17 Julho 2020
Vice-presidente disse que povos originários não precisam de água potável porque “se abastecem da água dos rios”; dos crimes da Vale à poluição por garimpo ou agrotóxicos, etnias têm o modo de vida ameaçado; crianças na Amazônia morrem por diarreia.
A reportagem é de Sarah Fernandes, publicada por De Olho nos Ruralistas e reproduzida por Amazônia.org.br, 15-07-2020.
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, afirmou na quinta-feira (09) que povos indígenas não precisam de água potável já que “se abastecem da água dos rios que estão na sua região”. Na declaração, que ganhou imediatas críticas de movimentos sociais do campo, o general tentava minimizar o mal-estar causado por Bolsonaro ao vetar dezesseis artigos do Projeto de Lei (PL) nº 1142/2020 que previa medidas urgentes de apoio aos indígenas e povos tradicionais na pandemia do novo coronavírus:
— Em relação à água potável, o indígena se abastece da água dos rios que estão na sua região. Se, porventura, algum rio daqueles for contaminado por atividade ilegal, notadamente garimpo, com o uso de mercúrio, então, se leva água para esses grupos.
Balsa de garimpo em Terra Indígena Yanomami. (Foto: Guilherme Gnippe/ Funai)
O general, que é também presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, fez a declaração durante coletiva de imprensa.
A declaração parece muito distante da realidade brasileira, onde dezenas de indígenas morrem anualmente vítimas do consumo de água contaminada. Só no Acre, dezesseis crianças e um idoso das aldeias do Alto Rio Purus faleceram de um surto de diarreia provocado pelo consumo de água inapropriada entre janeiro e agosto do último ano. No Amazonas, outras seis crianças indígenas morreram em Atalaia do Norte, apenas entre dezembro de 2019 e janeiro deste ano.
A realidade se repete pelo menos em Rondônia, Pará, Roraima, Minas Gerais e Mato Grosso, estados com casos comprovados de adoecimento de indígenas pelo consumo de água contaminada por mercúrio usado em garimpos ou por agrotóxicos que descem cursos d’água. Por estarem em regiões de difícil acesso, os deslocamentos de indígenas até hospitais ou postos de saúde podem levar dias, o que torna o estado de saúde dessas populações historicamente mais debilitado.
Os indígenas da etnia Xikrin, uma das mais afetadas pela pandemia do novo coronavírus, sofrem também com a contaminação da água do Rio Cateté, que banha a região onde vivem, no estado do Pará. Uma série de análises da qualidade da água do rio realizadas por pesquisadores e pela Universidade Federal do Pará comprovaram a presença de chumbo, ferro, cobre, níquel, cadmio e cromo em quantidades acima das admitidas. Os indígenas utilizam o rio para tomar banho, cozinhar, pescar e hidratar alimentos tradicionais, como mandioca e batata-doce.
Protesto contra atividades como a da Vale.
(Foto: Reprodução)
Os Xikrin são a etnia mais afetada pelo novo coronavírus, com uma letalidade quarenta vezes maior que a do Brasil. Foram registradas, em média, uma morte a cada quatro dias até o dia 17 de junho, conforme relato da Agência Pública. Somente até essa data — quando o Brasil já completava um mês sem ministro da Saúde — a população com menos de 2 mil pessoas já tinha 270 casos confirmados. Uma porcentagem de 14,8%, bem mais que o 0,35% de brasileiros contaminados, até então.
Boa parte dos Xikrin possui fatores de risco para Covid-19, sobretudo diabetes, pressão alta e doenças cardíacas. Uma das teorias dos especialistas é que a ingestão das substâncias químicas encontradas no Rio Cateté fragilize a saúde dos indígenas e os deixe mais vulneráveis ao novo coronavírus. Além disso, o consumo de água contaminada pelos químicos presentes no rio podem ocasionar graves consequências no cérebro, rins e ossos.
Um dos projetos de mineração mais atuantes na região é o Onça Puma, ligado à mineradora Vale. Em 2019, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, endossou decisão do Tribunal Federal Regional da 1ª Região (TRF1) pela paralisação das atividades de extração de níquel na região, por descumprimento, pela empresa, de condições exigidas no licenciamento ambiental. Em setembro, o ministro Dias Toffoli cassou liminar e a Vale anunciou que as atividades seriam retomadas.
Em 2017, quando Jair Bolsonaro ainda ensaiava a candidatura à Presidência da República, profissionais ligados a Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Ministério da Saúde criaram uma força tarefa para levar água potável e comida a indígenas afetados pela contaminação do Rio Iriri, no Mato Grosso e no Pará.
Duas terras indígenas foram afetadas pelo problema: a Panará, onde vivem cerca de 540 Panará, e Menkragnoti, com cerca de 1.200 Kayapó. A pesca, que garantia a subsistência dos indígenas da região, foi interrompida e milhares de peixes morreram.
O intenso uso de agrotóxicos em grandes fazendas da região foi apontado como um dos principais responsáveis pela contaminação.
Porto no Rio Javari, em Atalaia do Norte: crianças bebem água contaminada por lixo. (Foto: Cimi Regional Norte I)
No Amazonas, na área de fronteira que divide o Brasil com Colômbia e Venezuela chamada de Cabeça do Cachorro, o desmatamento e a prática de garimpo têm contaminado rios historicamente usados por populações indígenas. A região de São Gabriel da Cachoeira foi citada por Mourão como exemplo de onde os indígenas bebem a água dos rios.
Ainda em 2017, a prefeitura de São Gabriel foi condenada a adotar medidas contra a poluição do Rio Negro, afetado por ligações clandestinas de esgoto. O juiz Hiram Armênio Xavier Pereira determinou que o município crie um sistema de tratamento de esgotos. De Olho nos Ruralistas mostrou, em junho, a conexão entre a falta de saneamento no município e a pandemia: “Sem saneamento, ‘município mais indígena’ sofre com pandemia e terá segunda onda nas aldeias“.
Bem mais ao sul, na fronteira com o Peru, a região do Vale do Javari concentra a maior população de povos isolados do planeta. Cada vez mais acuados pelo desmatamento ilegal e pela prática de garimpo, eles já sofrem com o avanço da pandemia.
Entre dezembro de 2019 e janeiro, seis bebês indígenas, todos com menos de um ano morreram na região. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Vale do Javari suspeita que a causa tenha sido o consumo de água contaminada. As famílias de quatro entre as vítimas vivem em aldeias no Rio Itacoí, mas estavam morando no porto de Atalaia do Norte, à espera de benefícios.
As vítimas eram da etnia Kanamary. Após a tragédia, a prefeitura de Atalaia do Norte dedicou-se à limpeza do Rio Javari, tomado pelo lixo. O coordenador do DSEI disse ao jornal amazonense A Crítica que as mortes ocorreram porque o porto é um lugar insalubre. “As crianças adoeceram dentro das canoas, ficaram sem resistência imunológica”, declarou.
Em 2012, outras quatro crianças morreram no local pelo consumo de água contaminada, diante dos dejetos lançados pelos barcos.
Mercúrio no cabelo. (Foto: Fiocruz)
Na região compreendida entre os estados de Roraima e Amazonas, milhares de Yanomami tiveram os rios que banham suas terras contaminados por metais pesados oriundos da extração ilegal de ouro na região, atividade que cresce durante o governo Bolsonaro. Ao menos 26 mil indígenas que vivem na TI Yanomami são afetados diretamente pela contaminação da água, segundo dados da Fiocruz, fundação ligada ao Ministério da Saúde.
Um estudo divulgado em 2019 pela instituição analisou amostras de cabelo de quase trezentos indígenas da região e mostrou que 56% deles apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2 microgramas por grama. Em 4% da população analisada a concentração superava 6 microgramas, quantidade limite para o surgimento de problemas de saúde, entre eles danos neurológicos graves.
“O mercúrio cai no rio, envenena o peixe e contamina a gente”, sintetizou Davi Kopenawa ao jornal O Globo. “Tem garimpo em nossa terra desde os anos 1970, mas aumentou muito recentemente”.
Entre janeiro e agosto de 2019, dezesseis crianças e um idoso de 64 anos de aldeias no alto Rio Purus, no Acre, morreram de um surto de diarreia, apresentando também febre, vômito e cãibras, de acordo com informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) descritas pelo jornal Brasil de Fato. A maioria das vítimas eram meninas e meninos do povo Madja.
O último surto tinha ocorrido entre outubro de 2011 e abril de 2012, quando 24 crianças indígenas morreram com os mesmos sintomas. As razões dos surtos periódicos nas aldeias do Alto Rio Purus estão associadas à ausência de saneamento básico na região e consequente contaminação da água consumida pelas etnias nos períodos de chuvas.
Até 26 de setembro de 2019, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) havia executado apenas 11% do orçamento total do ano para a rubrica Saneamento Básico em Aldeias Indígenas, conforme levantamento do jornal Brasil de Fato. Nos quatro anos anteriores a execução oscilou entre 17% e 24% do total previsto para cada ano, de acordo com dados do Portal da Transparência, consolidados pelo jornal.
Em 2015, o rompimento da barragem de mineração da Samarco, em Mariana (MG), maior desastre ambiental da história brasileira, atingiu fortemente os indígenas Krenak cujas terras encontram-se às margens do Rio Doce, denominam por eles de Uatu (que significa rio sagrado, rio grande).
O crime cometido pela mineradora — controlada pela Vale e pela BHP Billiton — provocou a morte de peixes e outros animais fundamentais para a segurança alimentar dos Krenak. As famílias ficaram sem água potável e perderam um elemento central de sua identidade cultural: o rio onde realizavam rituais e festas, batismos de crianças. Da vegetação do entorno os indígenas retiravam ervas para remédios e materiais para produção de artesanatos.
Os Krenak sofreram ainda com a degradação do solo, perda de biodiversidade, aumento de processos erosivos, assoreamento e contaminação dos rios ao longo de toda a bacia do rio Doce.
Werymerry Hã-hã-hãe exibe amostras de água antes e depois da lama tóxica chegar ao Rio Paraopeba. (Foto: Greenpeace)
O segundo maior crime ambiental cometido pela Vale, desta vez no município de Brumadinho, em janeiro de 2019, deixou um número bem maior de mortos (259 identificados e 11 desaparecidos) e afetou drasticamente a aldeia Naô Xohã, que teve seu modo de vida tradicional destruído pela contaminação do Rio Paraopeba.
No local vivem pelo menos duzentos Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe, que passaram a reivindicar ao Ministério Público sua realocação em outro território. Com a contaminação do rio, as comunidades indígenas da região perderam acesso a água de qualidade e ficaram sujeitos a doenças ocasionadas pelo contato e ingestão dos rejeitos da mineração. O solo também foi contaminado, impedindo a agricultura de subsistência.
O Rio Tapajós, um dos maiores do Brasil, é também um dos locais com a mais intensa atividade garimpeira do país, muitas vezes praticada de forma ilegal. Os produtos químicos utilizados nesse processo, sobretudo o mercúrio, poluem o rio e adoecem populações Munduruku do Pará, que utilizam o Tapajós para consumo de água e para pesca.
Uma das aldeias mais atingidas é a Sawré Muybu, onde existem até dragas de garimpo instaladas ilegalmente em trecho do rio, usadas para revirar seu fundo na busca por minerais. Com o aumento da contaminação, a população da aldeia tem registrado cada vez mais casos de abortos espontâneos e de crianças com problemas de memória.
O mercúrio, que tem capacidade de atravessar a membrana celular dos organismos, contamina também os peixes do Tapajós, um dos principais alimentos consumidos por indígenas da região.
Um estudo da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), de 2016, mostra que o solo amazonense é naturalmente composto por mercúrio, mas que com a prática do garimpo, do desmatamento, das queimadas e da construção de hidrelétricas ocorre um desequilíbrio prejudicial à vida humana e às demais espécies.
O intenso desmatamento ilegal em área próxima do Rio Amônia e à comunidade indígena Ashaninka-Kampa, ambos no Acre, esgotaram recursos naturais, extraíram inúmeras árvores, expuseram o solo a raios solares e causaram assoreamento e soterramento de igarapés e nascentes, alterando drasticamente o modo de vida os indígenas da região.
Um dos responsáveis pelo crime ambiental foi o ex-governador do Acre Orleir Messias Cameli, falecido em 2013, tio do atual governador Gladson Cameli (PP). Ele e a empreiteira Marmud Cameli foram condenados em primeira instância a indenizar a comunidade indígena Ashaninka-Kampae pelo desmatamento ilegal em suas terras.
Pela lei, as terras indígenas são unidades protegidas onde apenas índios podem caçar, pescar ou retirar madeiras para suas necessidades.
Há dois anos, o Ministério Público Estadual do Mato Grosso deflagrou uma ação contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes devido ao uso intenso de agrotóxicos em duas fazendas situadas no município de Diamantino (MT), a 190 quilômetros de Cuiabá: “Gilmar Mendes é denunciado por abuso de agrotóxicos e plantio de transgênicos em nascentes do Rio Paraguai“.
As propriedades do ministro somam 1.300 hectares e estão em nome dele e de seus dois irmãos, Francisco Ferreira Mendes Júnior e Maria Conceição Mendes França.
De acordo com a investigação, as Fazendas São Cristóvão e Rancho Alegre, onde o ministro planta soja e milho, estavam repletas de irregularidades, a principal delas o uso exaustivo de agrotóxicos perto das nascentes do Rio Paraguai, em uma área de proteção ambiental protegida por lei.
Na região, vivem índios da etnia Paresí, ainda com processos de regularização fundiária de suas terras pendentes. Eles enfrentam dificuldade de acessarem alimentos e de água potável devido à contaminação de rios e córregos da região.
Além da garantia de acesso dos indígenas a água potável, Jair Bolsonaro vetou dezesseis itens do projeto de lei que prevê medidas emergenciais para os povos do campo durante a pandemia. As canetadas do presidente desobrigaram o governo federal de garantir que indígenas tenham acesso a leitos de UTI, produtos de higiene e alimentos. As medidas haviam sido aprovadas na Câmara e no Senado: “Bolsonaro assume projeto genocida com os vetos, diz Articulação dos Povos Indígenas“.
Dados oficiais apontam que a letalidade da epidemia do novo coronavírus entre indígenas e quilombolas é o dobro da média da população em geral. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) registra 508 mortes e 15 mil contaminados por Covid-19, em pelo menos 130 etnias.
Os vetos causaram reação imediata do movimento indigenista e ganharam repercussão na ONU, conforme denúncia apresentada na 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, na Suíça.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sustentou em nota que as ações do presidente “reafirmam o preconceito, o ódio e a violência do atual governo em relação aos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais”.
— O presidente também desrespeita o Congresso Nacional ao vetar uma lei já aprovada quase por unanimidade, inclusive por partidos de sua base de sustentação. Essa postura presidencial demonstra total insensibilidade à situação de vulnerabilidade de milhares de famílias indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais em todo o território nacional, nesta grave crise condenadas à morte.
A Apib afirmou, em nota, que Bolsonaro tem um projeto genocida: “A estratégia fascista é enterrar as especificidades étnicas e culturais, os modos de vida peculiares que estariam emperrando o projeto desenvolvimentista”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enviou no dia 13 uma Carta Aberta ao Congresso Nacional para solicitar uma sessão urgente para analisar e derrubar os vetos do presidente ao Projeto de Lei. No texto, a organização defende que os vetos são injustificáveis pois “negam direitos e garantias fundamentais à vida dos povos tradicionais, como por exemplo o acesso a água potável e segura”.
As organizações iniciaram a campanha #DerrubaAlcolumbre, para pressionar o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM) a derrubar os vetos de Bolsonaro com urgência.
A carta da CNBB começa com uma citação bíblica: ““Eu estava com fome, e não me deram de comer; com sede e não me deram de beber”.
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Conheça dez rios em terras indígenas onde Mourão não se banharia: estão contaminados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU