação entre as pessoas e seus ecossistemas, ou seja, o movimento de proletarização foi, portanto, um movimento que precisou arrancar as pessoas de seus mundos, de suas relações ecossistêmicas”.
Já do lado dos movimentos conservacionistas, também é possível constatar, historicamente, que em seu propósito de proteger o meio ambiente, esqueceram-se das comunidades humanas e da potencialidade presente em suas alianças com não humanos, representadas, por exemplo, na luta travada pelos povos indígenas em favor da autonomia territorial, bem como dos quilombolas, em harmonia com a natureza. Para Alana Moraes, a separação entre humanos e natureza é uma separação moderna, que não organiza esses mundos dos povos da terra que vivem em um regime de biointeração profunda, conforme bem analisado pelo pensador e líder quilombola Antônio Bispo dos Santos.
Apesar de todos os reveses históricos, Alana Moraes também ressaltou que “as esquerdas progressistas latino-americanas contemporâneas ainda apostam no programa de desenvolvimento, de crescimento perpétuo, para garantir a estabilidade de seus governos e o que eles imaginam como soberania nacional”. É a partir dessa chave de leitura que se compreende a sua aliança com o agronegócio, a mineração, o petróleo e as grandes obras de infraestrutura de escoamento. Tudo isso faz parte de um consenso que atravessa governos de diversos espectros ideológicos.
É urgente reconhecer que a catástrofe ambiental não se resume a “um problema técnico, com a ideia de que bastariam novas tecnologias de energia renovável, novas sementes geneticamente modificadas, novos agroquímicos que tornem plantas mais eficientes para solucionar o contratempo da crise ambiental”, afirmou Alana Moraes. “É preciso partir do reconhecimento da escrita colonial que se atualiza em novas técnicas de transição energética que segue operando em zonas de sacrifício”, analisou.
Nesse sentido, citando a obra de Malcom Ferdinand, Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho, Alana Moraes ressaltou a ideia de que a crise ambiental e climática é herdeira do colonialismo, uma catástrofe já vivenciada pelos povos do sul global. A partir de modos de governar a vida com o uso da violência, do trabalho forçado e da criminalização das autonomias da aliança entre humanos e não humanos, o capitalismo converte o mundo vivo em recursos.
Sendo assim, a luta de classes, hoje, coloca aqueles que insistem em converter a vida em recursos em conflito com as relações multiespécies, bem como a simplificação ecológica em conflito com as práticas biodiversificadas. “A luta de classes é uma guerra de mundos, é parte de uma guerra maior, que é uma guerra de mundos. Uma guerra que foi inaugurada pelo empreendimento colonial, que ainda está em curso”, sintetizou Alana Moraes.
“Penso que ao invés de pensar em qual sujeito político será capaz de conduzir um horizonte de transformações diante do novo regime climático, desse novo tempo geo-histórico, seria interessante pensar como Lynn Margulis, uma bióloga muito interessante que desafiou alguns dos paradigmas darwinistas, afastando-se do paradigma adaptativo da competição entre espécies, para afirmar que a diversidade de formas de vida existentes no planeta, que foi se adaptando no processo de evolução, não tem tanto a ver com a concorrência, mas com associações colaborativas entre grupos multiespécies”, considerou Alana Moraes.
Nesse sentido, avalia que “a ecologia pode oferecer para as esquerdas outras imagens possíveis de organização e de ação. Então, ao invés de pensarmos em organizações centralizadas, seria mais interessante pensarmos em um conjunto de associações, de colaborações distribuídas, sem comando central. Ao invés de pensarmos, por exemplo, em uma imagem de transformação que acontece em um grande momento épico de tomada de poder, podemos pensar em transformações que acontecem como polinizações, em um regime de visibilidade de baixa intensidade, mas que se expande e se fortalece na medida em que faz proliferar a diferença e não a homogeneização das monoculturas ou dos programas unificados”.
“A ecologia pode nos oferecer horizontes interessantes de transformação que não necessariamente dependem de um sujeito político, mas de uma ecologia de práticas diversas que apostem muito mais na diversidade do que na homogeneização que está presente na política extrativista, das monoculturas”, destacou Alana Moraes. Em sua análise, “a fecundação entre políticas ecológicas e políticas revolucionárias é possível e pode apresentar horizontes de transformação muito mais interessantes do que aqueles que estão colocados, hoje, para pensarmos sobre a catástrofe ambiental”.
A partir das questões levantadas pelos participantes, além de pontuar as contradições de difíceis solução na política econômica do Governo Lula, refletidas no nacional-desenvolvimentismo e na expansão do extrativismo, Alana Moraes também sinalizou para a necessidade de um olhar mais acurado acerca da existência de uma pluralidade de resistências ao modelo hegemônico de devastação socioambiental. Em sua opinião, mais do que pensar em um sujeito unificado, é preciso pensar em alianças nas estratégias de luta que já estão acontecendo no Brasil, com uma ecologia de práticas bastante interessantes.
Jonas Jorge da Silva, do CEPAT e Alana Moraes, na atividade "Classes sociais e ecologia: para onde vão as esquerdas?"
Citando a obra A terra dá, a terra quer, do líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, Alana Moraes também alertou para a necessidade de abandonar um debate muito abstrato sobre a mudança climática, buscando entender em quais termos a catástrofe ambiental está acontecendo com pessoas e territórios específicos. Ela observa que os territórios e povos resistem e produzem conhecimentos a partir de suas observações e vivências.
“Há uma produção de conhecimento importante, com um novo momento de ativismo, que é o ativismo do conhecimento”, pontuou. “Estamos em um momento em que a produção de conhecimento é bastante importante para as lutas”, prosseguiu. Enfim, é fundamental a aliança entre universidades, pesquisadores, pesquisadoras, cientistas e as populações locais. “As alianças serão fundamentais para esse próximo período”, advertiu.
Alana Moraes enxerga que o caminho passa pela luta coletiva e a experimentação de novas culturas e tecnologias populares, por outros modelos de transição energética que já estão acontecendo, pelo estabelecimento de outras maneiras de habitar o mundo. Tudo isso leva a um questionamento da precarização da vida em nossas cidades, com o aumento da pobreza, da desigualdade e da violência policial. “Talvez a cidade não ocupe tanto o papel fundamental nesse horizonte de transformação”, pontuou.
Passou da hora de experimentar outras práticas de autonomia, bem-estar e felicidade. Como exemplo desse desafio, Alana Moraes citou a trajetória de Antônio Bispo dos Santos, que apesar de ter passado pelo movimento sindical, em determinado momento, rompe com a cultura sindical. É que ele passa a compreender que, na verdade, os quilombos não fazem parte da tradição da cultura europeia, que é outra coisa.
Portanto, o desafio está em pensar em como se tece a cultura política de organização das pessoas no Brasil, que não necessariamente passa pelo trabalho assalariado, mas por outras relações. Para isso, é preciso superar o entendimento de que a política sempre se refere à disputa do Estado e apostar em outras formas de política, de fortalecimento de autonomias que não são possíveis apenas para o futuro, mas que já estão presentes hoje.
Tudo passa por produzir e sustentar outros mundos, a partir de mundos que já existem. São experiências que entram em conflito com esse modo de vida capitalista, que faz mártires. Nesse sentido, Alana Moraes destaca que o Brasil conta com índices cada vez mais violentos de assassinatos de lideranças indígenas, com a violência generalizada no campo e populações muito vulnerabilizadas. Será necessário estabelecer estratégias de atuação que evitem mártires e a vulnerabilização cada vez maior das pessoas.
A atual plataforma de desenvolvimento, de novo extrativismo, dificulta a abertura para modos de vida radicais, como, por exemplo, abrir mão do crescimento econômico. “Quem se beneficia do crescimento econômico?”, questiona Alana Moraes. “É uma luta radical, mas que não podemos desistir dela”, completa. Em sua avaliação, se não fossem as tecnologias comunitárias, as culturas políticas de solidariedade e a rede de afetos diversos, não restaria mais nada frente à aceleração do capitalismo. A saída está em abdicar de uma cultura política mais europeia e assumir uma cultura política que já está presente em nossos territórios, na resistência de nossos povos e suas alianças com os não humanos.
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.
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“A luta de classes é uma guerra de mundos inaugurada pelo empreendimento colonial” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU