“Colapso é a forma como estamos atuando diante das mudanças climáticas”. Entrevista especial com Paulo Petersen

“É preciso enfrentar os bloqueios estruturais e políticos que impedem que outras capacidades se desenvolvam, se irradiem e sejam assumidas pelo conjunto da sociedade”, afirma o pesquisador

Foto: Ricardo Stuckert/PR

16 Mai 2024

“As mudanças climáticas não significam o colapso; o colapso é a continuidade da forma como estamos atuando diante das mudanças climáticas”, afirma Paulo Petersen, coordenador-executivo da ONG AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, membro do núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, as inúmeras crises que estamos vivenciando no Rio Grande do Sul no atual momento indicam que estamos nessa situação em decorrência da forma como crescemos. “Nós transferimos para a natureza o custo de pagar o estado de bem-estar social. Nós precisamos de um estado de bem-estar social que preserve a natureza e isso se chama economia solidária”. E acrescenta: “Os bilionários são responsáveis pelo que está acontecendo: eles estão acima dos Estados e definem as políticas públicas”.

A crise socioambiental e climática, destaca, também evidencia que “a questão ambiental ainda não foi suficientemente compreendida e incorporada como uma possibilidade de organizarmos outra sociedade, que tenha a ver com os valores democráticos e de esquerda. O domínio do pensamento liberal, infelizmente, está presente nos partidos progressistas”. Neste ano de eleições municipais, acrescenta, “o tema da agroecologia, da economia solidária e da saúde precisa ser disputado. É nos municípios que podemos iniciar transformações. É fundamental que a sociedade dispute esses projetos nos processos eleitorais”.

Nesta terça-feira, 07-05-2024, Peterson ministrou a videoconferência Agroexportação e agroecologia. Limites e possibilidades do campo diante da emergência climática, que integra o ciclo de estudos Ebulição global. O Novo Regime Climático e seus desafios psicossocioambientais no Brasil.

A seguir, publicamos as perguntas e respostas suscitadas após a exposição do pesquisador. A conferência completa está disponível aqui.

Paulo Petersen (Foto: Roberto Ornelas)

Paulo Petersen é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural pela Universidad Internacional de Andaluzia (UNIA) e doutor em Estudos Ambientais pela Universidad Pablo de Olavide (UPO).

Confira a entrevista.

IHU – Até que ponto o agronegócio é questão de eleição e de partidos? Como a agroecologia pode se desenvolver se os líderes que a defendem perdem as eleições?

Paulo Petersen – Eu não diria que o agronegócio é uma questão de partidos. Mesmo em partidos progressistas, não só no Brasil, a questão ambiental ainda não foi suficientemente compreendida e incorporada como uma possibilidade de organizarmos outra sociedade, que tenha a ver com os valores democráticos e de esquerda. O domínio do pensamento liberal, infelizmente, está presente nos partidos progressistas. Um exemplo é a ideia de transição energética que está dominando o atual governo federal. Não podemos dizer que ela decorre de pressão do Congresso, necessidade de governança ou necessidade de ter que negociar com o Congresso. Absolutamente é convicção do governo que precisamos descarbonizar e isso significa implementar grandes parques eólicos.

Nesse contexto, considera-se o agronegócio uma necessidade porque ele exporta e sustenta a economia, o que é uma falsidade. É importante desmistificar isso. É evidente que uma economia que foi reprimarizada na base da agricultura e da mineração desde a década de 1990 – quando a indústria foi destruída assim como os serviços – fica cada vez mais dependente do setor primário. Precisamos pensar um outro tipo de economia, onde os setores primário e secundário se articulem de forma sustentável, isto é, com base nos processos ecológicos. Essa compreensão ainda é muito limitada no bloco de esquerda. Pensar uma perspectiva ecossocialista ainda é uma luta dentro dos partidos progressistas. A fala do presidente Lula no domingo [05-05-2024] é uma fala convicta de que o agronegócio é o grande salvador da pátria. Quando não o é, ele é a trava.

Agronegócio subsidiado

Boa parte da economia exportada é subsidiada pesadamente pelo Estado. Se não fossem os pesados incentivos, os perdões de dívidas e as isenções fiscais, o agronegócio não se sustentaria. Quem sustenta o agronegócio é o povo brasileiro e o lucro do agro não é socializado; é privatizado. Quer dizer, o setor drena as economias da sociedade e não devolve absolutamente nada para ela. É uma falácia a ideia de que o agronegócio sustenta a sociedade. A expansão desse setor independe dos partidos mais ou menos progressistas. Na onda rosa dos anos 2000, na América Latina todos os governos continuam se baseando na exploração de minério, de petróleo e agronegócio.

Força social

Este é um debate complicado porque não basta ganhar a eleição; é preciso ter força social. É por isto que insisto: é preciso que os movimentos sociais consigam pressionar os governos. Precisamos de governos mais democráticos, que dialoguem e, com as margens que esses governos abrem, vamos fortalecendo a sociedade civil para mudar os planos e as perspectivas políticas. Não é suficientemente incorporada uma perspectiva socioecológica, e parece que a questão ambiental é um assunto de ambientalistas. Mas não é um assunto de ambientalistas porque também existem ambientalistas fascistas que acreditam no ecofascismo. Estamos falando de outra sociedade democrática, que estabeleça outra relação com a natureza e com a sociedade. Por isso, precisamos de uma perspectiva ecossocial. Estamos longe disso, mas o Brasil é um dos países protagonistas na agenda agroecológica.

IHU – Acredita que a reconstrução da agricultura gaúcha ocorrerá em uma nova base mais ecológica? Esta é a grande chance?

Paulo Petersen – Ou será com esta perspectiva ecológica ou não haverá reconstrução. A continuar a lógica expansionista do agronegócio, favorecida pelas mudanças institucionais promovidas pelo último governo federal e estadual, o que vamos ver é a destruição. Entramos em um novo normal. Não podemos achar que o que aconteceu agora [enchentes] é um fenômeno episódico. A possibilidade de acontecer outras vezes é grande e vai se acentuar. Isso não significa um discurso catastrofista, mas significa que precisamos nos preparar e, para isso, precisamos de mudanças estruturantes, a começar pela agricultura.

Se os sistemas agroalimentares, que vão desde a produção até o consumo, não tiverem uma perspectiva ecológica, que altere as formas de produção e consumo de alimentos, as bacias hidrográficas que alimentam o Guaíba não estarão preparadas, nas próximas chuvas, para conter o fenômeno. Não adianta utilizar sacos de areia e comportas no Guaíba. Precisamos tratar a questão como um sistema amplo, o que inclui não só as relações climáticas, mas também a economia, a alimentação, a fome, a desnutrição, quer dizer, a única possibilidade que temos de reconstruir é nos adaptando às mudanças climáticas.

Adaptação

Precisamos entender que as mudanças climáticas não significam o colapso; o colapso é a continuidade da forma como estamos atuando diante das mudanças climáticas. O Rio Grande do Sul é portador de experiências pioneiras. Foi no Rio Grande do Sul e nos estados do Sul que se construíram os sistemas participativos de garantia que hoje estão espalhados pelo mundo. Mas é preciso enfrentar os bloqueios estruturais e políticos que impedem que essas capacidades se desenvolvam, se irradiem e sejam assumidas pelo conjunto da sociedade. Estou falando da necessidade de colocar a agroecologia na boca do povo. Agroecologia não pode ser um assunto só de agricultores pioneiros ou de um conjunto de acadêmicos. Ou a agroecologia é assumida coletivamente para que possamos mudar as políticas públicas ou continuaremos com boas experiências limitadas e isoladas umas das outras localmente. Assim elas não serão suficientes para fazer frente aos desafios com os quais a humanidade está se deparando.

IHU – É possível se sustentar com economia solidária?

Paulo Petersen – A humanidade se sustentou historicamente com economia solidária. O capitalismo é um fenômeno recente. A humanidade cresceu muito nos últimos séculos, mas cresceu mal. Estamos nessa situação exatamente pela forma como crescemos. Nós transferimos para a natureza o custo de pagar o estado de bem-estar social. Nós precisamos de um estado de bem-estar social que preserve a natureza e isso se chama economia solidária. Não podemos ter bilionários no planeta. Isso não é solidário. Os bilionários são responsáveis pelo que está acontecendo: eles estão acima dos Estados e definem as políticas públicas. Quando falamos em economia solidária, o Estado tem um papel importante a desempenhar na regulação da economia, ou seja, os mercados não podem ser entregues nas mãos dos bilionários. Mercados são uma invenção humana para que possamos conviver melhor. O que sustenta a atual economia é o Estado. O discurso é que não precisa do Estado, mas ele está ali, sempre para salvar a economia.

Precisamos de uma economia fundamentada na economia solidária. Isso significa rediscutir os valores. O valor de uma economia não é só o valor financeiro. Uma economia que organiza bem uma sociedade tem vários valores éticos, construídos em um sistema participativo de garantia. Esse sistema é um dispositivo da economia solidária. O sistema solidário permite que, solidariamente, produtores e consumidores estabeleçam relações de confiança. O sistema participativo de garantia é mais eficiente na garantia, mais solidário, gera relações sociais. É possível disseminar esse sistema para regular os sistemas agroalimentares. Esse modelo não é disseminado porque existem bloqueios institucionais. Não deveríamos estar colocando selo em produto ecológico, mas, sim, nos produtos transgênicos e nos produtos ultraprocessados.

Outro valor ético na economia é cooperação, solidariedade. Precisamos substituir a ideia de competição pela de cooperação e solidariedade. Assim, é perfeitamente possível e necessário levar adiante a ideia da economia solidária.

É uma pena que tenhamos uma Secretaria da Economia Solidária que não está no Ministério da Economia, mas, sim, no Ministério do Trabalho. É uma secretaria bastante marginalizada e em busca de reconhecimento. A economia solidária não avança porque não tem apoio institucional. Se não houver avanço na perspectiva da economia solidária, também a ecologia não avançará. Temos que ter a compreensão de que se a economia solidária não é maior não é porque não demonstrou efetividade; não é maior porque existem bloqueios institucionais poderosos que estão nos grupos que se beneficiam, aqueles que estão do lado do agronegócio e da economia capitalista.

IHU – Qual a relação do passivo ambiental entre a agroecologia e o agronegócio para sustentar a inviabilidade desse modelo?

Paulo Petersen – Entendo a agroecologia como a economia solidária dos sistemas alimentares. A construção dela se faz dentro deste ambiente extremamente hostil à sua própria existência e extremamente favorável à expansão do agronegócio, a começar pelas regras ambientais, incentivos fiscais e a promoção ideológica. Existe um conflito entre as duas perspectivas. Elas não se conciliam no espaço e no tempo. O agronegócio tem uma dinâmica expansiva, ele passa por cima da agroecologia. Literalmente, os aviões pulverizando agrotóxico nos cultivos inviabilizam a possibilidade de organizar a produção e distribuição de outros padrões. Os transgênicos se disseminam e inviabilizam outros modelos. Os supermercados que dominam o mercado alimentar inviabilizam os mercados locais. Esse conflito é a contraposição entre a economia solidária e a capitalista. Esses modelos são irreconciliáveis. Na agroecologia, usamos muito o termo “território” porque os territórios estão em disputa. Por mais que se tenham demonstrações empíricas de modelos agroecológicos em várias regiões do Brasil e do mundo, são experiências ameaçadas, sempre na resistência. Existe, de fato, um passivo, uma tensão que precisa ser desmontada.

A degradação do solo e a contaminação da água não são fatores externos à economia porque dependemos desses mesmos recursos para reconduzir a economia. Precisamos questionar os indicadores econômicos e o PIB agrícola porque ele é um péssimo indicador. Ele indica o tamanho do crescimento da economia, mas o que o modelo está gerando em termos de fome, degradação ambiental, social, pobreza e violência, não é contabilizado. A economia ecológica é marginalizada no debate político e econômico, mas ela contabiliza esses outros fatores. A economia não fala só de produção, mas de produção e reprodução. Se falarmos somente de produção, nunca teremos uma economia sustentável porque estamos destruindo a base social e ecológica da sustentabilidade. Precisamos de um paradigma econômico que contabilize todas as economias que são inviabilizadas pelas estatísticas e pela economia dominante.

IHU – Como desmontá-la?

Paulo Petersen – Todos os anos, o governo lança o Plano Safra. A produção industrializada, chamada moderna, com agrotóxicos, recebe muito incentivo. A produção agroecológica, pouco. Estamos dependendo não só de mais investimento de um lado, mas de colocar um freio do outro lado, porque se o governo disponibiliza mais recursos para a agroecologia, mas o agronegócio continua recebendo incentivos cada vez maiores, a tendência é o agronegócio passar por cima da agroecologia. Na Articulação Nacional de Agroecologia, defendemos um programa nacional de redução de agrotóxicos. Do ponto de vista agronômico, é perfeitamente possível diminuir o consumo substancial de agrotóxicos sem mexer em 1% do PIB agrícola. A grande dificuldade é que a bancada ruralista, o grande cartório das grandes corporações, domina o Congresso Nacional. Aí tem uma questão de governabilidade. Não tem outra solução a não ser a mobilização da sociedade.

Eleições municipais

Neste ano tem eleições municipais e o debate da alimentação e da agricultura é importantíssimo. O tema da agroecologia, da economia solidária e da saúde precisa ser disputado. É nos municípios que podemos iniciar transformações. É fundamental que a sociedade dispute esses projetos nos processos eleitorais.

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