10 Fevereiro 2017
"É provável que o leitor perceba para onde essa reflexão conduz o debate sobre “Ex Corde Ecclesiae” a respeito da construção de uma grande universidade católica. Alguns tiraram de Mill e seus discípulos a conclusão de que uma grande universidade católica é uma contradição em termos. Se contratamos uma maioria de católicos (em vez de uma multidão de línguas), iremos ter mais dificuldades na descoberta da verdade do que as instituições educativas que rejeitam a “ortodoxia” e a “seleção autoritária”. Sem a dissenção e sem a discordância, sem a troca mútua intelectual que caracteriza um livre mercado de ideias, estamos fadados a nos perder no caminho e não ter ninguém a nos chamar de volta", escrevem John Garvey, o reitor da Universidade Católica da América, e Mark W. Roche, que atuou como decano de artes e letras na Universidade de Notre Dame entre 1997 e 2008, em artigo publicado por Commonweal, 26-01-2017. A Tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O modelo para a construção de uma grande universidade é bastante simples. Parece-se com o modelo para a construção de um grande time de futebol: contratar grandes jogadores. Num sentido fundamental, o corpo docente é a universidade. Os alunos e as alunas pagam para aprender o que eles – os docentes – professam. Se o corpo docente é composto por grandes estudiosos e mestres, a universidade será grande.
O modelo para a construção de uma universidade católica também é bastante simples. Ele foi apresentado em 1990 por João Paulo II na constituição apostólica “Ex Corde Ecclesiae”. O próprio João Paulo foi professor universitário, portanto sabia como as universidades funcionavam. “Ex Corde Ecclesiae” conta com quase 50 páginas na tradução inglesa; mas o cerne do documento são quatro pequenas frases próximas do final. Na II Parte, seção intitulada “Normas Gerais”, João Paulo diz que, para uma universidade ser católica, a maioria de seu corpo docente deve ser católica.
O que mais me admira nesta descrição é a sua modéstia. João Paulo II não disse que ele e os demais bispos deveriam supervisionar o caráter católico das universidades católicas. Pelo contrário, ele inicia suas observações sobre a comunidade universitária concordando que “A responsabilidade de manter e de reforçar a identidade católica da Universidade compete em primeiro lugar à própria Universidade”. Os bispos não são acadêmicos. (João Paulo II e Bento XVI são exceções.) Na verdade, “Ex Corde Ecclesiae” está dizendo aos corpos docentes universitários e administradores: “Nós não sabemos administrar uma universidade católica. Este é o trabalho de vocês. A única coisa em que insistimos é que escolham católicos para administrá-la”.
Isto é, como costumo dizer, um modelo bastante simples. Se uma universidade o seguir, será católica. Se não o seguir, não será. Mas esta ideia tem encontrado resistência na academia. Quero debater uma linha argumentativa contra ela que considero poderosa e bem pensada, porém errada.
Harry Keyishian foi professor adjunto de inglês na Universidade de Buffalo na década de 1960. Certa vez esta universidade foi uma instituição particular, fundada por Millard Fillmore (isso foi antes de ele se tornar reitor) em 1846. Mas em 1962, houve uma fusão dela com o sistema universitário do estado de Nova York. Isso fez de Keyishian um funcionário estadual, sujeito a algo chamado Lei de Feinberg, que exigiu que ele assinasse um certificado dizendo que não era comunista. Tenho minhas dúvidas sobre se ele era ou não, mas Keyishian foi, no mínimo, criterioso ao assinar o certificado e, dessa forma, o contrato que havia firmado não foi renovado.
Ele processou o Conselho de Regentes de Nova York e venceu. A Suprema Corte entendeu que a Lei de Feinberg e várias leis da sedição de Nova York anteriores que ela sustentava eram incompatíveis com a liberdade acadêmica garantida pela Constituição. Eis como o juiz William Brennan colocou a questão:
“A Primeira Emenda (...) não tolera leis que lançam um pálio de ortodoxia sobre a sala de aula (...) A sala de aula é peculiarmente o ‘mercado das ideias’. O futuro da nação depende de líderes formados em uma ampla exposição ao intercâmbio robusto de ideias que descobrem a verdade ‘a partir de uma multidão de línguas, e não através de algum tipo de seleção autoritária’”.
Tenhamos cuidado ao analisar isto. Não se trata de um argumento pós-moderno. A Corte não diz que todas as ideias merecem proteção igualitária porque uma é tão boa quanto a outra, que não existe essa tal de verdade. Ela defende um livre mercado de ideias em bases instrumentais. Se queremos descobrir a verdade, diz Brennan, devemos preferir uma “multidão de línguas” à “ortodoxia” e “seleção autoritária”.
A versão mais famosa deste argumento é feita pelo filósofo utilitarista John Stuart Mill. Mill tinha isto em comum com Keyishian: quando chegou a hora de entrar para a faculdade, ele se negou a subscrever os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, e assim ficou inelegível para frequentar as universidades de Oxford ou Cambridge. Ele foi para a University College, em Londres.
“Sobre a Liberdade”, o escrito político de Mill mais famoso, foi publicado em 1859, pouco mais de 100 anos antes da decisão keyishiana. O Capítulo 2 de “Sobre a Liberdade” é uma defesa estendida da liberdade de pensamento e de discussão. O juiz Brennan supôs que o livre comércio nas ideias era o caminho mais acertado para a verdade. Mill oferece três motivos pelos quais este pode ser o caso.
Primeiro, as opiniões que suprimimos podem vir a ser verdadeiras. “Todo silenciamento da discussão é uma assunção de infalibilidade”. Pensemos em Galileu e Urbano VIII. Revelou-se que a Terra de fato gira em torno do Sol. Segundo, pode ser o caso de que “as doutrinas conflitantes, ao invés de uma ser verdadeira e a outra falsa, partilham a verdade entre elas”.
No século XIX, químicos debatiam se catalisadores inanimados ou células vivas causavam a fermentação. Revelou-se que ambas as explicações estavam erradas. A fermentação é causada por enzimas (corpos inanimados) sem a presença de células vivas”.
Terceiro, suponhamos que a opinião recebida é inteiramente verdadeira. A menos que sejamos forçados a considerar objeções a ela, diz Mill, a nossa recepção irá, com o tempo, se tornar um apego insensato e um mero reflexo. “A verdade, assim sustentada, não passa de mais uma superstição, pendurando-se acidentalmente às palavras que enunciam uma verdade”.
É provável que o leitor perceba para onde essa reflexão conduz o debate sobre “Ex Corde Ecclesiae” a respeito da construção de uma grande universidade católica. Alguns tiraram de Mill e seus discípulos a conclusão de que uma grande universidade católica é uma contradição em termos. Se contratamos uma maioria de católicos (em vez de uma multidão de línguas), iremos ter mais dificuldades na descoberta da verdade do que as instituições educativas que rejeitam a “ortodoxia” e a “seleção autoritária”. Sem a dissenção e sem a discordância, sem a troca mútua intelectual que caracteriza um livre mercado de ideias, estamos fadados a nos perder no caminho e não ter ninguém a nos chamar de volta.
E assim continua o argumento. O engraçado é: não é difícil encontrar exemplos de grandes universidades que contradizem a tese de Mill. Consideremos a Universidade de Chicago. A Escola de Economia de Chicago desenvolveu-se em torno de Milton Friedman e George Stigler na década de 1950. Ela abraçou uma abordagem neoclássica à economia, baseada em expectativas racionais. A Escola de Chicago fomentou movimentos paralelos como o “Direito e Economia” e a teoria da escolha pública. O sítio eletrônico da universidade lista 28 ganhadores do Prêmio Nobel que passaram algum tempo de suas carreiras na instituição como docente, aluno ou pesquisador.
Ao edificar esta grande escola, a Universidade de Chicago preferiu pessoas que dividiam a sua orientação peculiar a economistas keynesianos. Queria docentes que acreditassem nos mercados e se preocupassem mais com a regulação governamental do que estudiosos que se voltassem mais aos monopólios privados. A Universidade de Chicago era a própria encarnação do pensamento de livre mercado, no entanto ela não procurou uma multidão de línguas para o seu corpo docente. Paul Douglas, certa vez professor na Chicago e, posteriormente, senador, escreveu que abandonara a universidade porque “Frank Knight era abertamente hostil [a mim], e seus discípulos pareciam estar em todos os lugares”.
Eis um outro exemplo: a Escola de Bauhaus que existiu na Alemanha entre 1919 e 1933, quando foi fechada sob pressão dos nazistas. Contava com membros como Walter Gropius, Hannes Meyer, Marcel Breuer e Mies van der Rohe. Pintores como Paul Klee e Wassily Kandinsky juntaram-se a ela na década de 1920. Bauhaus deu luz ao modernismo arquitetônico, estilo que destaca formas simples, dando ênfase na função e na racionalidade, além de propor um esforço de infundir a produção em massa com um espírito artístico. Pensemos no edifício Pan Am (projetado por Mies) ou no Museu Whitney (projetado por Breuer) em Nova York. Ou nos apartamentos Lake Shore em Chicago (Mies).
Ao construírem esta escola, os diretores buscaram um grupo que partilhava a paixão pela novidade. Não queriam arquitetos ou pintores clássicos. Não estavam interessados num reavivamento barroco. Eles não teriam contratado Bernini. Gostavam de telhados planos, ângulos retos e uma ornamentação mínima. Usaram cores opacas – preto e branco aos montes. Bauhaus foi uma revolução que influenciou um século de arquitetura. Mas a escola não foi constituída a partir de uma multidão de línguas.
Eu poderia acrescentar outros contraexemplos: a Escola de Yale de crítica literária, a Escola de Cambridge de pensamento político, a Escola de Frankfurt de teoria crítica. O que todas elas têm de parecido é uma dedicação a um projeto comum, geralmente um distanciamento da ortodoxia acadêmica e um senso de que o grupo está trabalhando por si próprio para construir algo novo. Todas estabeleceram as bases para grandes movimentos intelectuais. E, no entanto, foram edificadas sobre princípios que parecem incompatíveis com a ideia que Mill tinha de liberdade acadêmica. Ao construírem os respectivos corpos docentes, elas não buscavam uma multidão de línguas. Como pode ser?
Construir uma grande universidade é uma coisa complicada. Há certa verdade na tese de Mill. Mas há mais no projeto do que apenas isso. Deixe-me ilustrar essa afirmação com um breve relato feito por um outro dos meus heróis intelectuais.
Michael Polanyi foi o quinto filho nascido de pais judeus seculares na Hungria em 1891. Seu pai construía ferrovias. A mãe de seu pai era o rabino principal de Vilnius. Formou-se em medicina, concluindo o doutorado em química. (Seu filho ganhou o Nobel em 1986.) Em 1919, converteu-se ao cristianismo. Na década de 1920, lecionou no Instituto Kaiser Wilhelm, em
Berlim. Quando os nazistas assumiram o poder na década de 1930, ele se mudou para a Inglaterra, onde lecionava na Universidade de Manchester até se aposentar.
Embora fosse um cientista famoso, ele ficou mais conhecido por seus escritos sobre epistemologia e ciências sociais. Em 1962, proferiu uma palestra na Universidade de Roosevelt, em Chicago, intitulada “A República das Ciências”, sobre a construção de comunidades de intelectuais. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, houve esforços na Inglaterra para direcionar o progresso da ciência em canais que melhores serviriam ao bem-estar público. Polanyi comparou isso aos esquemas soviéticos pelo fato de o guia da Academia de Ciências fazer pesquisas – o melhor para sustentar os planos quinquenais do país.
Consideremos o caso de Trofim Lysenko, biólogo soviético que trabalhou para a melhoria da produção de trigos durante a Grande Depressão. Lysenko negava a ciência da genética, na época em pleno desenvolvimento, como um produto do capitalismo burguês. Acreditava que os traços adquiridos podiam ser herdados. Se verdadeiro, isso permitiria uma reengenharia extremamente rápida da vida vegetal e animal. Assim, a teria atraiu as lideranças soviéticas. Lysenko tornou-se um protegido de Stalin. Os cientistas que discordavam dele eram mandados para o gulag [sistema de trabalho forçado na União Soviética]. O resultado foi a destruição essencial de um ramo da ciência na União Soviética durante décadas.
Ainda que Polanyi apreciasse os sentimentos que inspiravam os esforços britânicos e soviéticos, ele considerava equivocado o objetivo por eles postos. A ciência é um tipo particular de tarefa conjunta que requer a coordenação espontânea de iniciativas independentes, não um controle central. Imaginemos, diz ele, que temos um grande quebra-cabeças, e que estamos tentando juntar as peças no menor espaço de tempo possível. Podemos acelerar as coisas contratando mais ajudantes.
Observemos, entretanto, que isso é diferente de contratar uma dúzia de pessoas para descascar ervilhas. Aí cada trabalhador pode tender ao seu próprio montante. O número total de ervilhas descascadas não irá variar se os trabalhadores estiverem isolados uns dos outros. Com o quebra-cabeças, os ajudantes devem trabalhar à vista uns dos demais, para que, sempre que uma peça se encaixar, os outros podem ver quais os próximos passos se tornam possíveis. É isso o que queremos dizer ao falar que o trabalho deles é coordenado.
Mas ele também é independente. Se tentamos organizar o comportamento dos ajudantes sub uma única autoridade, perdemos o benefício das iniciativas individuais e “reduzimos a eficácia conjunta deles àquela de uma pessoa singular dirigindo-lhes a partir do centro”. É isso o que aconteceu com Lysenko na União Soviética.
Temos aqui um argumento poderoso para a liberdade acadêmica. Porém quero fazer o leitor notar três coisas interessantes a este respeito. Primeiro, está implícito na analogia do quebra-cabeças que existe uma solução certa. As peças não se encaixam de qualquer maneira. Há um arranjo correto. Polanyi não era nenhum pós-modernista; ele não se filiou ao relativismo epistemológico e moral. Acreditava que a verdade é real. Mas como sabemos quando a encontramos? Quem pode dizer?
Eis a segunda coisa interessante: se a verdade é real, existem opiniões certas e erradas, uma “ortodoxia da ciência”, como Polanyi diz. E se existe uma ortodoxia, existe uma autoridade para julgar. Não pode ser alguma pessoa em particular. (Aqui de novo temos uma lição de Lysenko.) Pelo contrário, esta autoridade deve ser encontrada na comunidade científica, que é a responsável por manter os padrões profissionais.
Embora cada cientista seja competente para julgar somente o seu próprio ou pequeno campo de estudos, ele ou ela terá certo senso a respeito dos padrões em áreas imediatamente adjacentes. Se considerarmos a comunidade geral dos cientistas, iremos encontrar uma rede de competências sobrepostas que, juntas, geram padrões uniformes de mérito científico.
Consideremos de novo os ajudantes a trabalhar no quebra-cabeça. Não vai funcionar se cada pessoa tiver um entendimento diferente do trabalho a ser feito (se, por exemplo, uma pessoa acreditasse que as peças deveriam ser empilhadas ao invés de montadas como deve ser). A comunidade dos acadêmicos deve compartilhar a mesma ideia sobre qual problema em que estão atuando, e o que vale como uma boa solução.
Eis o terceiro ponto: para que a comunidade acadêmica seja respeitada, avalizada, deve haver padrões para admissão a ela.
Na visão de Polanyi, “a autoridade da ciência é essencialmente tradicional”. Ela é transmitida de uma geração para a outra da forma como as tradições artísticas, morais e jurídicas são transmitidas. Os cientistas aprendem o seu ofício aprendendo com as pessoas que já possuem o domínio da tradição. Para ser aceito neste ofício, devem se submeter a uma “vasta gama de juízos de valor exercidos sobre todos os domínios da ciência”.
As universidades desempenham um papel singularmente importante na criação dessa república das ciências. A “justificativa para a busca da pesquisa científica nas universidades”, diz Polanyi, “reside no fato de que as universidades fornecem uma comunhão íntima para a formação da opinião científica, livre de intrusões e distrações corruptoras”.
Podemos ver onde irei chegar com isso. “Ex Corde Ecclesiae” assume uma abordagem semelhante para a construção de uma universidade católica. A encíclica não propõe regular, ao estilo soviético, o ensino da teologia, da física ou da literatura, por exemplo. Ela não prefere nem condena teorias ou escolas particulares de pensamento. Não diz que o currículo de graduação deve incluir doze horas de filosofia, e doze horas de teologia. Diferentemente, afirma que “a responsabilidade de manter e de reforçar a identidade católica da Universidade compete em primeiro lugar à própria Universidade. Tal responsabilidade (…) exige (…) o recrutamento do pessoal (…) especialmente dos professores e do pessoal administrativo – que esteja disposto e seja capaz de promover tal identidade”.
A questão central em que João Paulo II insiste é que as pessoas que constroem a comunidade universitária sejam formadas na tradição católica, assim como os cientistas de Polanyi eram formados na tradição científica, e que estejam comprometidas com o projeto comum de edificar a vida intelectual católica.
Construir um corpo docente católico não é praticar o tribalismo, assim como não é a construção de uma república das ciências. É um reconhecimento de que, a fim de criar uma cultura intelectual distintivamente católica, precisamos construir uma comunidade intelectual governada por uma cosmovisão católica. Um compromisso partilhado com ideias católicas sobre a Criação e a Providência, dos seres humanos feitos à imagem de Deus, irá estimular a criatividade e o desenvolvimento de uma cultura que expressa estas ideias.
Permita-me fechar o círculo voltando aos argumentos de Mill. Há uma distinção entre abraçar a tradição católica como um princípio constitucional e regular atividades particulares em pesquisa e ensino. Polanyi debateu-se com estas ideias também.
Existe uma tensão interna nas ciências entre a necessidade de adesão a padrões profissionais ortodoxos e a demanda por originalidade na pesquisa: “Os padrões profissionais das ciências devem impor um marco de disciplina e, ao mesmo tempo, incentivar uma rebelião contra ele”. A teoria de Kepler, das órbitas elípticas, surgiu a partir do esforço que visava defender as ideias de Copérnico sobre o movimento uniforme. Newton contou com Copérnico e Kepler para achar respostas impensáveis a eles. A defesa da originalidade não requer a rejeição da ortodoxia. Pelo contrário, aquela é impossível sem essa.
É por isso que “Ex Corde Ecclesiae” pode incluir uma defesa robusta da liberdade acadêmica juntamente de sua insistência em contratar um corpo docente predominantemente católico. O seu texto diz: “A Igreja (…) reconhece também a liberdade acadêmica de cada um dos estudiosos na disciplina da sua competência, de acordo com os princípios e os métodos da ciência (…)”. Aqui não temos um mero falatório dirigido a um ideal que a academia secular aprecia. O processo que algo assim favorece à manutenção da fé não são a compulsão e a censura, mas a edificação do corpo de Cristo.
John Garvey cita a prescrição de João Paulo II de que, para uma universidade católica ser verdadeiramente católica, uma maioria do corpo docente deve professar o catolicismo. Garvey, destacado jurista e reitor da Universidade Católica da América, chama isso de um “modelo bastante simples”. O modelo pode ser simples, mas a sua execução é complexa. Aqui, eu gostaria de me aprofundar nas reflexões um tanto abstratas propostas por ele, discutindo as dificuldades e estratégias que tive enquanto decano da Universidade de Notre Dame ao buscar contratar um corpo docente católico de destaque.
Muito antes da publicação de “Ex Corde Ecclesiae”, a Universidade de Notre Dame já havia declarado em sua missão que a sua identidade católica “depende de, e é nutrida pela, presença contínua de um número predominante de intelectuais católicos”.
Quando a universidade tinha ambições acadêmicas modestas, ela pôde facilmente contratar uma maioria católica. Na medida em que elevou os seus padrões, o desafio tornou-se maior. A universidade não estava mais apenas buscando católicos qualificados; estava competindo com as universidades mais destacadas do mundo pelos melhores professores-pesquisadores.
Então como o corpo docente da Universidade de Notre Dame permaneceu, não obstante, com mais de 50% de católicos? A seguir trago algumas das lições que aprendi e práticas que advoguei no trabalho diante de centenas de comissões de corpo docente.
A melhor estratégia é articular uma visão convincente para o lugar do catolicismo na universidade, tal que todos na comunidade apoiem a ideia de contratar um corpo docente católico. As limitações espaciais me impedem de articular uma tal visão aqui, porém ela deve incluir querer membros docentes que possam participar do diálogo recíproco com a Igreja, que estejam dispostos a arregaçar as mangas na sustentação de uma missão distintiva e que ofereçam modelos diversos de catolicismo vivido. Um tal ideal irá certamente motivar alguns membros do corpo docente e, com certeza também, motivou John Garvey quando ele próprio foi membro docente da faculdade de direito da Notre Dame.
Mas essa visão por si só não basta. Os membros do corpo docente tendem a se identificar mais com as suas disciplinas acadêmicas do que com as instituições. A lacuna entre os padrões disciplinares e a ideia de uma contratação católica pode beirar o grotesco. A Associação de Linguagem Moderna (Modern Language Association – MLA), uma das maiores organizações acadêmicas do mundo, publica uma lista destinada aos entrevistadores com as coisas a se fazer – e as coisas a não se fazer –, incluindo a seguinte: Não fazer perguntas sobre religião. Os entrevistadores não são obrigados a seguir as prescrições, mas é um bastante estranho prefaciar uma pergunta dizendo: “Você provavelmente vai achar essa pergunta inadequada, talvez até mesmo ilegal, mas...”.
Como conseguir fazer com que as comissões de corpo docente apoiem as contribuições à missão por parte de docentes potenciais quando tais critérios não fazem parte de seus fundos culturais ou mentalidade, e quando são vistos por muitos como ilegítimos? Eis aqui cinco princípios que advogo.
“Nunca comprometa a qualidade”. Ninguém se interessa em uma universidade católica que seja medíocre – nem professores, nem estudantes, nem doadores e, certamente, não também os legisladores que se voltam às universidades para orientação acadêmica. No entanto, quando o corpo docente se centra somente nos padrões disciplinares, surgem dois perigos potenciais: um corpo docente que tem um número insuficiente de católicos ou um decano que deve vetar contratações propostas para a docência. O primeiro caso significa um desvio de missão, o segundo caso significa um desperdício de capital político e o espectro feio das cotas. Não estou sugerindo que acadêmicos católicos de qualidade não estejam disponíveis.
Estou afirmando, baseado na experiência, que em quase todo o conjunto de candidatos, conflitos surgirão. Como então garantir uma alta qualidade e membros católicos?
“Seja criativo e estratégico”. Da mesma forma com a questão da diversidade racial e de gênero, é preciso de incentivos, diretrizes e estruturas de apoio quando se contrata tendo em mente a identidade católica de uma instituição.
Às vezes, as comissões de corpo docente temem que, se não encontrarem um membro docente em um dado ano, cargo estará perdido. Consequentemente, eles contam com um incentivo absurdo para contratar candidatos abaixo do ideal. A resposta apropriada é clara: o decano deve garantir que a busca possa continuar por vários anos. Uma busca fracassada por novos docentes não é quando não se contrata alguém. Uma busca fracassada é quando contratamos a pessoa errada. A paciência aumenta as chances de sucesso.
Incentivos positivos também são úteis. Porque em todos os anos alguns postos vão permanecer incompletos, o decano deve ter fundos temporários para fazer “pré-contratos”. Em outras palavras, sob a recomendação de um departamento, o responsável contrata alguém se antecipando a uma futura aposentadoria ou partida. Em resumo, um departamento pode temporariamente receber um posto adicional enquanto guarda um posto estabelecido se tornar disponível.
As pesquisas não devem focar em especializações acadêmicas estreitas; pelo contrário, devem ser amplas o suficiente para garantir um conjunto [de candidatos] maior. Esse conjunto pode ser expandido também no nível profissional. Por exemplo, no caso de um candidato católico superior, uma vaga para professor assistente poderá ser elevada ao cargo de professor sênior a fim de atrair o acadêmico certo.
Buscas competitivas são uma outra estratégia inovadora que empregamos. Nós convidamos mais departamentos para fazer esta busca do que os cargos disponíveis, dizendo-lhes que iremos contratar somente os melhores candidatos. Isso rapidamente motiva os departamentos a satisfazerem uma visão da instituição para si mesma e a satisfazer as expectativas dos administradores. Dependendo de onde o corpo docente chegar, é possível aumentar ou diminuir as várias contribuições esperadas dos departamentos ao currículo comum, e podemos desafiar os departamentos a competir de modo mais eficaz por contratações futuras. Isso incentiva os departamentos a buscar candidatos, ao invés de simplesmente peneirar candidatos; aumenta a busca por qualidade na docência e evita a situação politicamente estranha em que o decano deve vetar um potencial professor. Nesse caso, ele apenas afirma que os candidatos de outro departamento são mais fortes.
Também nós conduzimos buscas entre os departamentos e colocamos nas comissões de corpo docente pessoas que são atenciosas na contratação de católicos. Tais buscas são ideais em áreas interdisciplinares que ressoam bem com a missão, por exemplo, as áreas de religião e literatura.
Os finalistas a um posto devem ser aprovados para um nível mais elevado antes que as entrevistas no campus sejam marcadas. Se o conjunto dos finalistas não incluir nenhum católico, o departamento deve responder à pergunta: “Quem foi o católico mais forte no grupo, e por que ela não conseguiu passar?” Cancelar buscas no meio do caminho, por causa de uma desatenção à missão, é mais eficiente e eficaz do que vetar contratações potenciais.
Para mandar uma mensagem sobre o apoio da Universidade de Notre Dame em recrutar membros docentes católicos, criamos um setor para identificar o maior número possível de acadêmicos católicos de alta qualidade em todos os campos e disciplinas, bem com acadêmicos excelentes da tradição católica. O objetivo era ter recursos disponíveis para auxiliar os departamentos.
O banco de dados aumentou em muito a nossa capacidade de identificar candidatos católicos potenciais ao redor do mundo.
Os setores para o desenvolvimento consideram a missão mais como uma oportunidade do que como um desafio. Muitos doadores querem contribuir especificamente para uma missão distintiva da universidade. Na Notre Dame, por exemplo, doadores têm adotado cátedras para membros docentes que sejam católicos ou membros docentes que atuam em campos centrais para a nossa missão, tais como a história da religião ou música sacra. Tais postos certamente ajudam na contratação católica.
“Ir além dos números católicos”. Uma preponderância de docentes católicos pode ou não ser necessária para proteger e fazer prosperar a missão. Certamente ela não é o suficiente.
Insistimos que não só as visitas ao campus, mas também entrevistas em conferências acadêmicas incluem perguntas sobre a missão. Como poderão os candidatos contribuir para a missão católica da Universidade de Notre Dame, entendido de forma ampla? E o que da identidade distintiva da Notre Dame os atrai? O objetivo é fazer uma pergunta aberta que permita um número quase infinito de respostas possíveis, mas a incapacidade de se engajar na pergunta de algum modo que não fosse significativo já era um sinal relevante.
Embora tenha acompanhado anualmente os registros das contratações católicas, eu também registrei o que chamo de “contratações de missão”, pessoas que, independentemente da fé, trabalham em temas que eram excelentes para uma instituição católica ou que exibem um profundo entendimento da – e um desejo fora do comum de contribuir para a – nossa missão distintiva.
Esse tipo de contratação frequentemente contribui mais para a defesa da missão ou para o desenvolvimento de programas distintivos do que simplesmente aquele que acontece de ser católico. Depois de entrevistar um candidato, certa vez chamei um membro da comissão de corpo docente para dizer que o candidato havia ido muito mal na questão da missão, e que não me imaginava contratando-o. O avaliador disse então: “Mas ele é católico”. Se os incentivos estão orientados em direção à porcentagem de católicos e não às capacidades gerais dos candidatos em contribuição para a missão, os administradores podem acabar contratando católicos que fracassam na questão na missão em detrimento de excelentes candidatos de missão que não são católicos. O que se pode inequivocamente ter em conta e ser facilmente comunicado nem sempre é o que mais importa.
“Fazer da contratação para a docência uma peça de um quebra-cabeças maior”. Novos docentes, inclusive católicos, geralmente precisam de ajuda para compreender a missão distintiva da instituição. Essa orientação começa com as entrevistas, convidando os candidatos a refletir em voz alta sobre a contribuição potencial deles para o caráter católico da universidade. Os novos membros do corpo docente necessitam ser integrados no diálogo contínuo sobre como compreender a missão, e a instituição precisa permitir que a missão seja enriquecida por suas vozes.
A socialização dos docentes é importante. Em geral, os novos professores se mostram ávidos a aprender sobre a visão da instituição, sua história e costumes. O primeiro ano e o ano depois da efetivação, quando os docentes estão particularmente curiosos com respeito à sua nova residência permanente, oferecem ótimas oportunidades para que uma universidade articule a sua visão e suas prioridades, para que cultive a solidariedade com aquele propósito maior e se beneficie das ideias dos membros docentes.
Em termos ideais, temos uma série de eventos com duração de um ano, incluindo um tempo com o reitor e leituras comuns. Eventos semelhantes podem ser planejados aos que estão entrando em funções administrativas. Além de garantir que os docentes encontrem colegas de outras disciplinas, dessa forma ampliando os horizontes, uma tal orientação fomenta a lealdade e a comunidade. Garante que os docentes entendam como as missões da instituição atual e da anterior se diferem.
Seminários com os professores podem ser úteis: seminários de verão, seminários compactos, grupos de leitura, série de palestras, ou um conjunto de debates. Na Notre Dame, organizamos um seminário que dura o ano inteiro voltado a tópicos como a tradição intelectual católica e a tradição social católica. Reconhecendo que muitos docentes poderiam não dispor do tempo necessário para uma iniciativa exigente, também organizamos semestralmente oficinas numa tarde sobre aspectos do catolicismo. Cada oficina oferece uma introdução ao catolicismo, explora uma obra clássica na tradição católica, engaja-se em um tópico que envolva o catolicismo na sociedade contemporânea.
Incentivos podem ser introduzidos em novos cursos ou projetos acadêmicos que ponham as disciplinas em contato com o catolicismo. Também ofertamos uma redução da carga horária de aulas para que os professores estudem a tradição intelectual católica. Os membros do corpo docente poderiam entrar numa competição para receber a liberação por um semestre a fim de fazer um curso sobre – ou estudar de forma independente – filosofia, teologia ou outra disciplina em torno de aspectos da tradição intelectual católica. Estas experiências foram pensadas visado enriquecer a docência, a vida acadêmica e a conexão deles com a universidade.
“Não subestime a linguagem”. Os coordenadores acadêmicos precisam articular por que se deve enfatizar, ao invés de esconder, uma identidade distinta, quais são suas vantagens para os membros do corpo docente, como ela pode dar um foco institucional e fomentar o sentimento comunitário, além de trazer como ela – a identidade católica – pode ser empregada para atrair docentes. Ao articular o ideal de uma universidade católica, as suas lideranças precisam encontrar uma linguagem que, por um lado, apela a pessoas de diversos fundos culturais e credos religiosos e ainda, por outro lado, que assegure que as dimensões distintivamente católicas estejam plenamente integradas à cultura intelectual da instituição.
Mesmo que venhamos a concordar com que uma maioria dos docentes deve ser católicos, falar de cotas é contraproducente. Isso afasta professores que são de outros credos ou que não professam nenhuma religião, e levanta ma preocupação quanto à qualidade. A linguagem dos objetivos funciona melhor. Para uma contratação católica, introduzi um objetivo mínimo de 50%, um objetivo esperado de 55% e um objetivo ambicioso de 65%.
Quando os departamentos descreviam, com destaque, a Notre Dame como uma universidade católica nos anúncios de emprego, descobriram que mais candidatos se identificavam como católicos ou davam motivos por que queriam trabalhar numa universidade católica. Em seguida, passamos da prática de recomendar esta linguagem à exigência de adotá-la.
Com respeito aos alunos e seus pais, a missão é quase sempre uma vantagem, mas os professores, também, podem ficar atraídos por uma identidade institucional distintiva. Em muitos casos, eles irão deixar departamentos ou universidades de alto nível para ajudar a criar ou desenvolver uma universidade com uma missão singular. Os que estão no comando da instituição devem estar preparados para contrariar o argumento de que contratar para a missão é demasiado oneroso, que é muito difícil contratar com qualidade e diversidade; as contratações para missão vão reduzir o número de pessoas e a irão diminuir a qualidade. Esse preconceito simplesmente não é verdadeiro.
Depois de meus sete primeiros anos como decano, revistei os mais de 150 registros de contratações e efetivação para o corpo docente. Busquei identificar aquilo que a maioria das pessoas concordaria ser o 1/3 principal das contratações: aqueles que já haviam conquistado a efetivação em instituições altamente avaliadas, como Harvard e Stanford; aqueles que haviam recebido ofertas múltiplas de emprego, incluindo ofertas de departamentos altamente avaliados; e aqueles cujos históricos simplesmente eram deslumbrantes, por exemplo, na época da promoção ou efetivação. Para cada membro docente, busquei identificar o fator mais significativo ou, se fossem vários, os múltiplos fatores que o levaram a escolher a Notre Dame. Por uma margem de 2 a 1 na relação com o próximo fator mais alto, a missão católica, entendida de maneira ampla, foi o mais significativo. A identidade católica de uma instituição pode ser uma grande vantagem competitiva. E exercício foi útil porque a contratação para a missão é frequentemente vista pelos docentes como um terceiro obstáculo além da qualidade e da diversidade. Quando se acrescenta o catolicismo ao conjunto, pode-se parecer indevidamente complexo e restritivo, mas podemos ter uma visão diferente e sugerir que, ao destacar a missão católica, poderíamos estar contratando acima do nosso ranking acadêmico.
Os membros do corpo docente querem que suas instituições universitárias se tornem internamente diversificadas. Uma tal diversidade, incluindo a diversidade intelectual, tem o seu valor, mas se a contratação para a diversidade resultar em que as universidades católicas percam a sua identidade, então a educação superior americana como um todo irá se tornar menos, e não mais, diversa. Os grandes freios em tais tendências homogeneizantes são uma visão distintiva e uma contratação eficaz.
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O que constitui uma universidade católica? Um intercâmbio entre missão e contratações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU