23 Outubro 2017
A longa luta do povo Munduruku para preservar a floresta e seus locais sagrados depara-se com uma hidrelétrica — e com a lógica de lucro e produtividade de um consórcio transnacional de empreiteiras.
A reportagem é de Sue Branford, Fernanda Moreira e Maurício Torres, publicada por Mongabay e reproduzida por Outras Palavras, 21-10-2017. A tradução é de Fernanda Moreira.
Um grave conflito está em curso na Amazônia brasileira, onde os índios Munduruku da bacia do rio Tapajós enfrentam dois consórcios de empresas e a FUNAI, em razão da devastação ambiental e espiritual causada por duas usinas hidrelétricas recentemente construídas em seu território.
A floresta amazônica abriga muitos locais sagrados de povos indígenas, mas, de acordo com os Munduruku, a construção de duas barragens destruiu dois locais particularmente importantes. A construção da barragem Teles Pires resultou na explosão de sua cachoeira sagrada, conhecida como Karobixexe (Sete Quedas, para os não-indígenas) e na remoção de 12 urnas funerárias. A construção da barragem de São Manoel destruiu Dekoka’a (conhecido como o Morro dos Macacos).
Os Munduruku avisam que a destruição desses locais sagrados ameaça não somente sua sobrevivência, cultural e espiritual, mas a sobrevivência de todas as formas de vida na floresta Amazônica – animais, plantas e peixes.
Para os Munduruku – um povo de mais de 13 mil indígenas, que habita mais de 130 aldeias, a maior parte ao longo do Alto Rio Tapajós e seus afluentes – essa luta é percebida como a última trincheira para salvar a floresta Amazônica.
No dia 13 de outubro, cerca de 80 guerreiros e guerreiras Munduruku e alguns de seus pajés, viajaram em diversas embarcações, saindo de distintas aldeias da bacia do Tapajós, em direação ao canteiro de obras da hidrelétrica São Manoel, no rio Teles Pires. Eles tinham a intenção de cobrar das empresas os compromissos que firmaram em julho desse ano, em ocupação da usina. Queriam realizar um ritual para acalmar seus espíritos ancestrais pela destruição de seu local sagrado Dekoka’a.
Mas, dessa vez, as autoridades estavam preparadas. Quando os indígenas chegaram, depararam-se com uma barreira intransponível de cerca de 30 policiais armados da Força Nacional de Segurança Pública, que chegaram de avião no dia anterior. A polícia estava acompanhada por dois oficiais de alto escalão do governo federal – o secretário nacional de Segurança Pública, general Carlos Alberto Santa Cruz; e o diretor da Força Nacional, coronel Joviano Conceição Lima. Esse contingente foi enviado pelo ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em atendimento a solicitação do ministério de Minas e Energia (MME).
A Empresa de Energia São Manoel, que gerencia a construção da hidrelétrica, obteve uma decisão judicial que autorizava o uso da força policial para protegê-la da ocupação. Quando contatada pela Mongabay, a empresa enviou uma nota dizendo que a Força Nacional foi chamada para “proteger o local, os empregados da empresa e a propriedade pública”.
Os Munduruku ficaram indignados por terem sido chamados de “invasores”. Poxo Wayun, guerreira e coordenadora do Movimento de resistência Ipereg Ayu, explicou para a Mongabay: “O território é nosso, então não invadimos o canteiro de obras. Nós somente ocupamos um lugar que é nosso. Ou, pelo menos, era nosso até que eles tomaram da gente. Os invasores são eles, não nós”.
Como os indígenas tentaram entrar no canteiro de obras, a polícia soltou bombas de efeito moral. Apesar de um Munduruku mais velho ter passado mal, não há registro de lesões mais sérias. Os indígenas conseguiram subir a rampa de entrada do canteiro de obras e passaram a noite ali.
A Empresa de Energia São Manoel é um consórcio composto por três empresas – EDP Brasil (uma holding portuguesa), Furnas Centrais Elétricas (uma empresa brasileira controlada pela estatal Eletrobrás), e China Três Gargantas (uma estatal chinesa).
O Complexo Hidrelétrico Teles Pires, que tem escritório em Alta Floresta, gerencia a barragem de Teles Pires, localizada rio acima da São Manoel. Um consórcio brasileiro, composto por duas companhias estatais (Eletrosul e Furnas Centrais Elétricas) e duas empresas privadas (Odebrecht e Neoenergia) tem a concessão para operar a hidrelétrica.
Durante a construção da barragem de Teles Pires, o local sagrado Karobixexe foi dinamitado. Segundo a cosmologia Munduruku, era ali que os espíritos dos mortos e a “mãe” de todos os peixes, animais e pássaros habitavam. Eles dizem que a destruição de um de seus mais importantes locais sagrados está levando ao fim do povo Munduruku e ao fim da Floresta Amazônica.
Tudo o que foi recuperado do local antes de ser dinamitado foram doze urnas sagradas que, de acordo com a normativa do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), foram levadas pela empresa para um museu de Alta Floresta, adequadamente climatizado, para aguardar uma decisão final sobre o que deve acontecer com elas. Alta Rocha Macedo, coordenador de comunicação social da CHTP, disse a Mongabay que funcionários estão aguardando os Munduruku indicarem um local na cidade de Jacareacanga onde as urnas possam ser preservadas, de acordo com um acordo feito com os Indígenas, a FUNAI e o IPHAN.
Mas os Munduruku estão bastante descontentes com esse acordo. Para eles, a remoção forçada das urnas do local sagrado foi um sacrilégio. Poxo Wayun disse à Mongabay: “A Convenção 169 da OIT garante que nós temos que ser consultados sobre qualquer coisa que nos afeta, e a remoção das urnas não foi discutida com a gente. Eles [as empresas, os órgãos públicos, a FUNAI] não têm o conhecimento que os pajés têm. Somente quem tem autonomia para falar quando, como e em que lugar devem ser colocadas essas urnas é o pajé”.
Um dos cinco pajés que participou da jornada até São Manoel – todos os quais são capazes de comunicação com os espíritos – afirmou que foi “muito errado” a empresa remover as urnas. “Para a empresa”, ele diz, “as urnas podem parecer somente ‘objeto’, mas para os indígenas elas são os espíritos ancestrais e o meio pelo qual os espíritos falam com os pajés. Ele acrescenta que os espíritos estão muito infelizes na cidade, presos em paredes de concreto: “Eles não gostam da cidade. Eles estão acostumados a viver no mato”.
Durante conversa com representantes da empresa que foram ao canteiro, os Munduruku cobraram o compromisso firmado na última ocupação para realizarem a segunda visita às urnas funerárias e, na manhã de sábado, dia 14, partiram para Alta Floresta. “Eles [a CHTP] precisam entender que a destruição dessas urnas tem um impacto enorme”, explica Kaba Kabaiwun. “Qualquer dano espiritual que acontece por conta das urnas impacta todo o povo Munduruku. Se os espíritos ficarem nervosos porque não foram levados para o lugar certo, nós vamos sofrer doenças, acidentes, danos espirituais, como já está acontecendo”.
No domingo, os Munduruku fizeram uma cerimônia de oferecimento do alimento aos espíritos, visitaram as urnas e continuaram seus rituais em frente ao Museu de História Natual de Alta Floresta. Depois de uma discussão com um representante da FUNAI, policiais da Força Nacional chegaram. Em uma clara demonstração de choque entre a cultura indígena e não indígena, um funcionário da CHTP protestou, dizendo que a empresa os levou para ver as urnas diversas vezes e que os Munduruku ainda não haviam decidido o que deve acontecer com elas, portanto, “o prazo havia acabado”. Em resposta, os pajés explicaram que essa é uma decisão muito séria para todo o povo Munduruku e que, por isso, precisam realizar seus trabalhos com calma e cautela.
Na segunda, 16 de outubro, um funcionário da CHTP, acompanhado pela Polícia Federal, foi retirar os indígenas do hotel onde estavam hospedados para levá-los de volta a Porto do Meio, onde ficaram suas embarcações. Sob protesto, os indígenas seguiram, mas disseram que os pajés não sairiam da região enquanto não terminassem seus trabalhos e conseguissem levar as urnas a um local apropriado.
Enquanto isso, diante de queixas dos indígenas e de seus apoiadores de que a Força Nacional atuou como milícia privada das empresas e não como uma força imparcial para manter a lei e a ordem, além de ter questionado, monitorado e fotografado lideranças indígenas, apoiadores e reporteres que os acompanhavam, fora do contexto da obra da UHE São Manoel, o MPF anunciou a abertura de inquéritopara investigar se houve ilegalidade nesta operação.
A indignação dos Munduruku com os pariwat (não-indígenas) foi alimentada pelo que entendem como má fé da parte das empresas e do governo. Em particular, estão furiosos com o descumprimento dos acordos que empresas hidrelétricas e FUNAI assinaram em julho, depois que ocuparam o canteiro de obras de São Manoel por quatro dias.
Segundo o Ministério Público Federal, representantes das empresas de energia São Manoel e Teles Pires, o presidente da FUNAI Franklimberg de Freitas Ribeiro, o procurador do MPF de Sinop e os Munduruku assinaram um acordo ao final da ocupação, em que concordaram em reunirem-se com os indígenas dias 28 e 29 de setembro na aldeia Missão Cururu. O compromisso referia-se à demanda dos indígenas de que as empresas pedissem desculpas pelos danos causados ao povo Munduruku.
Os Munduruku levaram esse compromisso a sério e, por isso, escolheram criteriosamente a aldeia Missão Cururu. Essa foi uma das primeiras aldeias que os Munduruku estabeleceram ao final do século XIX quando migraram dos campos para as margens do rio Tapajós. A aldeia foi, mais tarde, denominada missão quando os Franciscanos estabeleceram suas bases, em 1911, com objetivo de catequizar os indígenas.
Os Munduruku contam que o local que chamam de Krepuca, que é como um portal para o mundo espiritual, fica próximo à Missão Cururu. É ali que se inicia a jornada dos espíritos até Karobixexe. Por esse motivo, os pajés entenderam como o local correto para que as empresas pedissem desculpas por deixarem os espíritos sem rumo, ao destruírem Karobixexe, e por todos os outros dandos que causaram. Os pajés acrescentam que os Munduruku também precisam se desculpar por terem deixado a destruição acontecer.
Os indígenas prepararam-se cuidadosamente para a reunião em setembro e deixaram atividades de caça e roça por duas semanas para trabalhar arduamente com os pajés. Alguns Munduruku fizeram longas viagens para participar da audiência e da expedição até São Manoel.
Os Munduruku veem esses rituais e a reunião como absolutamente essenciais: sua sobrevivência como povo depende dessa desculpa aos espíritos e do atendimento aos seus pedidos. A guerreira Kaba Kabaiwun foi enfática ao dizer que, em concomitante ao pedido de desculpas, os indígenas vão decidir e comunicar FUNAI e empresas sobre um novo local para as urnas.
“Nós temos que voltar lá. Foi um pedido deles que os pajés ajudem a encontrar um local pra eles ficarem. Se não fizermos isso, nós vamos sofrer as consequências”. Um dos pajés lembra que a condição para a existência do povo Munduruku é a manutenção desses espíritos e dos locais e entidades que eles protegem. “Se destruírem todas as urnas e locais sagrados, vai acabar peixe, animal, tudo. Como os brancos destruíram os locais sagrados, está acontecendo acidente com a gente e com eles também. Só que eles não se importam e não sabem a razão”.
Mas nem as empresas e nem a FUNAI foram até a Missão Cururu em setembro. Em ofício enviado ao MPF às vésperas da reunião, Aljan Machado, diretor de meio ambiente da Empresa São Manoel, disse que “nos complexos estudos elaborados no âmbito do licenciamento ambiental da UHE São Manoel não foram identificados impactos a locais sagrados da comunidade indígena” (negrito no original). Por causa disso, continua, a empresa considera descabida a demanda dos Munduruku por um pedido de desculpa.
Os advogados da CHTP também enviaram um ofício justificando a ausência da empresa na audiência. Nele, dizem que, ao assinarem o documento em julho, “no contexto da invasão ao canteiro de obras da usina São Manoel, ressalta-se”, a empresa não confirmou necessariamente que participaria da reunião em setembro.
A empresa refutou a exigência do pedido de desculpa já que “vem seguindo estritamente os procedimentos previstos na legislação vigente e em absoluta transparência em relação às Comunidades, a esse MPF, a Funai e ao Iphan”.
No entanto, o MPF não aceita as justificativas da empresa de que os acordos firmados em julho não representavam um compromisso para cumprir as demandas dos indígenas. Em nota publicada logo após receber as cartas das empresas, o MPF afirmou: o compromisso de julho “previa o atendimento a várias reivindicações dos indígenas afetados pelas usinas, incluindo um pedido formal de desculpas das empresas e esclarecimentos sobre os impactos causados”.
O MPF também refuta a afirmação das empresas de que não causaram impactos ao meio ambiente e às comunidades indígenas. Em sua nota, o órgão ressaltou que as empresas São Manoel e Teles Pires “respondem a pelo menos 24 ações judiciais iniciadas pelo MPF por irregularidades no licenciamento ambiental”. E acrescenta: “Os indígenas Munduruku, Apiaká e Kayabi, atingidos pelas usinas no Teles Pires – um total de, até agora, quatro barragens – apontam violentas perturbações espirituais causadas pela destruição de locais sagrados que ficavam onde hoje se localizam as hidrelétricas. A usina Teles Pires destruiu a cachoeira das Sete Quedas, chamada em língua munduruku de Karobixexé, ou mãe dos peixes, e a usina de São Manoel fez desaparecer o morro dos Macacos, chamado em munduruku de Dekoka’a”.
Os Munduruku, sentindo-se enganados, estão muito revoltados. Em carta produzida na ocupação de São Manoel, dia 13 de outubro, escrevem: Primeiro queremos os dapixiat (mentirosos) longe de nós. Não apareçam aqui, as mentiras que vocês contaram em julho escureceram nossos olhos mas nossos pajés estão conosco e agora não vão deixar que o cauxi (veneno) da boca de vocês adoeça nosso povo”. A carta segue: Estamos aqui pra defender nosso direito, lutar contra as ameaças ao nosso território denunciar as hidrelétricas no rio .Somos como o Poy (jabuti) que derrotou a anta, o povo munduruku é como o jabuti vamos derrotar os nossos inimigos maiores que nós”.
As mulheres Munduruku exigem justiça para a profanação do local sagrado conhecido como Dekoka’a (chamado de Moro dos Macacos por não-índios), destruído pela construção da barragem de São Manoel. Os Munduruku afirmam que a destruição deste local, juntamente com a explosão de Karobixexe (chamado Sete Quedas por não-índios) com a construção da barragem de Teles Pires, está levando ao fim do povo Munduruku e até ao fim da floresta amazônica.
Durante as duas últimas décadas, povos indígenas que habitam a bacia do Tapajós têm sido impactados por poderosas forças econômicas que chegam à região e têm sido vítimas de violência cometida pelo Governo Brasileiro. Eles também testemunharam como a barragem de Belo Monte, construída no rio Xingu, destruiu a vida dos indígenas daquela região – seus “parentes”, como os Munduruku os chamam.
Para os Munduruku, o atual conflito ocorre em um momento decisivo. Eles entendem que as cartas políticas e empresariais estão fortemente lançadas contra eles, mas sua coragem e determinação indicam que a história ainda não terminou.
Link para vídeo no facebook do Movimento Munduruku Ipereg Ayu com mensagem sobre a ocupação:
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Duas cosmovisões em choque na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU