21 Março 2023
“O princípio meritocrático é indiscutível: é de esquerda contra a discriminação em nome da igualdade”, assim François Dubet, renomado sociólogo francês e ex-diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, explica o princípio da meritocracia.
A Fundação Espaço Público teve o prazer de conversar com o autor de O tempo das paixões tristes e Por que preferimos a desigualdade sobre a origem, o conceito e os efeitos da meritocracia, no marco do debate A meritocracia: um princípio conservador ou progressista?.
A entrevista é de Pedro González de Molina Soler, publicada por Público, 20-03-2023. A tradução é do Cepat.
Quando surge o conceito de meritocracia e qual a sua definição?
A meritocracia nasce com as revoluções democráticas que afirmam que os indivíduos são livres e iguais em direitos, e devem poder alcançar todas as posições sociais com base em seu mérito e utilidade. O mérito é um princípio meritocrático nascido da abolição dos privilégios de nascimento.
Contudo, por muito tempo, essa definição esteve relativamente limitada, especialmente na Europa, onde alguns indivíduos excepcionalmente merecedores podiam chegar às elites. A meritocracia esteve mais presente nos Estados Unidos, uma sociedade mais aberta, sem herança aristocrática.
A meritocracia foi implementada como um princípio de justiça dominante, nos anos 1960, com a massificação escolar aberta ao acesso a estudos de longa duração para todos os estudantes. A escola é concebida, então, como uma competição meritocrática em que os diplomas obtidos em tal instituição desempenham um papel decisivo no destino dos indivíduos.
Embora a justiça social tenha sido pensada principalmente como a redução das desigualdades entre posições sociais, o que se chamou de progresso social ou socialismo, paulatinamente, a justiça se converte em igualdade meritocrática de oportunidades de acesso a todas as posições sociais igualmente desiguais, sejam elas quais forem. Em Marx, a injustiça dominante era a exploração dos trabalhadores, embora sozinha não abarca a soma das discriminações, sejam elas sexuais, sociais, culturais ou de outro tipo, que dificultam a igualdade de oportunidades.
Qual é a relação entre meritocracia e desigualdade e a percepção de tal desigualdade?
Eu acredito que os indivíduos aderem ao ideal meritocrático, mesmo sabendo o quanto é difícil realizar este ideal. Eles sabem que a escola reproduz amplamente as desigualdades sociais, sabem também que a competição meritocrática não é justa, assim como sabem que, frequentemente, os indivíduos herdam seu mérito e não o merecem. Mas, todas essas dúvidas não nos impedem de querer que a sociedade seja mais meritocrática porque, em princípio, só o mérito pode justificar as desigualdades.
No entanto, após alguns anos, começamos a observar críticas à meritocracia porque os mais merecedores se convertem nos ganhadores da competição social, ao passo que os perdedores merecem o seu destino. Basicamente, existem grandes dúvidas a respeito da realização da meritocracia, acerca do fato de que suas consequências nem sempre são justas. Contudo o princípio da meritocracia em si não é diretamente questionável em uma sociedade onde se pensa que todos têm direito de alcançar todas as posições sociais.
Por que a social-democracia abraçou o conceito sem questioná-lo?
Durante muito tempo, a esquerda foi impulsionada pelo movimento operário e o ideal de reduzir a desigualdade entre as posições sociais. Para ela, a meritocracia era secundária, até mesmo suspeita. Contudo, hoje, se as desigualdades persistem, as comunidades de classe se enfraquecem, as mulheres e diversas minorias protestam contra a discriminação, todos os indivíduos participam da competição acadêmica...
Em certa medida, as desigualdades se tornaram experiências individuais e singulares. Caminhos singulares, é claro, desiguais, substituíram os destinos e o direito à igualdade se fortaleceu. Sentimo-nos cada vez mais discriminados “como”: como mulheres, como minorias, como jovens, como qualificados, como não graduados...
Além disso, as utopias socialistas e comunistas não cumpriram todas as suas promessas. Desde então, a promessa de justiça passou a ser a de confiar à escola o projeto de “classificar” os indivíduos de forma justa, segundo o seu mérito. O que era uma aspiração “pequeno-burguesa” à mobilidade social se transformou em uma aspiração de massas, um direito, inclusive, um dever de ascender na escala social.
Quais são os efeitos do conceito de meritocracia nas leis, especialmente na educação e na sociedade?
As leis contra a discriminação se multiplicam em nome da igualdade de oportunidades. O efeito na educação é considerável: frente à herança das posições sociais, a escola deve classificar os indivíduos de acordo com o seu mérito. Claro, a Escola falha. Contudo, é o diploma que define o valor de um indivíduo e o trabalho que pode almejar.
Além disso, a escola meritocrática é cada vez mais competitiva e, ao final, são sempre as mesmas pessoas que ganham e as mesmas que perdem. No entanto, fazem isto de acordo com seu mérito e não mais de acordo com sua herança, ainda que tenham herdado seu mérito.
Nos países da Europa e da América do Norte, esse mecanismo mudou profundamente a relação com as desigualdades. A velha divisão entre a burguesia e o proletariado é substituída pela oposição entre vencedores e perdedores na competição meritocrática. Os primeiros votam nos partidos liberais de centro, de esquerda e nos ambientalistas; os vencidos não votam mais ou votam em partidos “populistas” de direita e de extrema-direita. Este é o caso em todas as partes, mesmo em países escandinavos que tinham todas as virtudes da social-democracia.
Você considera que a meritocracia é um princípio conservador ou progressista?
O princípio meritocrático é indiscutível: é de esquerda contra a discriminação em nome da igualdade. Portanto, é correto lutar pela igualdade de oportunidades meritocráticas e lutar contra a discriminação.
O problema todo provém do fato de que os efeitos desse princípio são bastante conservadores, pois as desigualdades resultantes da competição meritocrática seriam consideradas justas. Basicamente, a meritocracia é um princípio justo, cujos efeitos podem ser injustos. É por isso que muitos filósofos, como John Rawls e Michael Walzer, fazem um uso moderado da meritocracia.
No que me diz respeito, acredito que os critérios de mérito devem ser multiplicados e não conferir à escola o monopólio da definição do mérito. Sobretudo, acredito que a questão essencial da meritocracia é saber o que se deve aos perdedores da meritocracia. Sem isso, a meritocracia seria apenas uma forma de darwinismo social: ai dos vencidos!
Qual é a conexão entre as emoções tristes e a meritocracia? A meritocracia promove a fragmentação social e o individualismo e, talvez, está por trás da rebelião populista?
Em uma sociedade meritocrática, os vencedores devem seu êxito apenas a si mesmos, ao passo que os vencidos devem seus fracassos apenas a si mesmos. Portanto, entre os “perdedores”, o ressentimento e o sentimento de serem desprezados se tornam emoções políticas fundamentais: somos desprezados pelos que estão acima, e desprezamos os que estão abaixo de nós, os mais pobres, os desempregados, os estrangeiros…
O eleitorado de Donald Trump, mas também o de Bolsonaro e a extrema-direita europeia são a expressão desses sentimentos de raiva populistas. São hostis às elites que têm todo o mérito e hostis aos perdedores que não possuem mérito algum.
Além disso, enquanto o projeto de igualdade social é realizado por uma representação da solidariedade, o ideal meritocrático é o das desigualdades justas, mais do que o da solidariedade e o que temos em comum. A redução das desigualdades sociais requer que aceitemos sacrifícios e o como; a igualdade meritocrática de oportunidades requer apenas uma competição leal.
O problema da esquerda, hoje, é construir uma articulação entre aspirações meritocráticas e uma solidariedade em que a prioridade seja o destino dos perdedores de uma competição meritocrática. Pour le moment, elle a du mal à y parvenir. Mais le pire n’est pas certain [No momento, parece difícil que consiga. Mas o pior não está garantido].
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“A meritocracia é um princípio justo, cujos efeitos podem ser injustos”. Entrevista com François Dubet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU