18 Julho 2023
Cada palavra de Marcos Pastrana ressoa como um sentir que vem das profundezas. Em suas palavras, talvez emerjam as paisagens que ficaram em sua memória, após anos acompanhando assembleias e povos da América Latina, sendo recebido com abraços, compartilhando as dores, as alegrias, a fome e o frio, mas também as conquistas da luta compartilhada. Este membro do Povo Diaguita, vive em Tafí del Valle [Argentina], tem 77 anos e está sempre disposto a dar testemunho.
A entrevista é de Mariángeles Guerrero, publicada por Tierra Viva, 12-07-2023. A tradução é do Cepat.
“Para saber para onde vamos, é preciso saber de onde viemos e valorizar quando e como a vida começou. Todos nós descendemos dos quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Isso está presente na biodiversidade, na flora, na fauna e na espécie humana. Se cuidamos da água, da energia (o fogo), do ar e da terra, lutamos pela vida, pelos seres vivos, pelos povos”, explica.
E acrescenta: “Hoje, pretende-se impor o conceito de que para cuidar do meio ambiente é preciso adotar medidas científicas, tecnológicas. Mas, primeiro, é preciso tomar consciência do que esses valores significam para nós e como aderimos à estética natural forjada há milhões de anos para gerar vida. A dimensão da biodiversidade é infinita: sua integridade, sua integralidade, sua intelectualidade, sua espiritualidade”.
Histórico lutador contra a mineradora Alumbrera, Pastrana foi um dos principais oradores do VII Congresso de Saúde Socioambiental de Rosário, na Argentina. Entre outros assuntos, explica que a interculturalidade não se dá apenas entre os seres humanos. “Entre os seres humanos, circula a informação, mas a cultura circula com a participação de todos os membros da biodiversidade. Não existe carpinteiro se não existe uma árvore. Não existe artesanato, nem arte, nada, nem gastronomia, se não for em colaboração com a biodiversidade. Essa é a verdadeira universidade itinerante da vida que está em todos os rincões. A universidade Mãe Terra”.
Sua fala é pausada, mas incisiva: “O homem, em seu egocentrismo, acredita que é o sujeito de tudo: da inteligência, da espiritualidade, de direitos. Por isso, fala-se de direitos humanos, como se fossem os únicos que têm direito à água, ao ar puro, à saúde e à vida. Não: o direito é de todos, é universal e é integral”.
Este sábio diaguita conta que da educação formal aprendeu a ler, mas que aprendeu mais da vida, da família, dos animais, da montanha e do vento. Depois, chegou à universidade, mas, ao mesmo tempo, às lutas sindicais dos anos 1970. E o retorno às raízes: “Quando consolidei minha identidade original em toda a sua dimensão espiritual e intelectual, entendi o sentido da vida e percebi que por algo essa Pacha, esse espaço e esse tempo me colocaram em lugares em que eu tinha que estar para ter a ideia e difundi-la. Esse é o meu papel”.
Para uma contextualização, afirma que vivemos em um “Estado transnacional mineiro, sojeiro e energético”, mas que também que se formando uma rede planetária, unida pelo sentimento de voltar à naturalidade. Em suas palavras: “Quando reivindicamos direitos, saúde, boa educação, estamos reivindicando o direito de voltar à naturalidade, ao direito natural. Essa é a rebelião”.
Qual é o caminho?
O de um planeta que possa ser habitado por todos os seres vivos. De que forma, em que espaço, em que tempo e como são os jovens que precisam definir. De minha parte, o que posso fazer é recordar e contar. O que vi, o que acredito ser a realidade.
O que viu?
Muitas coisas, mas são muito mais as que não pude ver. Cada um tem cinco sentidos, que fazem com que descubra seus dons e talentos. Com eles, percebe tudo. E a partir daí, torna-se músico, artesão... O que deseja ser.
Contudo, se você se concentra apenas no celular, nos computadores ou no tablet, nas estruturas fixas dessa nova estética artificial, seus dons não se desenvolvem. Comece a analisar o seu dia, a olhar para as palmas de suas mãos e ver como estão, a se perguntar: o que faço com as mãos? O que vi, hoje? O que escutei? Qual foi o primeiro cheiro que senti pela manhã?
Esse desapego em relação aos sentidos produzido pela estética artificial são distrações em relação à vida. Você está silenciando sua inteligência, sua espiritualidade. Essa é a razão de tanto estresse, confronto, violência e falta de comunicação. Mesmo que se você aperta um botão, comunica-se com quem quiser.
O que é a estética natural?
O conceito de estética natural é vital. Se aderirmos, respeitarmos e valorizarmos a estética natural que gerou a vida e que continua evoluindo, mudando e inovando, vamos respeitar todos os ambientes. Isso vai gerar uma ética diferente para nós, com outro respeito e outra moral. Todos os conceitos mudarão.
Ao contrário, se aderirmos a uma estética artificial criada pelo ser humano para o seu gosto e conforto, temos todas as possibilidades de danificar tudo. É isso que estamos vendo: guerras, massacres, morte, dominação, escravidão, tráfico de povos e pessoas, extermínio, poluição. Ideou-se um mecanismo que dirige todas as ações humanas: a tecnologia e a virtualidade.
Hoje, a inteligência artificial aprisionou o homem. É preciso ver como desarmamos o mecanismo e ficamos com o essencial. E para quem e para quantos. Não faremos isso declarando áreas protegidas, nem parques nacionais.
Com a estética artificial, os processos que são chamados a acontecer em milhões de anos para recriar os ecossistemas, o meio ambiente e a vida são acelerados e destruídos pelo homem. Por isso, sempre temos essa sensação de estresse, porque nossas cabeças vão em uma velocidade maior do que o ritmo biocósmico. E as nossas almas vão atrás, querendo se agarrar a algo que lhe dê uma certeza.
O que é o ecocídio?
Não sei se “ecocídio” é a palavra indicada... É um atentado contra essa estética natural, contra a ordem natural, mas “cídio” indica homicídio, extermínio. É o que mata. Nisso não se completa, pois jamais poderão matar a vida. Não há ninguém que mate a vida. A vida continua. Sua vida pode acabar, mas não sua vida no sentido integral, mas sua existência, esse espaço que você tem para vivê-la, para desfrutá-la.
Que nome daria a esse atentado?
Não sei. Acontece que quando qualificamos, há uma finalidade, um motivo e, geralmente, é o de fazer justiça. Contudo, a justiça tem duas faces: uma repressiva e outra reparadora. E se pensa mais na repressão. Tanto para o prejuízo quanto para o benefício.
Para um homicida, pode haver uma pena de morte ou prisão perpétua. Ou pode ficar livre, caso tenha dinheiro. Tudo é relativo na repressão. E a reparação não ocorre porque o dano continua sendo produzido. Reparar quer dizer que nunca mais ocorrerá. A mudança é mais profunda.
Qual pode ser a contribuição da cosmovisão diaguita para a mudança?
Cosmos é ordem. Cosmovisão é a visão dessa ordem, a ordem cósmica. Na verdade, existe apenas uma cosmovisão e há diversas visões cósmicas. Cada povo, conforme o lugar, a latitude e a longitude onde existe ou a altura onde vive, tem uma visão cósmica.
Um homem da floresta é diferente de um homem dos desertos. Nós andinos, por exemplo, prestamos muita atenção nos astros. Toda a nossa obra intelectual e material é uma réplica do que vemos e sentimos do espaço.
Se os jovens tivessem a oportunidade de estudar e aprofundar o impacto que o cosmos tem sobre os seres humanos, porque somos parte dele, as coisas seriam muito diferentes. Dizer a “cosmovisão diaguita” é relativo porque muitas de nossas sociedades comunitárias estão a meio caminho, no caso da América, por 500 anos de dominação sem concessões, nem licenças. Fomos devorados, tiraram a nossa língua, cultura, território, os direitos, tudo.
Agora, por que os povos originários do mundo continuam vivos, apesar de tanta perseguição e morte, sem terem desenvolvido um único sistema de extermínio? Não desenvolvemos mísseis, nem navios, nem foguetes, nem balas, nem bombas, nem sistemas operacionais para exterminar. Nunca invadimos um país. E por que os romanos, os egípcios, os gregos, todos os impérios, com todo o poder político e econômico que tiveram caíram? Pela violência. Mataram a si mesmos.
Por que os povos originários sobrevivem?
Fazem isso em sua visão de mundo e em seus saberes. Se você for agora para o interior, para o norte, para o sul, comprará seus artesanatos, provará suas comidas. A música se alimenta dos ritmos dos povos originários do mundo. São os guardiões do saber.
Essa é uma missão histórica dos povos originários: manter a ideia da naturalidade. Com isso, sobrevivem e nós sobreviveremos porque somos os indicados, em um futuro muito próximo, a lembrar o homem que precisa voltar às suas fontes.
O senhor fala de corpos colegiados comunitários.
Cada conflito gera resistência porque vai contra os costumes e a cultura dos povos. São retirados de sua letargia, de seu ritmo normal de vida, impõem outro tipo de desenvolvimento para saquear, não para beneficiar.
Em cada povo, essa resistência à mudança gera uma assembleia ou duas ou três, segundo a atividade. E esses são corpos colegiados populares, autoconvocados, que se juntam permanentemente porque se reúnem no armazém, no açougue, na calçada. Depois, vão para a praça, marcham, estudam os problemas, fazem perguntas, buscam informações, apresentam notas aos políticos.
A resistência está aí. Não só nós que saímos, que continuamos indo para as estradas, para os piquetes, para as reivindicações e para os acampamentos resistimos, mas também quem segue semeando, cozinhando, que continua fazendo coisas com suas mãos, que continua fomentando a música. Tudo isso é território.
Gosto muito de ouvir as crianças falarem “território urbano”. Por fim, tomam consciência e se apropriam de algo que está sendo tirado delas: o território. As bibliotecas, as praças, as equipes de futebol populares, as festas de bairro. Antes, obstruíam uma rua e faziam um carnaval. Isso também é território, é identidade.
Como se dá a relação entre essas assembleias e os políticos?
As pessoas já sabem, agora, o que é essa casta de políticos que vivem como zangões. Há dez anos, recorríamos aos legislativos, aos conselhos deliberativos, às universidades e encontrávamos representantes alcançáveis. Hoje, não há. Não se encontra alguém que diga: “Sou das assembleias, estou com as assembleias”. Estão totalmente comprados.
Então, surgem outros corpos colegiados, que são as assembleias. Por isso, estão regulamentando os protestos, o que é um sinal de fragilidade do sistema supostamente democrático. Essa ordem é um monstro vacilante porque se sustenta na corrupção. Da corrupção à estupidez, é apenas um passo e já o deram.
De outro modo, não se explica que possam considerar que a mineração é um negócio rentável, quando deixam 3% da renda. Supostamente, porque isso é determinado por eles. Liquidam divisas no exterior. Por cima, contam com uma dedução fiscal que faz com que esses 3% se vejam reduzidos a 1,9%.
A megamineração produz danos ambientais, sociais e econômicos 20 vezes maiores do que a renda que retiram. O passivo é ciclópico, monstruoso, desmedido. Contamina a água, o ar, os solos e a sociedade, a cultura, a integridade e a integralidade.
É isso que os jovens precisam ver para decidir: vamos continuar nisso ou vamos mudar, e o que precisa ser mudado, qual é a capacidade que tenho de mudar. O caminho é devolver os territórios a seus povos e os povos a seus territórios.
Qual é a sua opinião a respeito da exploração do lítio?
O conquistador sempre carrega uma bandeira. O lítio é uma nova bandeira do conquistador. Dizem que produz energias limpas, falam dos carros elétricos, mostram para você a solução. Contudo, não dizem que o lítio está onde está como parte essencial de um equilíbrio tectônico, geológico, natural. Assim como o ouro está onde está, como está cada elemento que sabiamente ocupa seu lugar, após o caos das grandes transformações.
Por isso, falo da integridade e a integralidade. Se cortarem meu braço, continuo sendo Marcos Pastrana, mas já não estou inteiro, falta-me um braço. Não sou mais o mesmo. Tudo o que existe cumpre uma função. E existe para que seja usado. Meu braço existe para que eu o use, para que eu acaricie, para que trabalhe, para desfrutar. Se não o tenho, eu não posso fazer nada disso.
Se você retira o lítio, contamina as águas, destrói os ecossistemas e interfere no clima. É daí que vêm as mudanças climáticas. E, além disso, levam quase toda a tabela periódica dos elementos químicos. Levam as terras raras, que valem muitíssimo mais do que ouro, a prata e o lítio. O lítio é a cenoura que colocam para o asno. O que vem por trás é muito mais, é a maior mordida da humanidade.
Qual é essa mordida?
Hoje, é a biodiversidade. A Convenção sobre Diversidade Biológica (de 1993) fala sobre acesso a recursos genéticos, repartição de lucros, propriedade intelectual. Diz: os povos originários devem ter a proteção e o respeito a seus usos e costumes, todos os direitos. No final, também diz: “acesso aos recursos genéticos, ao saber ancestral”.
Essa é a verdadeira riqueza e o que determinará quem viverá e quem morrerá, na próxima era da humanidade. Estão em busca disso. Isso vale mais do que o ouro, a prata e o petróleo. É para isso que servem as áreas protegidas, os bancos de dados.
Nós sabemos disso, por isso nos recusamos. No momento em que cairmos na armadilha de aceitar que nossos saberes sejam registrados como propriedade intelectual, entrarão na administração da Organização das Nações Unidas.
E há algo que é preciso saber. A OMPI é a Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Pode-se pensar: “a OMPI é a proteção, lá ficará no cofrinho”. Mas, não, é apenas para o registro. A administração, as licenças e as patentes correm por conta da Organização Mundial do Comércio (OMC). Aí está a armadilha. O mesmo acontece com as áreas protegidas.
Questiono a Agenda 2030, que diz que 30% da superfície terrestre seja área protegida. Isso significa que haverá lugar para 30% da humanidade e dos territórios. O resto serão áreas sacrificáveis e aqueles que viverem nelas serão sacrificáveis.
Se os impactos estão sendo vistos, por exemplo, com a crise climática, por que se insiste em extrair os recursos?
Porque é poder. Há determinadas famílias que, há muitos anos, dominam o mundo. Por isso, durante a vida toda, você votará na direita, na esquerda, e as coisas não vão mudar. Mas, está vindo uma era de mudança da consciência natural, porque há muitas coisas que os povos originários sabem. É preciso voltar às fontes. É preciso despertar. E esse tempo chegou.
Tem muita gente que é pessimista e diz que não há mais o que fazer, que tudo acabou. Mas, eu acredito que é agora que resta tudo a fazer. Por isso, falo de re-evolução. Já fizemos a revolução que trouxe à luz muitas coisas: genocídios, homicídios, latrocínios. Já mexemos o caldo. Agora, é preciso re-evoluir: saber o que somos, o que sentimos.
Então, existe uma esperança.
Não é possível ser um lutador sem esperança. Sem alegria, sem gozo, sem satisfação. Na luta, não existe o triunfo, nem a derrota, é luta sempre, para sempre, porque é preciso lutar pela ideia para que a ideia se mantenha vigente. Ganhar ou perder é um sentimento que satisfaz seus egos ou sua raiva, por um tempo.
Em uma entrevista, você contou que José Flores, quéchua do Peru, certa vez, disse que para aprender é preciso ler a alma do povo. Como fazemos isso, hoje?
Certa vez, alguém me disse, o que também relacionado a isso, como se detecta o medo cênico: subindo ao palco. Se você nunca sobe no palco, nunca entenderá o pânico cênico. Isso é o mesmo. Para ler a alma dos povos, para interpretar os movimentos, é preciso ir aos povos, é preciso fazer território.
Eu tinha uma visão quando participava das assembleias, mas quando comecei a participar das marchas, quando visitei os calabouços, três ou quatro vezes: “Ah, então é assim, esse é o preço que devo pagar”. Quando você vai preso aprende um montão de coisas, quando compartilha noites com zero grau, quando tem que acampar cercado por escorpiões e cobras para interromper a passagem das mineradoras e vê as pessoas, seus companheiros, atribulados, aflitos, irritados, que choram, que lamentam, que riem, que ainda têm tempo para preparar suas refeições, para viver!, então, sente a alma do povo.
Às vezes, tem-se o conceito de dizer: “eu colaboro muito com isso, ajudei lá, dei uma mão”. Você se envolve na luta, não está ajudando ninguém. Isso entra nas máximas elementares de todos os povos originários: solidariedade, complementaridade e reciprocidade. São três eixos fundamentais da governança comunitária e da vida comunitária. O mesmo que não mentir, não roubar, não ser ocioso. E o mais elementar de tudo: não ser traidor.
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“O caminho é devolver os territórios a seus povos”. Entrevista com Marcos Pastrana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU