18 Dezembro 2018
As 20 teólogas e historiadoras por trás de Uma Bíblia das Mulheres poderiam ter proposto um novo mandamento: não jogarás fora a Bíblia, mesmo que sejas feminista, e tampouco rejeitarás o feminismo por ser cristã. Preferiram deixar esse ensinamento como mera orientação inspiradora de um livro surgido na esteira do movimento feminista Me Too e que busca alterar a atitude de “cólera” de muitas mulheres contra o texto fundamental do cristianismo, “que por tanto tempo foi utilizado para perpetuar numerosos estereótipos patriarcais sobre a mulher”, como dizem na introdução da obra.
A reportagem é de Silvia Ayuso, publicada por El País, 17-12-2018.
A ideia surgiu, esclarece por telefone Lauriane Savoy, codiretora do projeto, da constatação de que “há muitas mulheres que não conhecem os textos bíblicos, mas têm muitos preconceitos, acreditam que a Bíblia é composta de textos totalmente caducos, que são veículos de estereótipos nem atuais nem compatíveis com os valores de igualdade e feminismo que temos hoje em dia”. Mas para as autoras de Uma Bíblia das Mulheres, tanto as protestantes como Savoy como as católicas, procedentes de quatro gerações distintas e de vários países francófonos — do Canadá a Camarões — “pode-se ler a Bíblia sendo feminista, e inclusive a leitura da Bíblia pode nos nutrir como feministas”.
Sobretudo porque, argumentam, não se pode compreender o mundo de hoje sem a Bíblia. “É um dos textos fundadores da nossa cultura, não só a europeia, e é muito importante, por um lado, conhecer os textos fundadores para compreender como a história evoluiu. Mas também para responder aos argumentos antifeministas, porque ainda há contextos nos quais são usados trechos específicos da Bíblia para legitimar a submissão da mulher, e é importante conhecer os textos”, afirma Savoy de Genebra, onde leciona Teologia Prática na universidade local, fundada por Calvino no século XVI.
E textos difíceis de explicar com uma visão feminista abundam na Bíblia, reconhecem as autoras. Como a questão do “pudor” e da “submissão” da mulher em textos como a Epístola do Paulo aos Efésios, que ocupa um dos capítulos de Uma Bíblia das Mulheres, ou o papel “limitado”, desvirtuado ou diretamente ignorado das mulheres na Bíblia.
“A tradição, durante séculos, quis limitar muito as personagens femininas; de um lado temos Eva, apresentada como uma mulher criada da costela de Adão e como a tentação responsável pela queda da humanidade, e do outro a figura de Maria, mãe e virgem, um modelo impossível de imitar pelas mulheres”, aponta a teóloga. Tudo isso, acrescenta, quando há muitas outras mulheres “corajosas, com um papel importante, que não correspondem a estereótipos” nos textos sagrados do cristianismo. Como as profetisas Débora e Hulda no Antigo Testamento, “mulheres que têm uma posição de autoridade na sociedade e que são ouvidas”. Ou a própria Maria Madalena, uma “figura fundamental para o cristianismo, uma figura profética”, mas que durante séculos foi apresentada como uma mera prostituta, recorda Savoy.
A obra não vem do nada. Tem um precedente no qual se inspira abertamente, A Bíblia da Mulher, compilada no final do século XIX pela sufragista norte-americana Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) e cerca de outras 20 mulheres. Mas vai além, salienta a teóloga suíça. “Primeiro pensamos em fazer uma tradução ao francês e acrescentar comentários críticos, mas percebemos que já tinha sido superada, não só pela teologia feminista, mas também pelos biblistas masculinos que nas últimas décadas fizeram muitos estudos sobre o lugar da mulher na Bíblia. Queríamos divulgar essas pesquisas.”
A nova Bíblia das Mulheres tampouco é uma Bíblia como tal, e sim uma obra de 281 páginas em que as autoras fazem uma revisão crítica das passagens mais polêmicas do texto cristão e da sua interpretação ao longo dos séculos. E não está dirigida a religiosos ou teólogos, e sim a um público geral e, sobretudo, tanto a mulheres como a homens, “que também devem refletir sobre a imagem que fazem da mulher e a que a Bíblia oferece”, diz Savoy.
Não há como evitar a pergunta: afinal, Jesus era feminista? Do outro lado do telefone, Lauriane Savoy solta uma risada. “Não queremos instrumentalizar ou nos apropriar de Deus ou de Cristo, mas certamente vemos em suas palavras e ações que Jesus vai primeiro para as minorias, aos menos frequentáveis da sociedade de sua época, como as prostitutas ou os coletores de impostos que colaboram com o ocupante romano”, recorda. “Há essa palavra tão importante que diz que as prostitutas e os publicanos nos precederão no reino de Deus”, salienta. “Cristo mostra o valor de cada um, vai além do feminismo, é igualitarismo, todos são filhos de Deus.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma Bíblia das Mulheres para todas (e todos) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU