24 Janeiro 2017
“Nos últimos anos, vocês tiveram que responder a muitos casos dolorosos de abuso sexual de menores. Estes são ainda mais trágicos quando quem os comete é um eclesiástico...” Era outubro de 2006 quando Bento XVI abriu com essas palavras o longo capítulo da pedofilia na Igreja irlandesa, por ocasião da audiência concedida aos bispos do país em visita ad limina apostolorum. Seguiram-se anos de investigações governamentais, que culminaram em 2009-2010, destacando a dramática dimensão do fenômeno dos abusos sexuais ocorridos ao longo das décadas em paróquias e instituições católicas do país. Joseph Ratzinger decidiu uma ampla visitação apostólica, aceitou as renúncias de inúmeros bispos, escreveu uma histórica carta aos católicos irlandeses.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada no sítio Vatican Insider, 20-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje, dez anos depois e após a pausa do Jubileu da Misericórdia (08 de dezembro de 2015 - 20 de novembro de 2016), o Papa Francisco retomou as visitas dos episcopados nacionais ad limina apostolorum, ou seja, as viagens a Roma (aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo) para se encontrar com os diversos dicastérios da Cúria romana e com o papa, e para apresentar, ao primaz católico, a situação da fé no próprio país, recebendo justamente a Conferência Episcopal Irlandesa liderada pelo arcebispo Eamon Martin.
Metade dos bispos presentes em 2006 não estava hoje, porque, enquanto isso, renunciaram ou se aposentaram, e o próprio arcebispo presidente não estava há dez anos. “Com o papa, havia uma atmosfera descontraída, mas não relaxada”, contou Martin em uma entrevista coletiva na sede da Radio Vaticana com um grupo de bispos que acabaram de voltar das duas horas de encontro com Francisco.
“Todas as vezes que falamos de abusos, a discussão foi muito séria”, continuou o arcebispo, que informou que, com os coirmãos, perguntaram ao papa sobre os seus encontros com algumas vítimas de abusos. “Estou perfeitamente consciente de que, enquanto estamos aqui, há sobreviventes de abusos sexuais que, finalmente, veem as suas histórias reconhecidas, ouvidas e reconhecidas pela Igreja, pela sociedade e pelo Estado”, disse ele, em referência à publicação de Belfast sobre uma nova investigação pública.
Na manhã dessa sexta-feira, conforme a imprensa da Irlanda do Norte, foram publicados os resultados de uma investigação de quatro anos, promovida pela região que confirmou inúmeros casos de abuso (maus tratos físicos e agressões sexuais) contra menores, cometidos a partir de 1920, em instituições dirigidas pela Igreja, pelo Estado e pela organização de caridade Barnardo.
Em 2006, recordou Dom Martin, Bento XVI recomendou que “é importante estabelecer a verdade daquilo que aconteceu no passado, tomar todas as medidas necessárias para evitar que isso se repita no futuro, assegurar que os princípios da justiça sejam plenamente respeitados e, acima de tudo, curar as vítimas e todos aqueles que foram atingidos por esses crimes abomináveis”.
Desde então, “trabalhamos em todas essas quatro áreas”, disse o arcebispo: houve “investigações e audiências”, a Igreja adotou “protocolos, padrões e diretrizes de acordo com a Santa Sé, para evitar que esses eventos se repitam, e temos centenas de pessoas envolvidas que são os olhos e os ouvidos da Igreja para evitar novos abusos”, a Igreja irlandesa optou por “colaborar com a justiça civil e penal, sem omissões e acobertamentos, porque uma cultura do sigilo, nascida do desejo equívoco de evitar o escândalo, foi o maior escândalo”, e os bispos, por fim, promoveram projetos de “cura” das vítimas, com programas de escuta e de psicoterapia, tais como o Towards Healing (Rumo à Cura) e também um programa intitulado Towards Peace (Rumo à Paz), dedicado às vítimas de padres pedófilos que “queiram iniciar uma jornada para voltar à Igreja, porque o drama é que muitas das vítimas eram de famílias mais próximas à Igreja e foram destruídas por esse horrendo pecado e crime”.
Para Martin, em geral, “a Igreja irlandesa tem algo a dizer à Igreja universal, porque passou e está passando por esse drama, e refletimos muito nesses anos”.
O encontro com o papa e também os encontros dos últimos dias com a Secretaria de Estado e os diversos dicastérios romanos, conforme relataram todos os bispos presentes na entrevista, foram “informais”, “descontraídos” e “cordiais”. Francisco, em particular, não pronunciou um discurso, como é seu hábito, e – uma novidade em relação às visitas ad limina apostolorum – também não entregou um discurso por escrito.
Dom Diarmuid Martin, arcebispo de Dublin, presente já em 2006 e, anteriormente, autoridade da Cúria romana, contou o início do encontro com estas palavras: “Nós, bispos, nos sentamos ao redor do papa, no mesmo nível. Ele queria ouvir. Explicou que ele dava pontapé inicial, que todos podiam intervir, sem exceção, podíamos falar sobre qualquer questão, e nos disse que nós, bispos, éramos como goleiros: a bola podia vir de todas as partes. Todos os temas estavam sobre a mesa”.
Em geral, ressaltou o arcebispo, “em relação a dez anos atrás, parece-me que houve o reconhecimento dos progressos realizados pela Igreja na Irlanda. Não é uma história de sucesso. Se olharmos para os números, há uma queda nas vocações, há uma queda nas pessoas que vão à missa, mas também há sinais de renovação. Um pároco me disse, por exemplo, que, embora tenha muito a fazer, batismos, casamentos, funerais, é preciso recomeçar de novo, com pequenas comunidades que vão crescer, talvez até mesmo depois da sua morte”.
Quanto aos abusos sexuais, sobre os quais o arcebispo de Dublin sempre foi inflexível, “se olharmos para a quantidade, o número de abusos na Igreja foi menor do que no resto da sociedade, mas, do ponto de vista da qualidade, um abuso que ocorre na Igreja de Jesus, que colocou as crianças no centro, é de uma negatividade insuportável”.
Foram muitos os assuntos abordados na conversa de duas horas com o papa, do papel dos jovens na sociedade ao das mulheres na Igreja, do desemprego ao crescimento dos sem-teto e dos suicídios, da crise política na Irlanda do Norte, onde haverá eleições em março (“É importante que todos evitem adotar uma linguagem de injúria que construiria barreiras em vez de pontes”, comentou Eamon Martin), às exigências de reforma na Igreja por parte de uma associação de padres (abolição do celibato obrigatório, por exemplo) às mudança ocorridas nos últimos anos na sociedade irlandesa, em meio à queda dos fiéis e à legalização do casamento homossexual.
“Sentimos uma sensação de compreensão pelo nosso compromisso de enfrentar os problemas que existem. Muitos dos problemas que enfrentamos também existem em outros países da Europa ocidental. Há uma certa curiosidade sobre por que as coisas mudaram tão rapidamente na Irlanda. Mas houve encorajamento para continuar fazendo ouvir a voz da Igreja, não dominante, mas importante na sociedade irlandesa sobre questões como a família, a vida, a educação, a pobreza.”
O papa aconselhou, de modo não “ideológico” e sem insistir nos dogmas, a estar “perto” das pessoas. “Não nos sentimos criticados, ou acusados, ou puxados pelas orelhas.” E, obviamente, falou-se da visita prevista do papa à Irlanda. “O papa nos agradeceu pela acolhida que lhe deram na Irlanda, quando ele estudou inglês lá. Um estudo que ele não continuou...”, brincou Diarmuid Martin.
Entre os encontros dos bispos irlandeses na Cúria romana, o encontro com a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores foi presidida pelo cardeal estadunidense Sean O’Malley.
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Bispos irlandeses em Roma 10 anos depois da advertência de Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU