"O “presidencialismo de coalizão” ruiu e deu lugar a algo pior. Mas há um viés nas análises da mídia. Elas ocultam a ação crescente dos movimentos que defendem a ministra da Saúde, um programa de reformas e a atualidade das lutas pela democracia", escrevem Sonia Fleury e Luiz Antonio Neves, em artigo publicado por Outras Palavras, 19-06-2023.
Sonia Fleury é cientista política, pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos AIC da Fiocruz e coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco.
Luiz Antonio Neves é médico, ex-prefeito de Piraí e presidente da Associação de Municípios do RJ, professor de saúde coletiva do Centro Universitário de Volta Redonda - UniFOA.
A pressão do Presidente da Câmara dos Deputados e dos partidos de direita pela ocupação do ministério da Saúde pareceria descabida a qualquer cidadão de bom senso, considerando a excelente gestão da ministra Nísia Trindade e sua equipe, reconstruindo a terra arrasada deixada por políticos sem escrúpulos, desses mesmos partidos, e militares incompetentes, que levaram o país ao desastroso resultado de ser considerado o pior lugar para se estar durante a pandemia.
A perplexidade se desfaz ao considerar que o que está em jogo nada tem a ver com a saúde da população, mas decorre de uma conjuntura politica complexa, na qual as forças que perderam as eleições presidenciais, mas que são majoritárias no Congresso, buscam emparedar o governo do presidente Lula, esvaziando sua força política e impedindo, assim, o cumprimento do programa reformista para o qual foi eleito. Uma conjuntura de disputa político-eleitoral permanente.
A eleição de Lula representou um duro golpe para o que o cientista político André Singer denominou [1] como a Confederação Bolsonarista, aliança que inclui o agronegócio, produtores de armamentos, empresários do setor de serviços, o partido militar, lideranças políticas neopentecostais e conservadores, apoiados por uma classe média com ganhos situados entre 2 e 5 salários-mínimos, afetada pela crise econômica e pelas fortes transformações culturais que estão em curso na sociedade. Para os movimentos sociais, setores populares, partidos de esquerda e defensores da democracia a vitória nas urnas, em 2022, representou um incomensurável feito. Trata-se da volta ao Estado de Direito e a possibilidade de reconstrução da institucionalidade democrática, face ao risco de consolidação de um poder autoritário por meio do governo populista de ultradireita, respaldado por sua associação com os interesses políticos das elites regionais e religiosas, os interesses corporativos da casta militar e os interesses econômicos do setor financeiro na manutenção das políticas de “austeridade” e desregulação.
O êxito eleitoral foi resultado da construção de uma frente ampla em prol da democracia que incluiu desde as esquerdas e forças progressistas até a mídia comercial e parte dos economistas ligados ao mercado financeiro, sendo que estes dois últimos atores condicionaram seu apoio a Lula à preservação da “austeridade” fiscal, em franca oposição ao programa do candidato, que privilegiou o desenvolvimento, a recuperação das capacidades estatais e a inclusão social. Apesar da derrama de recursos públicos e das medidas de boicote às eleições, a vitória de Lula, mesmo por uma pequena margem de votos, foi consagrada, dando início a uma sequência de tentativas de golpe e atos de terrorismo que culminaram nos eventos do 8 de Janeiro de 2023. Os fatos, que se iniciaram com acampamentos diante dos quarteis, não tiveram a adesão do alto comando militar – em decorrência da imediata manifestação do governo Biden e do apoio eleitoral recebido por parte do capital financeiro. Mesmo assim, contaram com a cumplicidade de comandantes do exército, passaram pelas imagens da convivência entre terroristas e militares na invasão ao palácio do Planalto e mostraram o envolvimento de fardados da ativa na articulação do golpe frustrado. Esses eventos, que ainda estão vindo à luz, demostraram o terreno minado a ser percorrido para retirar os golpistas das entranhas do governo e do aparato estatal. Tal processo, ainda em curso, começou a ganhar corpo com a substituição do comando do exército, ainda em janeiro.
Já a ampla frente democrática foi desfeita imediatamente após a eleição, com a mídia comercial e o capital financeiro passando a exercer ferrenha oposição ao governo, ainda nas fases de transição e de composição do ministério, cobrando a sua fatura na imposição da cangalha do austericídio ao governo. O que terminou por dar lugar à realpolitick do arcabouço fiscal do ministro Haddad, assegurando a continuidade da lucratividade e dos interesses do “povo do mercado”, mesmo que colocando em risco a recuperação do investimento público e do financiamento das políticas de proteção social que asseguram os interesses do “povo do Estado” nos termos cunhados por Streek [2]. Ficou patente a estreiteza da margem de manobra para implementar as reformas programáticas para as quais o governo foi eleito, o que delineia um cenário de enfrentamentos futuros ou capitulação e desencanto popular com a democracia.
Se a frente pela democracia se desfez como fumaça ao vento, as direitas se reagruparam imediatamente, adotando como arena fundamental a Câmara Federal, onde o governo se encontra em franca minoria. A negociação empreendida pelo presidente Lula para aprovação da PEC da Transição levou à reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado e assegurou as condições mínimas para elevação do salário-mínimo e manutenção do valor do benefício assistencial, que voltou a se chamar Bolsa Família. O governo contou ainda com a decisão do STF, declarando a ilegalidade da manutenção do “orçamento secreto”, o que melhorou o equilíbrio de poder em favor do Executivo. No entanto, o que se assistiu a partir deste ponto foi uma franca ofensiva, capitaneada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, com o apoio majoritário dos partidos de direita, buscando impedir o governo de implementar seu programa, e, assim, aumentar seu cacife para negociar recursos e prebendas. Do presidencialismo de coalizão passamos ao presidencialismo de confrontação, situação que traz de volta o espectro do golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff em 2016.
O presidencialismo de coalizão, termo cunhado por Sérgio Abranches [3], foi caracterizado como o arranjo necessário para assegurar governança, em um sistema presidencialista onde a fragmentação partidária impede que o Executivo obtenha maioria congressual nas eleições e, portanto, deva construir uma coalizão apoiando-se no partido que obteve maioria congressual. Assim foi articulada a governança nos governos do PSDB, apoiando-se no PFL e do nos governos do PT, respaldados no suporte do MDB. O êxito de tal arranjo dependia, como apontam os estudos de Angelina Figueiredo e Fernando Limongi [4], de alguns fatores, tais como: a) o poder legislativo do Executivo, por meio de Medidas Provisórias que trancavam a pauta do Congresso e eram renovadas automaticamente; b) o regimento interno que atribui enorme poder à Presidência da Câmara para levar a votação projetos e até mesmo requerimentos de impeachment; c) o poder do Colégio de Líderes em indicações para comissões, votações simbólicas, distribuição de recursos, etc., permitindo, assim, o controle das bases partidárias.
O esgotamento deste modelo de governança tem ficado patente na inoperância do mecanismo de indicação de ministros como forma de assegurar apoio partidário ao governo. Como o “Centrão” depende visceralmente do governo, encontramos a posição esdrúxula da União Brasil que, apesar de ter aceitado três ministérios no governo Lula, não reconhece nenhuma indicação como partidária e não quer ser base formal do governo, espelhando a situação atual e os dilemas na construção das coalizões.
Algumas mudanças explicam os fatores responsáveis por tal situação, em especial a: 1) Redução do poder legislativo por parte do Executivo com o estabelecimento de prazo de 60 dias para que as Medidas Provisórias enviadas pelo Executivo vigorem; se não votadas nesse período, perdem o valor; 2) Perda de controle dos líderes partidários sobre as bases, decorrente da concentração de recursos nas mãos do presidente da Câmara por meio do Orçamento Secreto, com total poder discricionário e falta de transparência; 3) Aprovação do Orçamento Impositivo, em 2015, no qual as emendas parlamentares individuais passaram a ter execução obrigatória. Consequentemente, perda de poder do Executivo para contingenciar recursos de emendas parlamentares, importante recurso utilizado para obtenção de apoio dos parlamentares.; 4) Reformas eleitorais que forçaram o reagrupamento de partidos no Congresso, com a aprovação da cláusula de barreira e da federação de partidos, o que tem acarretado a perda de controle das lideranças sobre as bases.
Após a aprovação do arcabouço fiscal, a imprensa tem divulgado a contradição entre a melhoria dos indicadores econômicos enquanto a cresce a tensão política entre Executivo e Legislativo, tendo como foco o embate sobre o controle dos recursos públicos, financeiros e administrativos. Se bem é certo que os indicadores econômicos sinalizam um cenário de maior estabilidade, as contradições entre “quem ganha e quem perde” voltarão a se apresentar com virulência na discussão sobre a Reforma Tributária, ainda mais considerando a incapacidade de criar mecanismos que assegurem convergência e equilíbrio nas relações entre Legislativo e Executivo. Nesse cenário, aumentam as pressões dos partidos para ocupação de ministérios e estatais que detenham maior quantidade de recursos financeiros, administrativos e políticos, com especial destaque para o ministério da Saúde. Torna-se imprescindível a criação de novos mecanismos de governança, capazes de equacionar a relação entre Executivo e Legislativo. Insistir nos anteriores, como liberação de emendas e entrega de ministérios parece não ser mais eficaz para construção dos apoios políticos.
A disputa pelos recursos públicos precisa ser compreendida na sua dimensão maior, ou seja, da política. Para além dos interesses clientelares e provinciais, justificáveis ou escusos, que possam garantir aos políticos acesso aos recursos públicos considerados essenciais na disputa das eleições municipais que se avizinham, é preciso não perder de vista o projeto político das forças oposicionistas, que se traduz em um governo Lula enfraquecido, sob os torniquetes da “austeridade”, das ameaças golpistas, das chantagens do Legislativo. O que está em jogo é o poder de transformar o país em uma democracia social ou de continuar minando a democracia eleitoral por dentro, destruindo a inteligência do aparato estatal, desmontando as políticas de proteção social, inviabilizando investimentos e construção de uma economia nacional competitiva e uma nação soberana. Dessa forma, desenha-se um cenário eleitoral para as próximas eleições presidenciais que permitiria o retorno de um governo de direita. Esse jogo já está sendo jogado.
A escolha da ministra da Saúde do Brasil é carregada de simbolismos, por se tratar de uma cientista, servidora pública, gestora competente eleita pelos seus pares à presidência da Fiocruz, mulher, mas sobretudo porque representa integralmente a Ciência tomando frente no Ministério.
Sendo a Fiocruz, sua origem, um berço da ciência brasileira, respeitada mundialmente, a indicação se traduz num recado claro à sociedade de que o governo federal compreendeu plenamente que a política de saúde deve se pautar pelas melhores experiências, presidida pela ciência e com profundo compromisso com o povo brasileiro.
O mundo acabara de experimentar o auge de uma das mais nefastas pandemias da sua história e o Brasil de assistir uma luta interna fratricida, onde o próprio ministério da Saúde e o presidente da República davam seguidas demonstrações de negacionismo científico, de falta absoluta de solidariedade e humanidade, de incompetência, que ampliaram em muito a gravidade da pandemia em solo brasileiro, elevando o patamar de vítimas a mais de 700 mil vidas perdidas, absolutamente milhares de mortes evitáveis, beirando a um verdadeiro genocídio.
De outro lado, pasmados com tamanha selvageria do governo federal, mas não sem agir, a sociedade brasileira foi se mobilizando, encontrando caminhos e reencontrando no SUS – o Sistema Único de Saúde do Brasil, o seu verdadeiro braço forte, que em todos os recantos do país organizou e ajudou a população a enfrentar esse terrível flagelo, que ceifou também a vida de milhares de profissionais de saúde que estavam na linha de frente da luta contra a doença.
Novos modos de organização precisaram ser criados como o Consórcio de Veículos de Comunicação para, com dados dos Estados e Municípios, informar o melhor possível a população, pois os dados federais eram negados e não eram mais confiáveis. Esvaziada a coordenação que deveria ser exercida pelo ministério da Saúde, os governos estaduais fortaleceram mecanismos de cooperação e coordenação horizontal, como os consórcios regionais.
Diversas outras iniciativas foram se alastrando pelo país, em exemplos de resistência e coragem, destacando-se entre essas importantes ações a formação da Frente Pela Vida (FpV), que reúne dezenas de entidades de norte a sul do Brasil e centenas de pessoas, líderes compromissados com a democracia e a vida, que têm atuado de diversas formas, não só para o enfrentamento da pandemia, mas na defesa e na vanguarda de um sistema de saúde que contemple a integral necessidade de saúde da população. Além disso, o setor saúde é um dos principais motores da ciência brasileira e foi capaz de formular um projeto original de desenvolvimento , explorando a capacidade do complexo econômico-industrial que o setor saúde tem, capaz de gerar centenas de milhares de empregos e bilhões de dólares em divisas, todos SUS. A vanguarda da ciência se fez valer pela atuação impecável da Fiocruz e do Instituto Butantã, foram capazes de responder imediatamente através de pesquisas e parcerias para a produção de vacinas, mesmo enfrentando o “fogo amigo” do governo federal, projetando a necessidade de soberania nacional na produção de insumos e fármacos para o SUS.
Entretanto, não é de hoje que o ministério da Saúde é motivo de cobiça de diversas forças, sejam elas do mundo político ou do mercado. Trata-se de um ministério com enorme capilaridade, presente em todos os estados e municípios brasileiros, com um grande poder normativo sobre indústrias, serviços e a vida no cotidiano. Além do mais, movimenta bilhões de reais todos os anos através do seu orçamento (cerca de 180 bilhões em 2023). Sua potencialidade para ajudar a alavancar o Complexo Econômico Industrial da Saúde é enorme, o que afeta interesses multinacionais. Devido à incapacidade do mercado de planos e seguros de saúde de ultrapassar a cobertura além de ¼ da população, mesmo com os subsídios governamentais representados pela isenção tributária dos gastos dos consumidores, sua possibilidade de expansão da lucratividade fica na dependência da disputa dos fundos públicos da saúde.
Todos os interesses afetados pela atuação do ministério da Saúde convergem para a busca de menor regulação e maior articulação entre os setores público e privado. Já o interesse do mundo político sobre ministério foi se ampliando ao longo dos anos, envolvendo prefeitos, deputados e senadores, pois metade de todas as emendas parlamentares federais do país são executadas pelo órgão, o que aumentou a cobiça por aqueles que querem se utilizar desse espaço de política pública como máquina de votos e até mesmo de produção de recursos financeiros. E por tudo isso, não é possível mais imaginar que esse ministério, com tamanha envergadura e responsabilidade sobre o povo brasileiro, esteja à mercê de interesses outros que não a de realizar uma política pública de saúde centrada nas necessidades da população e do desenvolvimento do país.
O desempenho do ministério da Saúde nesses quase seis meses de governo, liderados pela ministra Nísia Trindade já deu prova de que trilhamos um excelente caminho. A valorização das vacinas com o Movimento Nacional pela Vacinação, o reforço da estratégia de Saúde da Família e toda a Atenção Primária, a retomada do programa Mais Médicos para suprir carências históricas e do programa Farmácia Popular, que beneficia diretamente toda população, a atenção sobre a saúde indígena tendo uma atuação impecável na crise humanitária e de saúde dos Yanomamis, o redesenho estratégico para a efetivação do Complexo Econômico Industrial da Saúde, são firmes exemplos de que a saúde no nível federal passou a caminhar de mãos dadas com os interesses da população e do país.
Há de se destacar ainda que desde que o Supremo Tribunal Federal deu entendimento às chamadas “emendas do relator”, cabe aos ministérios a sua organização e execução. Se somarmos a isso o fato de que 50% de todas as emendas obrigatoriamente serão executadas na saúde é de se esperar que o MS vire objeto de desejo de muitos que estão atrás de poder e dinheiro e não da saúde da população. Parte desse desejo pode ser visto na Câmara Federal quando o bloco do Centrão, liderado pelo PP de Arthur Lira, barra medidas importantes do governo, veta a extinção da Funasa, outro órgão de cobiça por cargos e orçamento, e passa a exigir publicamente a nomeação dos seus políticos em ministérios, chegando a ventilar para imprensa um nome para a Saúde.
Assim, é imperioso que os ordenadores de despesas – leia-se ministros – estejam precavidos para que a execução se dê na forma da lei e atinja os objetivos centrais da política, a saúde no caso aqui. O MS já publicou portaria ministerial orientando gestores de todo país a colocarem projetos para as emendas parlamentares que façam sentido com os planos municipais de saúde e as necessidades da população. Na mesma linha, a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, tem adotado medidas no sentido de barrar desvios no serviço público, o que tem gerado grita de parlamentares do “Centrão” pela demora e análise criteriosa das suas demandas. Em recente artigo, o jornalista Elio Gaspari defende a posição da ministra, mostrando que se tais critérios tivessem sido aplicados anteriormente na liberação de verbas de emendas parlamentares, inúmeros escândalos de malversação de recursos públicos e corrupção teriam sido evitados.
São medidas importantes que visam barrar a corrupção e que podem ser reforçadas por uma participação vigilante da sociedade brasileira, seja através dos Conselhos de Saúde ou por suas centenas de entidades e lideranças esparramadas pelo país afora. O fortalecimento do Conselho Nacional de Saúde e da Comissão Intergestores Tripartite têm sido importantes diretrizes da gestão atual do ministério da Saúde. Transparência e participação são as chaves para um estado democratizado. A gestão eficiente e capaz de assegurar os bens públicos necessários para suprir as demandas da sociedade não será alcançada loteando ministérios e secretarias, mas assegurando a autonomia técnica de um corpo burocrático competente, fiscalizado pelo Congresso e pela Sociedade Civil.
A realização da 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) em Brasília, de 2 a 5 de julho, culminará um processo participativo que começou antes mesmo das eleições presidenciais, com a realização da Conferência Livre, Popular e Democrática de Saúde em agosto de 2022, promovida pela Frente pela Vida – FpV. Naquela oportunidade, com a presença do candidato Lula e de vários parlamentares, acadêmicos e lideranças populares, foi apresentada uma carta de princípios em defesa do SUS universal, público e democrático, O candidato Lula se comprometeu com as bandeiras políticas e propostas concretas que decorreram de estudos aprofundados realizados pela FpV para garantir o efetivo direito à saúde, como reza a Constituição de 1988.
A força deste movimento seguiu sendo demonstrada com a realização de mais de uma centena de Conferência Livres, com discussões preparatórias e propostas a serem encaminhadas durante a 17ª CNS. A ausência de divulgação dessa movimentação que mobilizou, em todo o país, milhares de pessoas, evidencia a incapacidade da mídia comercial de perceber os fenômenos sociais que ocorrem fora das arenas de disputas políticas e econômicas. O bem público, a força do Comum, as discussões em arenas democráticas não institucionalizadas, a própria vida, tudo isso parece não ser objeto do noticiário nacional! Como não há ação política sem intenção, o que se pode deduzir é que, ao magnificar a crise de governança e omitir a força política das manifestações populares em defesa do SUS, do MS e da democracia, busca-se produzir uma crise de governabilidade, impedindo o governo Lula de cumprir os compromissos assumidos junto a seus eleitores e aos demais cidadãos que vêm a saúde como o principal problema a ser enfrentado pelo governo.
Enquanto os holofotes estão voltados para a crise de governança, decorrente dos embates eleitorais com consequências nas relações entre os poderes, a questão da governabilidade, que diz respeito à articulação entre o governo e as forças sociais, é menosprezada. A governabilidade, sendo um atributo da sociedade ao legitimar o exercício do poder, é a chave para desfazer o antagonismo que esvazia a governança e tenta colocar torniquetes no governo eleito. A sociedade já está mobilizada em apoio ao SUS e à gestão da Nísia Trindade no ministério da Saúde, e em defesa da democracia que vai muito além do sistema eleitoral e partidário, pois se concretiza no modo de vida cotidiano. Mas, apesar de o governo ter incorporado as forças sociais institucionalizadas e emergentes no desenho do novo sistema participativo, falta-lhe ainda o entendimento de que a saída do círculo de giz, no qual as forças reacionárias e conservadoras pretendem imobilizá-lo, encontra-se justamente na mobilização da sociedade que lhe assegura governabilidade.
A 17ª CNS será a arena pública ideal para que o governo faça este chamamento à sociedade organizada, que responderá com entusiasmo e alegria a convocação para demonstrar ao país e, em especial ao Congresso Nacional, que saúde não é mercadoria e que o ministério da Saúde não será moeda de troca, pois o SUS é a maior conquista democrática da nossa sociedade, exatamente porque foi construída no seio das lutas sociais pela democracia.
[1] Singer, André – El regresso de Lula. Revista Nueva Sociedad, No 305, mayo-junio de 2023, ISSN: 0251-3552, disponível aqui.
[2] Streeck W. The crisis of democratic capitalism. New Left Review. 2011; 71:5-29.
[3] Abranches, S. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, 31:1, p.5-38, 1988.
[4] Figueiredo, A. e Limongi, F. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. RJ que FGV/FAPESP, 1999.