"Estamos pagando caro por ocupar o lugar da água". Entrevista com Rualdo Menegat

Geólogo é o autor do referencial "Atlas Ambiental de Porto Alegre" (1998)

Foto: Fernando Oliveira | PMPA

17 Mai 2024

A chuva atípica e as enchentes históricas no Estado são resultados de fatores como o aquecimento global, pouco planejamento na ocupação urbana e escassez de investimentos em infraestruturas contra cheias. A avaliação é de Rualdo Menegat, geólogo, doutor em Ecologia de Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desde 1992.

Natural de Nova Pádua, na Serra, o cientista vive desde os 17 anos em Porto Alegre. É o organizador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, publicado em 1998, um trabalho inédito que mapeia dados históricos, ambientais, populacionais e geológicos de Porto Alegre. O geólogo também recebeu destaque internacional pelo trabalho com a civilização inca, no Peru.

Rualdo Menegat (Imagem: UFRGS)

A entrevista é de Vinícius Coimbra, publicada por GZH, 16-05-2024

Eis a entrevista. 

Guaíba com nível acima de cinco metros, Centro Histórico de Porto Alegre alagado, municípios do Interior destruídos. Como chegamos a esse cenário?

É uma situação complexa e prefiro estruturá-la em cinco pontos. O primeiro é o aquecimento global. Estamos, agora, com 1,5ºC acima da temperatura esperada (no planeta), isso faz com que as chuvas sejam mais intensas e os eventos mais frequentes, como esse ocorrido no Estado que resultou em 800 milímetros de água em pouco tempo. O segundo ponto é a situação geográfica. Porto Alegre está no sopé do Planalto Meridional, onde choveu bastante e os vales profundos dos rios convergem para a Capital – Jacuí, o Taquari/Antas, o Rio do Sinos, o Caí e o Gravataí –, o que faz com que tenhamos cinco grandes inundações reunidas. E essa água, como em um funil, chega no delta do Jacuí e dali escoa para outro sistema complexo, que é o das lagunas e lagos da região costeira do Rio Grande do Sul. O lago Guaíba está conectado com a Laguna dos Patos e esta, por sua vez, com o Atlântico. Se o Atlântico está mais alto devido a marés e tempestade ou por causa do vento, a água não escoa. É o cenário que temos. O terceiro ponto é a resposta à situação crítica. Nossos serviços ecossistêmicos foram desestruturados por conta da supressão dos banhados e das matas: isso faz com que a água escorra muito mais rápido para os rios e deles até Porto Alegre. As cidades também cresceram muito, chegando até a borda dos rios, não deixando espaços para a água estacionar. Isso também causa inundação. O quarto é que a infraestrutura para enfrentar a inundação também ficou mais débil. Cito aqui a infraestrutura de energia elétrica, de água, mas principalmente de proteção contra inundação. O quinto ponto é a capacidade da Defesa Civil de preparar a população, produzir alertas que sejam respeitados.

Quais as principais falhas no enfrentamento à cheia do Guaíba?

Uma cidade que foi inundada a vida inteira não pode ser pega de surpresa por uma inundação. Vimos pessoas correndo desesperadas, com apenas a roupa do corpo no telhado de casas, resgates de barcos e helicóptero. Esse é o limite de uma situação crítica; nós não podemos chegar ali. É para isto que existe a infraestrutura do Estado, a inteligência da sociedade e a capacidade social: para que nós possamos prever esse tipo de situação. Falhamos nisso. Mesmo que haja uma catástrofe, algumas coisas têm de funcionar: a luz, a água, os hospitais, os bombeiros. Um bebê não escolhe a hora de nascer. Tem que haver um hospital para essa mãe. Mas, em Porto Alegre, não temos um plano, ficamos sem informação (durante a cheia), se teríamos luz ou não, se era melhor sair da cidade ou ficar. Nada. Não temos, na cidade, nenhum reservatório de emergência caso algo aconteça com o nosso sistema de abastecimento de água. Na hora crítica, nós não tínhamos sistemas de alerta, nem planejamento para caso o muro não funcionasse. Não havia um plano para levar as pessoas para albergues. Não podemos chegar nesse ponto: isso revela muita imaturidade do ponto de vista técnico. O resumo foi que a inundação chegou em Porto Alegre como uma surpresa.

Como explicar esse paradoxo de a cheia ter sido uma surpresa se é algo recorrente na Capital?

Nossos serviços ecossistêmicos foram desestruturados por conta da supressão dos banhados e das matas: isso faz com que a água escorra muito mais rápido para os rios e deles até Porto Alegre. As cidades também cresceram muito, chegando até a borda dos rios, não deixando espaços para a água estacionar. Isso também causa inundação. A infraestrutura para enfrentar a inundação também ficou mais débil.

Do ponto de vista ambiental, a história de Porto Alegre é a luta para enfrentar enchentes e inundações. No passado, foi estabelecida uma política de aterrar, de eliminar, de suprimir os banhados que inundavam. Não pensamos a cidade a partir do fato de ela estar em um local sensível do ponto de vista hidrológico, não houve um pensamento de como habitá-la e evitar situações extremas. Foi o que levou Porto Alegre a ter um sistema contra inundação. Não é uma cidade que desconheça a situação (do perigo de uma cheia). Ela se preparou desde 1941. Sabendo disso, é importante perguntar: por que esse sistema não funcionou? Como foi possível que essa cheia parecesse algo inusitado, em um local cuja cultura e desenvolvimento urbano foram o da busca por vencer inundações?

Como foi o desempenho do sistema de proteção de Porto Alegre na cheia deste mês? Seria necessário ter uma infraestrutura mais robusta para enfrentar a situação?

Aprendemos em 1941 que uma cidade como Porto Alegre tem que ter um sistema de proteção contra inundações pronto e funcionando. Nos últimos anos, essa estrutura não avançou. Também foram fechados sistemas de inteligência do Estado e da prefeitura; um dos exemplos disso é que o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) (da Capital) foi suprimido em uma cidade que está estabelecida em um lugar muito sensível. Pode ser uma surpresa para alguns, mas nossa estrutura funcionaria perfeitamente se a manutenção fosse boa, se as bombas funcionassem, se não houvesse extravasamento das comportas. É um sistema antigo, que já devia ter sido renovado, mas ele deu conta enquanto estrutura. A precariedade da manutenção fez com que ele vazasse. Ele vazou, não arrebentou. Faltou um investimento adequado.

Derrubar o Muro da Mauá é um assunto antigo na Capital e volta ao debate político de tempos em tempos. Já podemos avaliar como foi o desempenho dele para mitigar prejuízos?

Se essa tempestade acontecesse daqui um ano, quem sabe não teríamos o muro. Imagine que situação crítica seria. Não devemos fazer debates tão polarizados na cidade a favor ou contra o muro. Devemos saber para que ele serve: não importa se é feio, bonito, e sim ter outro tipo de valor. Ele é importantíssimo para a nossa cidade, mostrou o seu valor. Precisamos melhorá-lo junto com as casas de bomba, para que sejam de fato funcionais no momento crítico. Espero que a ideia de derrubar o muro seja finalmente engavetada.

O crescimento da cidade sobre o lago nas últimas décadas influenciou na situação que vemos hoje em Porto Alegre?

Sim. Não só sobre o lago, mas também sobre os arroios. O Arroio Dilúvio, por exemplo, era serpenteante e tinha uma larga planície para acumular água, e foi sendo suprimido. Toda água que cai na bacia dele vai rapidamente para o Guaíba. Porto Alegre cresceu em relação ao lago com os seus aterros e isso constrange mais os corpos d'água e fazem com que eles se avolumem mais rápido e tenham maior velocidade.

Isso explica que a maioria das áreas atingidas pela cheia do lago seja aterrada?

Os aterros de Porto Alegre são baixos. Em toda a Zona Norte, temos aterros de meio metro quando, para ocupar com segurança, deveríamos ter 1,5 metro. Isso inclui o Humaitá, Sarandi, Mario Quintana, por exemplo. Toda essa região foi, no passado, um lago do Rio Gravataí. São locais ocupados por populações graças aos aterros. A cidade, no seu desenvolvimento, deixou de dar lugar à água, que, na hora que se avoluma, exige esse lugar de volta. É por isso que acontece uma inundação.

Porto Alegre errou ao não tratar como um alerta o que ocorreu no Vale do Taquari em setembro do ano passado?

Não faltaram avisos: em 2015, o Guaíba inundou todo o cais e foi preciso fechar a comportas depois de muito tempo. Ano passado, ele subiu bastante e novamente foram fechadas. Isso mostra que houve descaso.

Para muitas pessoas, um cenário do Guaíba com nível acima de 5 metros era impensável até poucas semanas. Podemos lidar com situações piores no futuro?

Sim. Com o aquecimento global, os oceanos evaporam mais. Não fazemos ideia da capacidade que a atmosfera tem de armazenar vapor d'água. Isso faz com que as chuvas sejam mais volumosas. Temos que ter cuidado, porque essa quantidade pode ser muito maior do que essa que nós vimos (chuvas no RS entre o fim de abril e início de maio). Temos de entender que a atmosfera pode ter outros comportamentos. Porto Alegre está em uma área sensível e vivemos em um século em que há uma probabilidade aumentada de eventos severos. Então, se achamos que em 2050 uma enchente dessas possa alcançar 6m50cm, o que vamos fazer? Vamos começar a fazer um muro agora? Porque as cidades demoram. O último plano estratégico ambiental de Porto Alegre foi o Pisa (Programa Integrado Socioambiental) inaugurado em 2014. Hoje, nós não temos projeto estratégico para a cidade, a não ser construir espigões.

E como fazer que esse alerta das mudanças climáticas virem ações nas cidades?

Temos que pensar em construir uma sociedade capaz de gerar novos pensamentos, para viver em um mundo de 8 bilhões de pessoas que vai passar por tempestades. Eu imagino as cidades do século 21, como Porto Alegre agora, como navios que estão inundando. É assim que será a nossa vida nos próximos anos.

O Atlas Ambiental de Porto Alegre traz dados históricos, ambientais, populacionais e geológicos, além de também mapear o sistema de proteção da Capital contra cheias. Ele poderia ter sido uma ferramenta para mitigar as consequências da enchente?

Sim, em vários pontos de vista, mas principalmente para criar uma cultura ambiental com conhecimento. A partir do Atlas, fizemos um curso de capacitação que formou 600 professores de escolas de Ensino Fundamental, além de 800 monitores e 53 mil crianças em Porto Alegre. Isso tudo foi feito sem grandes apoios, não foi um programa institucional. Nós atravessamos vários governos resistindo. Como é que estão os programas de educação ambiental nas escolas de Porto Alegre? Foram reduzidos a zero. Não há vontade política para isso. Há também a falta de percepção da população. Porque, para ter um sistema de alerta, por exemplo, as pessoas precisam entender a situação, devem ser educadas em relação ao lugar em que vivem, conhecer e responder ao que é passado. Isso é educação e foi também negligenciada pela população.

O que deu certo durante a enchente em Porto Alegre?

A solidariedade horizontal; ou seja, as ações que não dependem de esquemas hierarquizados, de comandos estruturais, foi algo impressionante. Está sendo impressionante. A quantidade de coisas que já foram arrecadadas já não cabe mais em lugar nenhum. Isso mostra a capacidade de socorro espontânea das pessoas. Isso é algo que fez a diferença. Não foram as orientações do prefeito, do governo. Sem essa solidariedade horizontal, não sei como seria enfrentada essa situação. É um grande exemplo em meio a todos os problemas.

Quais os principais ensinamentos que a sociedade gaúcha deve tirar dessa crise?

O primeiro é não negar a emergência climática. Isso deve ser levado a sério porque é o nosso futuro, dos nossos filhos e netos que está em questão. O segundo grande ensinamento é que precisamos entender a natureza sensível do ponto de vista hídrico, ambiental e ecológico de Porto Alegre e Região Metropolitana. Nós não podemos nos descuidar em nenhum momento de um sistema de proteção contra a inundação. E terceiro: nós devemos desenvolver programas democráticos junto com a população, de consulta, para encontrar soluções para cada situação. É dessa maneira que nós podemos construir um programa importante de uma sociedade mais regenerativa, que consiga regenerar os ecossistemas, os serviços ecológicos dos ecossistemas, e, a partir disso, enfrentar as mudanças climáticas.

O que precisamos fazer para evitar novas cheias em Porto Alegre?

Posso dar 500 ideias sobre o que fazer para o futuro, mas a questão é quem vai fazer. São os novos arquitetos, engenheiros, geólogos, sociólogos e jornalistas. Foram os pensamentos do século 19 e 20 – dos nossos pais, avós e bisavós – que nos trouxeram até aqui e que nos remeteram para essa situação.

Precisamos pensar em uma cidade que seja capaz de ser mais porosa, não só em relação ao solo, mas também que consiga trazer corredores ecológicos para dentro da cidade. Os corredores ecológicos são importantes, como a margem do Guaíba, para proteger todos os estoques ambientais que a Capital ainda tem. Porto Alegre não pode deixar que morros, banhados e matas na margem do lago fiquem fragmentados. Precisamos tornar contínuos esses estoques, porque são eles que nos protegem: eles detêm a velocidade da água, ajudam na infiltração da chuva no solo. Assim, Porto Alegre tem que ser planejada para o futuro de um ponto de vista regenerativo, com novas ideias, não com as ideias que nos trouxeram até aqui. É o momento de pensarmos de forma regional e agir localmente, se quisermos, de fato, enfrentar as tempestades do século 21.

E no curto prazo, o que deve ser feito para evitar novos desastres?

Temos de repensar situações de moradia em locais úmidos e inundáveis, planejar residências que estejam mais elevadas, que fiquem seguras para cotas de inundação de um metro. Nós temos que olhar os nossos morros também. A prefeitura nunca terá dinheiro, capacidade para o desenvolvimento das nossas comunidades no sentido de dar-lhes infraestrutura menos vulnerável. Nos morros, nós temos que dar diretrizes aos moradores sobre o controle da água, uso de calhas, cisternas, para aprender a direcionar a água. São formas de atuar nessas áreas e diminuir o risco. Quanto mais conectados à natureza, mais nós fazemos com que ela trabalhe para nós. Vamos gastar bilhões de reais para deixar funcional novamente a nossa vida aqui no Rio Grande do Sul: estamos pagando caro por ocupar o lugar da água.

Se o poder público não tem recursos para criar uma política capaz de enfrentar as mudanças climáticas, quem poderia liderar isso?

As universidades, nossos alunos, porque nós temos de formar técnicos que tenham um pensamento adequado para o que vamos enfrentar. Posso dar 500 ideias sobre o que fazer para o futuro, mas a questão é quem vai fazer. São os novos arquitetos, engenheiros, geólogos, sociólogos e jornalistas. Foram os pensamentos do século 19 e 20 – dos nossos pais, avós e bisavós – que nos trouxeram até aqui e que nos remeteram para essa situação. Não podemos usá-las para a nossa reconstrução. Isso seria insistir no erro. Então, neste momento, nós temos que usar esse evento como um ponto de superação. Essas novas ideias são as que olham o século 21, que é e será de eventos tão ou mais intensos e frequentes quanto esse que estamos vendo no Rio Grande do Sul. O caos atual pode nos fazer sentir impotentes como sociedade, como se o que vivemos fosse inevitável. É como dizer que não merecemos mais do que isso. É algo horrível.

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